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Reportagem
Os donos da bola
Por Yurij Castelfranchi
10/10/2006

Talvez exagere o jornalista Ben Bagdikian, autor do livro The new media monopoly, em dizer que as grandes corporações da mídia “decidem o que a maioria dos cidadãos vão, ou não vão, aprender”. Talvez esteja errado quando afirma que o seu poder é incomparável ao de outras grandes empresas, porque “não fabricam carros ou roupas, nem porcas e parafusos” e, sim “políticas e valores sociais”. No entanto, é fato que, na mesa dos políticos e nos debates entre jornalistas, a big media tornou-se um big problem. Seja na imprensa, no cinema, na internet, seja em rádio ou televisão, seja analógico ou digital, o colossal negócio global do infotainment (informação + entretenimento) virou algo complicado para se regulamentar.

O que está em jogo são fluxos de centenas de bilhões de dólares (o valor do PIB de países inteiros), e o impacto político que com eles vem. Os donos do jogo são poucos. E o jogo dos donos é ficar cada vez mais entrelaçados num emaranhado global de mega-corporações. Regra número um: engula, ou será engolido. Regra número dois: caso não possa engolir, alie-se. E domine a cadeia de produção inteira: conteúdos, formatos, produção, pós-produção, distribuição. De filmes, livros, música, jornais, games. Resultado: no início da década de 1980, cerca de 50 grandes empresas dominavam 90% do mercado da mídia nos Estados Unidos. Hoje, viraram cinco, e fabricam uma parte relevante do infotainment do mundo inteiro. Gerando, dizem muitos, o efeito colateral de uma preocupante erosão da qualidade da informação. Ameaçando, para alguns, a liberdade de imprensa e os valores jornalísticos, sacrificados em nome da audiência máxima, das boas relações com os anunciantes, de esquemas de cumplicidade ou chantagem política.

Conglomerar e concentrar

Quando as transmissoras públicas são reféns da articulação política e da competição acirrada com grandes corporações, e quando o papel impresso é dominado por poucos grupos empresariais, é alto o risco de que o direito da população à informação seja afetado. Para grupos políticos, tal direito vira terreno de barganhas. Para as empresas, representa um negócio, aliás, um setor não muito lucrativo dentro do business maior da diversão. Como conseqüência, reduz-se a diversidade de opinião na mídia, e vozes fora do coro (minorias étnicas ou de opinião, por exemplo) podem não ter chances de ver suas preocupações chegarem a ser conhecidas e debatidas.

“Hoje em dia”, explica Ewa Komorek, do Trinity College, de Dublim (Irlanda), “um magro número de aproximadamente 50 firmas é responsável (em termos de receita) pela maioria da produção de conteúdo midiático do mundo, e também gera grande parte dos sistemas e dos canais de transmissão via cabo e satélite”. E a parcela maior do mercado se concentra num número de corporações menor ainda, continua a pesquisadora: menos de dez. “Além disso, tais firmas fazem quase diariamente novos acordos e joint ventures entre si”.

Para ver como funciona esse mercado, é suficiente olhar para as mais poderosas corporações da mídia mundial , que, em 2005 (as coisas mudam rápido, num mercado cujo imperativo é engolir ou se aliar), eram: AOL Time Warner, Disney, News Corporation, Bertelsmann, Vivendi, Viacom (que se dividiu há pouco tempo em Viacom e CBS), General Electric (a ordem da classificação muda dependendo de que setor do business é analisado).

