Você
sabe onde fica o rio Tapajós? Se não, olhe no mapa. Escrevo para ti
sentado numa canoa no dito rio, a cerca de 50 milhas da foz, estando os
homens neste momento ocupados em empurrar, contra o vento, o barco para
o mais perto possível da margem direita. Agora que a tua pequena mente
pode formar a exata idéia do lugar onde estamos, te direi como chegamos
até aqui.
(Carta de William James para Alice James. Manaus, 6 de novembro, 1865)
Assim
começava uma das muitas cartas escritas no ano de 1865 por William
James, que percorria o Brasil como membro da Expedição Thayer. Tendo
sido essa uma missiva escrita para Alice, sua irmã mais nova, o tom
adotado é sempre de especial carinho e devoção, não economizando, o
jovem aventureiro, no uso de expressões hiperbólicas de afeição
apaixonada ou no emprego de descrições saborosas do que via e vivia na
pele de aventureiro dos trópicos, de forma a cativar a atenção daquela
que parecia ser sua leitora predileta. E não lhe faltavam, nessas
alturas, assunto com os quais seduzir seus correspondentes “back home”,
que recebiam as notícias enviadas por James — de sua saúde,
deslocamentos geográficos e atividades — entremeadas por narrativas
sedutoras, escritas numa prosa envolvente e permeada por opiniões
iconoclastas sobre tudo e todos que o cercavam, inclusive as principais
figuras da Expedição Thayer.
William James no decorrer da Expedição Thayer,
convalescendo da varíola
Fotógrafo desconhecido, 1865
(cortesia Houghton
Library, Harvard University)
Afinal
de contas, explorar os tributários do rio Amazonas em montarias
conduzidas por índios e mestiços, coletando espécies de peixes
tropicais que tinham que ser ali mesmo embalsamadas, alimentando-se de
pirarucu seco, farinha de mandioca e vinho português, não era uma
situação corriqueira para nenhum jovem de boa família da Nova
Inglaterra. Ao contrário das imagens fixadas para a posteridade pelos
seus muitos alunos e milhares de admiradores, como um sujeito atraente
e carismático que se vestia de ternos tweed e foulards
elegantes, o James que emerge das cartas enviadas do Amazonas é um
jovem razoavelmente atlético e extrovertido que se gaba de dormir em
rede, nadar em rios selvagens, compartilhar da trabalhosa vida
cotidiana de índios “civilizados” e mestiços amazônicos. Além disso,
ele confessava num tom às vezes culpado, que sua maior preocupação
naquele momento não era estudar, ler ou pensar, mas sim a de manter, o
máximo possível, seu pobre corpo a salvo dos ataques de piuns,
muriçocas e outros insetos tropicais que à noite começavam a “a cantar como o grande órgão de Boston”, tornando miserável a vida dos viajantes. (Diário de William James, 1865)
O trecho acima citado foi retirado do livro Brazil through the eyes of William James. Letters, diaries, and drawings (1865-1866). Cambridge:MA: David Rockefeller Center for Latin American Studies/Harvard University Press, atualmente no prelo.
É este uma edição crítica e bilíngüe (inglês-português), por mim
organizada, dos papéis escritos pelo famoso filósofo fundador do
pragmatismo, William James, ao tempo de sua estadia no Brasil como
membro da Expedição Thayer, expedição esta que foi liderada pelo
cientista-naturalista, Louis Agassiz. Contendo igualmente um ensaio
analítico a respeito do contexto da expedição e dessa experiência na
formação do pensamento jamesiano, além do conjunto de desenhos
realizados pelo mesmo James no decorrer da viagem, o livro tem como
objetivo proporcionar ao leitor norte-americano e brasileiro um
panorama da produção de William James como viajante dos trópicos. O
livro, que se apresenta como uma primeira realização de um projeto mais
amplo — que envolve
igualmente a publicação de um livro sobre a Expedição Thayer e a
organização de uma exposição e catálogo da ainda inédita Coleção
Fotográfica da Expedição Thayer —
é fruto de um ano e meio de pesquisas desenvolvidas no decorrer da
minha estadia como visiting fellow junto ao David Rockefeller Center
for Latin American Studies (DRCLAS) da Harvard University (Cambridge,
MA, EUA).
Nesse
período percorri extensivamente os arquivos e museus da universidade,
levantando o conjunto da documentação relativa a essa importante
expedição naturalista que viajou pelo Brasil sob a liderança do famoso
naturalista Louis Agassiz entre 1865-1866. O material coletado é muito
significativo e tem permitido focalizar, sob novo ponto de vista, uma
série de questões estratégicas para a compreensão do Brasil na segunda
metade do século XIX. Temas tais como os interesses norte-americanos na
Amazônia, tanto os ligados a livre navegação, quanto aos projetos
norte-americanos de envio da população afro-americana para povoar a
Amazônia, a proibição do tráfico internacional de escravos adotada pelo
Brasil em 1850, as discussões sobre raça e ciência, são todos temas que
atravessaram a viagem de Louis Agassiz — e de William James —
no Brasil e oferecem material para uma reavaliação de muitas questões
já consagradas pela historiografia. Assim, acreditamos que Brazil through the eyes of William James permitirá que se aborde esses temas sob uma nova luz.
