10/10/2010
Se a arquitetura é uma disciplina que possui muitas faces, a de Leandro Medrano personifica seu lado humano, preocupado com a forma como arquitetos e urbanistas podem atuar para diminuir as clivagens sociais – cujos melhores exemplos são os condomínios fechados e os guetos de pobreza –, marcas facilmente encontradas nas grandes cidades brasileiras. Professor do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Estadual de Campinas, Medrano é um pesquisador interessado nas consequências sociais da arquitetura, encarando-a também como instrumento de mudança social. Nesta entrevista, Medrano fala sobre as relações entre a arquitetura, sociedade, políticas públicas e sustentabilidade.
Seus trabalhos lidam bastante com o conceito de "habitações de interesse social". Qual a proveniência das preocupações sociais na arquitetura?
Leandro Medrano – A habitação começou a ser um tema mais presente na arquitetura desde o início do século XX. O movimento moderno, que marcou muito a arquitetura, teve como grande paradigma de desenvolvimento a questão da habitação, em várias escalas, desde as residências. A residência, no movimento moderno, era pensada dentro de um protótipo de cidade, aquela que é projetada para um novo homem: o homem moderno, racional. Até então, na tradição da Escola de Belas Artes, a arquitetura estava vinculada aos grandes monumentos, aos palácios, às óperas, que quase sempre eram construídos com fórmulas e formulações estéticas provenientes dos estilos do passado. Simplificando um pouco, diria que até esse momento, o arquiteto tinha o trabalho de entender esses estilos e utilizá-los adequadamente. No início do século passado, portanto, uma nova postura e uma nova escola começam a ganhar corpo e apontam para parâmetros relacionados à função, à técnica e às necessidades mais prementes do ponto de vista social, que passam a ser prioritárias no caso da arquitetura. É por este viés que a questão da habitação ganha força. Também é nesse momento que as cidades se intensificam. As comunidades rurais vão diminuindo, enquanto as grandes metrópoles crescem rapidamente. A cidade de São Paulo é um grande exemplo dessas mudanças, pois passou de vila a mega-cidade durante o século XX. É em função desse perfil de mudança social do mundo moderno que a arquitetura tenta se colocar como instrumento que amenize os impactos negativos das grandes metrópoles sobre a condição humana, que permita aos homens viver de maneira adequada, e que, ao mesmo tempo, encontre na tecnologia, nas técnicas e nas formas, uma maneira de responder à demanda habitacional sem deixar de lado as preocupações com a sustentabilidade. A humanidade, como um todo, e não apenas o Brasil, não tem conseguido acompanhar e atender a essas demandas.
Os problemas sociais estão, hoje, no âmago da arquitetura?
Medrano – Sim. É nesse período (início do século XX) que as escolas incorporam os estudos socioeconômicos como atividades fundamentais da arquitetura e que acompanham os alunos por todo o tempo. Claro que há diferenças entre as instituições que formam arquitetos. Algumas dão mais ênfase do que outras às questões sociais, mas geralmente as melhores escolas do Brasil e do mundo tentam colocar esse viés como a principal preocupação de um arquiteto e de um urbanista: pensar a cidade, pensar o espaço público, pensar as condições de habitabilidade em todas as escalas, como forma de reorganizar o território social. E isso não está apenas ligado à residência, à célula habitacional específica, mas sim a como ela se comporta diante do tecido social. Ou seja, políticas habitacionais e urbanas que considerem os diferentes estratos sociais como grupos isolados – cujos exemplos, no Brasil, são os condomínios fechados, as áreas monofuncionais, os territórios de exclusão, os guetos de pobreza, que incentivam estados de agressão, de mal-estar social e de conflito. Os conflitos sociais podem ser amenizados rearranjando o espaço urbano dentro de outro sistema. É claro que as questões estruturais e urbanas não resolvem os problemas socioeconômicos, mas podem interromper esse caminho de ruptura social, simbolizada pela criação de guetos habitacionais, isolados, bolsões de habitações padronizadas que tiram as pessoas dos locais onde já têm toda uma vida e uma sociabilidade construídas. Além dos custos para o Estado, que tem de levar infraestrutura urbana básica para uma área onde não existia.
Estima-se o déficit habitacional brasileiro em 8 milhões de residências. Por que, afinal, não são aproveitados os 7 milhões de imóveis abandonados em áreas centrais das grandes cidades brasileiras para ajudar a resolver esse problema? Quais os entraves para que isso ocorra? Existem projetos que, ao menos, prevejam a reutilização desses imóveis abandonados?