Regra número um: engula. Assim foi que, em 2000, a America On Line (AOL), que havia pouco antes comprado seus competidores Netscape e Compuserve, “casou-se” com o gigante Time Warner que, por sua vez, vinha da fusão entre a Warner Brothers, colosso do cinema e da TV, com empresa dona da revista Time (e também da Fortune, Life, Marie Claire, People). A corporação resultante controla hoje HBO, CNN, Cinemax, Cartoon Network, TNT. Analogamente, a Disney controla, entre outras, a rede de TV ABC, os canais ESPN, Jetix, History Channel, A&E, a gravadora Buena Vista, as produtoras Touchstone, Miramax, Hollywood Pictures. A News Corporation de Rupert Murdoch é proprietária da Fox Company, do grupo Sky, do National Geographic Channel, do New York Post, da editora Harper Collins, da 20th Century Fox, enquanto General Electric (sim, a mesma que produz carros, instrumentos científicos, máquinas, também os motores dos caça F-16, dos helicópteros Apache e dos bombardeiros U2), detém a NBC, do Universal Channel e da Telemundo.

Regra número dois: alie-se, misture-se, domine a cadeia produtiva. De acordo com uma pesquisa de 2003, publicada na Columbia Journalism Review, os cinco maiores gigantes da mídia tinham 45 diretores presentes nos mesmos conselhos de administração, e ao menos 140 joint ventures. Bertelsmann e Time Warner são rivais no setor editorial. Na Europa, se aliam com a News Corp., de Murdoch para gerir o Canal 5 de TV a cabo. Da mesma forma, General Electric está com a Disney no History Channel e A&E, enquanto Time Warner tem seus executivos sentados no conselho de administração de empresas como eBay, HP, American Express, Amazon.com, Sony e Polygram.

Em muitos países, os big locais podem ter menor tamanho e outros nomes (na Itália, a Mediaset de Silvio Berlusconi, na Venezuela o grupo Cisneiros, no México a Televisa, no Brasil o grupo Globo). No entanto, o resultado não muda: a grande maioria da informação e das notícias que o cidadão consome diariamente é confeccionada e distribuída por poucas empresas. Mas não é assim mesmo que o mercado funciona? Ter grandes empresas lidando com diversão e informação constitui um problema? Parece que sim. Mais grave do que se possa imaginar, a julgar pelo fato de que concentração (poucos proprietários para muitas empresas) e conglomeração (produção e distribuição em mídias diferentes fabricadas pelo mesmo grupo) não assustam somente os ativistas críticos do neoliberalismo, nem só os jornalistas que vêem sua independência ameaçada. Relatórios de entidades reguladoras internacionais e comissões de inquéritos governamentais parecem dar razão, ao menos em parte, às denúncias das entidades “contra os big da mídia”, de defesa da liberdade de imprensa ou de controle da integridade jornalística. Por incrível que pareça, alguns magnatas também concordam: no mercado da mídia, as patologias são demais, os riscos para a vida democrática, reais, e a regulamentação, fundamental. Os problemas são ao menos três: menor competição pode implicar preços mais altos e inovação mais lenta; pode significar menor diversidade da oferta; pode fazer com que seja muito difícil de ouvir a voz dos que estão fora das alianças.

Metabolismo do mercado ou ameaça para a democracia?

A resposta dada pelos times de primeira divisão da indústria da mídia é simples: concentração e conglomeração não significam monopólio e, sim, livre funcionamento do livre mercado. E não é verdade que a concentração ameace necessariamente a liberdade de imprensa, a diversidade ou o pluralismo. Pelo contrário: só grandes grupos têm os recursos financeiros para produzir jornalismo de alta qualidade, podendo enviar operadores em tempo real aos lugares dos acontecimentos. Além disso, pluralidade de opinião e pontos de vista diferentes é justamente o que toda grande empresa de mídia precisa ter para lidar com as necessidades, os interesses e os valores de grandes e diversificados públicos.