Embora
participante de uma expedição marcada pelos interesses diplomáticos e
científicos muito conservadores, William James construiu um ponto de
vista sobre o Brasil bastante original, tornando o conjunto de seus
registros uma fascinante viagem sobre aspectos inexplorados da
sociedade brasileira em meados do século XIX. Durante sua estadia de
oito meses no Brasil, William James redigiu um diário pessoal, uma
narrativa incompleta de uma expedição de coleta no rio Solimões, e
cartas endereçadas a seus pais (Henry James e Mary Walsh James), seu
irmão (Henry James) e sua irmã (Alice James). Os papéis brasileiros de
James formam um conjunto de grande interesse, tanto para os estudiosos
de William James, quanto para os interessados no estudo da literatura
de viagem do período, construindo uma narrativa muito pessoal e
independente daquela publicada pelo casal Agassiz acerca dessa
expedição. Apesar da juventude de seu autor, e de ele se encontrar na
expedição numa posição totalmente dependente das ordens e decisões de
Agassiz, o enfoque da viagem e da população com a qual ele esteve em
contato, composta sobretudo por mestiços da região amazônica, era
peculiarmente original. De fato, já nesse período o jovem James
mostrava os traços que, mais tarde, foram seguidamente apontados pelos
seus biógrafos como fundamentais à sua forma de ver o mundo, quais
sejam a empatia e o relativismo.
Menino índio de pé,
Desenho de William James, 1865-1866
(cortesia Houghton
Library, Harvard University)
Apesar
da fama de seu autor, na verdade os papéis brasileiros de James
continuam pouco conhecidos até o momento, com exceção das cartas desse
período, endereçadas a seus familiares. A organização dos papéis
brasileiros de James como um conjunto pertinente permite a análise dos
mesmos em termos da sua contribuição única ao campo da literatura de
viagem. Mais especificamente, os papéis de James ainda não foram
avaliados em termos de sua inserção no quadro da literatura de viagem a
respeito do Brasil, especialmente da Amazônia no século xix, para a
qual já se tem estabelecido um rico repertório de relatos de viagem.
Finalmente, a passagem de James pelo Brasil é virtualmente desconhecida
pelos estudiosos brasileiros, o que torna especialmente pertinente a
publicação e tradução dos seus papéis.
Ao apresentar os escritos de William James no Brasil, Brazil through the eyes of William James
aborda a história do envolvimento do jovem James na Expedição Thayer, a
análise de suas impressões, sentimentos e observações, na figura do
coletor voluntário subordinado aos ditames do líder da expedição,
localizando toda essa aventura no mapa da vida de James. De fato, em
1865, William James tinha 23 anos e iniciava seu segundo ano de estudos
na Escola de Medicina da Universidade de Harvard. Ao tomar conhecimento
de que um de seus professores prediletos — Louis Agassiz, então diretor
do Museu de Zoologia Comparada — preparava uma viagem de pesquisas ao
Brasil, James alistou-se ao projeto, embarcando na qualidade de coletor
voluntário, financiando sua participação às próprias custas.
Tratava-se, para James, de uma viagem educativa, nos moldes então
consagrados para os jovens das elites norte-americanas, ao mesmo tempo
em que a oportunidade de ausentar-se do país permitia que ele
refletisse sobre suas ambivalências profissionais. Como aluno e
assistente de Agassiz, James estava bem a par das discussões que
opunham seu mentor a Charles Darwin e seus seguidores, dirigindo suas
simpatias muito mais à teoria da evolução do que ao criacionismo
defendido pelo primeiro. A estadia brasileira de William James esteve
marcada tanto por problemas de saúde — no Rio de Janeiro James contraiu
varíola, que o deixou temporariamente cego — quanto por uma postura
ambivalente que mais de uma vez o levou a pensar em desistir da viagem.
Apesar dos percalços, a viagem de James ao Brasil tem sido discutida
por seus biógrafos como ponto decisivo na vida do filósofo do
pragmatismo, pois teria sido no decorrer desta que James teria decidido
a se dedicar à filosofia.
Em
sua estadia no Brasil, James permaneceu principalmente no Rio de
Janeiro, Belém, Manaus, e navegou parte do complexo amazônico. Indo
contra a corrente do momento, os registros de James sobre o Brasil são
peculiarmente empáticos, colidindo com a visão do mentor da viagem,
Agassiz, cuja posição política e ideológica o vinculava aos defensores
do racismo e das teorias da degeneração pelo hibridismo. Em mais de um
sentido, Brazil through the eyes of William James
é um projeto ambiciona apresentar uma nova visão de velhas questões. Ao
apresentar uma narrativa de viagem de um famoso filósofo da ciência,
participando de uma expedição liderada por outro famoso cientista,
ambos em posições hierárquicas opostas e exprimindo opiniões
contrárias, o livro propõe que se
relativize a abrangência das visões preconceituosas dos viajantes
estrangeiros no Brasil da segunda metade do século XIX.
Maria Helena Pereira Toledo Machado é professora no Departamento de História da USP.
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