Medrano – Esse número chama a atenção pela quantidade, mas seria um tanto utópico pensar em transformar exatamente esses 7 milhões de imóveis em habitações. Porém, não é utópico trabalhar com uma grande parte desses imóveis ociosos. Existem mecanismos que estão sendo aprimorados para se reaproveitar esses imóveis, tanto como habitações de interesse social quanto para uso comercial. Em razão de muitas questões políticas e econômicas, essas iniciativas ainda estão engatinhando. O mecanismo mais conhecido neste sentido é o IPTU progressivo. Ele é aplicado ao proprietário de um grande imóvel abandonado, que não o utiliza, visando a especulação imobiliária. O IPTU aumenta progressivamente até, como já ocorreu em São Paulo, o proprietário perder o imóvel e este acabar sendo reutilizado. Há também outros mecanismos jurídicos, como o Programa de Atuação em Cortiços, em que o Estado desapropria ou compra um imóvel abandonado ou subutilizado e o transforma em habitação de interesse social. Há vários casos desse tipo em São Paulo, principalmente hotéis em áreas cujo interesse mercadológico desapareceu e edifícios antigos de alto padrão, com apartamentos de 400 m2 que tinham interesse econômico em meados do século passado, mas que se tornaram desinteressantes por algum motivo (por exemplo, não ter garagem). Esses grandes apartamentos são reformados e divididos em várias habitações menores. Essas iniciativas estão apenas começando. Para que se desenvolvam, existe a necessidade de que o corpo técnico se aprimore. Esta realidade de reaproveitamento do espaço já existente ainda está um pouco distante da realidade experimentada pelos arquitetos brasileiros, que estão acostumados a construir no vazio. Construímos uma capital inteira, uma cidade moderna a partir do nada. Arquitetos europeus têm que trabalhar com técnicas de reutilização do espaço. Além disso, há o fator da sustentabilidade. Demolir e construir um novo edifício consome muitos recursos energéticos, e o reaproveitamento de imóveis abandonados, além de suas benesses sociais, pode ser uma forma de incrementar a sustentabilidade.
Recentemente, uma matéria do The New York Times flagrou os bairros altamente verticalizados, chamados de "instantâneos" devido à velocidade de construção, levantados a toque de caixa nas grandes cidades chinesas. A matéria os critica sutilmente do ponto de vista humano e ambiental. Mas comentaristas chamaram a atenção para o fato de que a ocupação dos subúrbios de classe média norte-americanos é muito mais onerosa para o meio ambiente do que os espigões “instantâneos” chineses. Quem está com a razão?
Medrano – Eu tenho estudado as cidades chinesas há algum tempo. Desde 2006, tenho visitado cidades com crescimento parecido com esse que você citou. São cidades que em duas décadas saíram praticamente do zero até a condição de mega-cidades, altamente verticalizadas. Há dois conflitos nisso. Em relação ao quesito sustentabilidade, a questão da verticalização e do crescimento exacerbado assusta. Mas, de fato, é correto dizer que a cidade compacta, com o maior número de pessoas possível numa área (dentro de um certo limite, de 800 a 1500 habitantes por hectare), é mais sustentável em todos os aspectos. Cria-se uma multifuncionalidade, pois as pessoas podem ter acesso a vários serviços se deslocando pouco, e se permite a otimização da infraestrutura urbana (luz, água, esgoto) dada a concentração maior de pessoas numa mesma área. Isso é muito melhor do que o modelo da sprawl city, as “cidades espalhadas” norte-americanas, onde todos têm sua casa e se locomovem em auto-estradas para ter acesso aos serviços urbanos: escolas, comércio etc. Porém, o problema das grandes cidades chinesas é que a verticalização é feita de modo exagerado – chegam a propor até 5 mil habitantes por hectare. Existe um limite para que as coisas funcionem adequadamente do ponto de vista econômico e estrutural. Os chineses não fundamentam o crescimento de suas cidades com base em nenhuma questão estética ou cultural de pertencimento e de acolhimento à população. Oferecem condições austeras, com áreas de habitação mínimas. São cidades sem identidade, sem apelo, com pouquíssimas áreas verdes e comércio de rua, com grandes outdoors como em Blade Runner. São cidades que assustam, desse ponto de vista, pois, ironicamente, representam uma ausência de urbanidade. O desenvolvimento urbano, simbolizado por grandes viadutos e grandes construções, não garante a urbanidade, que só ocorre quando a cidade é reconhecida pela população e permite trocas culturais, sociais e econômicas em seus espaços.
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