Mas nem todos os magnatas da mídia concordam com isso. O fundador da CNN, Ted Turner, é famoso por afirmar que a invasão do Iraque foi promovida pelos canais da Fox e chama o seu proprietário, seu rival Rupert Murdoch, de “fomentador de guerras”. As pequenas empresas, afirma Turner, são as que podem ter grandes idéias. Os pequenos “sabem que não podem competir imitando os grandes: devem inovar, ficar menos obcecados com lucro e mais com idéias”. “Competição”, diz Turner, “leva à qualidade maior e a mais empregos… Isso se chama capitalismo”. Porém, sem as regras adequadas, diz o milionário, surgem “oligopólios preguiçosos” que matam a programação local e a diversidade da informação. O jogo da consolidação, conclui, faz sentido do ponto de vista das corporações, mas não é bom para a sociedade: “precisamos de novas regras que quebrem em pedaços essas companhias gigantes”.

Outro bilionário, o especulador financeiro húngaro George Soros, também parece estar preocupado com pluralidade e livre acesso à informação. O Open Society Institute, fundação por ele criada com o intento de fortalecer as transições para a democracia capitalista (especialmente em países que vêm do mundo ex-comunista), apresentou no ano passado em Bruxelas um monitoramento da televisão européia. De acordo com o relatório, que pesquisou a situação de vinte países, “o papel crucial da televisão em suportar a democracia na Europa está sob ameaça”: as transmissoras públicas estão diminuindo sua qualidade, tanto para competir com os canais comerciais, quanto porque são dominadas pela posição de grupos políticos. Além disso, alerta o documento, a concentração da mídia no setor comercial está aumentando, “em muitos casos com claras afiliações políticas”, o que “põe em risco o pluralismo e a diversidade”. Sendo assim, nada garante que “a transição para a transmissão digital possa beneficiar o público”: a digitalização pode, ao contrário, permitir que as corporações que lideram o negócio abalem ulteriormente o serviço público, “minando pluralismo, diversidade e qualidade dos conteúdos”.

Os parlamentos também estão discutindo o problema. Na Itália, durante o governo passado, o presidente da República (Carlo Azeglio Ciampi) chegou a se recusar a assinar a chamada “Lei Gasparri”, já aprovada pelas Câmaras, que permitia, em aparente contraste com a Constituição do país, que empresas ligadas ao primeiro ministro Silvio Berlusconi controlassem três redes televisivas nacionais. O caso foi condenado também pela Comissão Européia, que debate há tempos o tema do pluralismo e da concentração. Em 2003, um relatório do European Institute for the Media, enfatizava a ameaça aos serviços públicos de rádio e TV e ao pluralismo, concluindo que “os estados da União devem fazer um balanço cuidadoso entre o direito das empresas de mídia de se estabelecer e o direito ao pluralismo de opinião”, garantindo sempre “um amplo leque de diversidade” na mídia. Coisa fácil de se dizer, menos fácil de se fazer.

Quem decide?

Nos EUA, a entidade governamental que deve vigiar a mídia e propor regras é a Federal Communications Commission (FCC), que está no centro de escândalos, sendo criticada tanto pelas corporações quanto pelos ativistas. Sobre a política das concessões, está sob acusação de ter atendido mais os interesses das grandes empresas que os dos cidadãos, porque a lei de telecomunicações formulada em 1996 e revisada em 2003 (sob a coordenação de Michael Powell, filho do ex-secretário de Estado, Colin Powell), aumentou a cota máxima de mercado permitida para uma empresa.

Na Europa, a União “não tem o poder de emitir regulamentação específica para a mídia, embora existam leis relevantes, em geral, sobre competição de mercado”, explica Susanne Nikoltchev, responsável pelo Departamento de Informação Legal do Observatório Audiovisual Europeu, entidade criada em 1992 para garantir a transparência sobre a indústria audiovisual. Assim, lembra também Ewa Komorek, as decisões sobre concessões e regulamentações do broadcasting são competências de cada país da União: “no entanto, existe uma diretiva européia conhecida como diretiva da ‘Televisão sem fronteiras’, que estabelece algumas caraterísticas gerais que a regulamentação deveria ter”, tais como fornecer uma lista de eventos para garantir o acesso público, ou padronizar as regras sobre publicidade, proteção de menores, proibição de discursos racistas etc. Apesar disso, diz Komorek, “não há a mínima harmonização no nível europeu: as tentativas de adotar uma diretiva comum sobre a concentração na mídia faliram”. Sintomático é o fato de que o artigo 11 da Carta dos Direitos Fundamentais dizia, na sua primeira formulação, que “liberdade e pluralismo da mídia deverão ser garantidos”. Sob pressão da vários países, foi mudado para “respeitados”.

Cães de guarda adormecidos

“Eu concordo”, diz Komorek, “com a opinião de que uma concentração crescente constitui um perigo grave para o pluralismo e a diversidade e, conseqüentemente, para a democracia em geral. Na Europa, os impérios midiáticos de Silvio Berlusconi e de Rupert Murdoch são exemplos de quanto pode ser perigosa a falta de restrições (ou a falta de respeito às restrições) sobre uma excessiva concentração”. Berlusconi e Murdoch, em escalas diferentes, construíram seu trajeto habitando a zona cinzenta entre legalidade e ilegalidade, usando constantemente suas relações com o poder político. O caso de Rupert Murdoch é célebre. Comprou dezenas de grandes meios de comunicação, colecionando denúncias de violação das leis contra monopólios, na Austrália (seu país de origem), Reino Unido e Estados Unidos. Na Inglaterra, comprou quatro grandes diários, entre os quais o Sunday Times e o Times, o que era proibido pela lei inglesa dos monopólios. Mas ganhou sempre, graças também ao apoio substancial que “sua” mídia garantia a alguns políticos (tais como Margaret Thatcher em Londres, ou a família Bush nos EUA). Em 2003, todos os 175 jornais dos quais Rupert Murdoch possuía, eram a favor da invasão do Iraque.

O reino midiático do “Cavaliere” Berlusconi, na Itália, não foi tão imponente em termos de bilhões de dólares, mas mostra o impacto político extraordinário da concentração da mídia. Membro da loja maçônica secreta conhecida como “Propaganda 2”, no centro de um dos maiores escândalos da história do país, Berlusconi teceu alianças com políticos, empresários, banqueiros, até construir um império imobiliário e midiático. Graças à relação privilegiada com líderes políticos no centro dos escândalos de corrupção denominados “mãos limpas”, Berlusconi conseguiu obter, apesar do Supremo Tribunal Constitucional do país ter declarado isso ilegal, autorização para deter três canais nacionais. Sucessivamente, ganhou as eleições e prometeu abandonar parte da propriedade do grupo midiático. Entretanto, ao contrário disso, como chefe do governo efetuou um controle autoritário também sobre as TVs públicas. Os jornalistas que não eram bem quistos foram demitidos. Programas satíricos que zombavam do Primeiro Ministro foram tirados do ar. Berlusconi instituiu nas redes públicas a regra “do sanduíche”: cada notícia política tinha que começar afirmando o ponto de vista do governo; a seguir, a posição da oposição e, no fechamento, tinha que ter a réplica governista. Sob fogo cerrado, político e financeiro, eram poucos os jornalistas que diziam ou escreviam algo contra o “Cavaliere”. O diretor do maior diário conservador italiano (Il Corriere della Sera) se declarava abatido: “a informação está passando por uma mutação genética. O jornalismo agora é visto como se tivesse unicamente a função de aliado de um projeto político”.

“Está garantida a liberdade de imprensa…”, costumava dizer o jornalista Abbott J. Liebling, “… Aos que são donos da imprensa”. Eis porque muitos políticos e jornalistas estão preocupados. O papel do jornalismo, dizem os manuais, não é só o de informar. Também é o de ser watchdog, cão de guarda e sinal de alarme da sociedade. Deve monitorar e denunciar desvios ou disfunções da política ou da economia. Mas, se não for possível ter pluralismo no que a mídia comunica ou, menos ainda, checar o que ela não comunica, terá o jornalismo condição de cumprir o seu dever?