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Reportagem
Do analógico ao digital: o longo caminho da experiência com a música
Por Luciana Palharini
10/03/2010

Há quem pense que não há, na história da música, revolução maior do que o formato digital. Mas do analógico ao digital, muita história se passou. Para isso, é preciso voltar bem atrás no tempo, em meados do século XIX, um tempo em que a música exigia a espera do evento que iria acontecer, quando a única possibilidade de experienciá-la era assistir uma orquestra que estaria na cidade. Exigia também silêncio, atenção, os ouvidos ficavam atentos tanto quanto os olhos, e o que se levava para casa eram apenas a memória e os sentidos.

A primeira invenção capaz de gravar e reproduzir o som e, consequentemente, de possibilitar a audição doméstica da música, foi criada em 1877, por Thomas Alva Edison (1847-1931), em Nova Jersey, nos Estados Unidos. O aparelho foi batizado de phonograph, que poderia ser traduzido por fonógrafo, e consistia num cone em cujo vértice era colocada uma membrana ou diafragma com uma agulha no centro e um cilindro metálico ligado a uma manivela que, acionada manualmente, fazia o cilindro girar com o propósito de gravar ou reproduzir um som. É o período dos cilindros, denominado por pesquisadores, como Eduardo Andrade, professor do curso de música do Instituto de Artes da Unicamp, como “período acústico mecânico”. Ou seja, intervenção elétrica zero.

O disco, na forma circular como conhecemos, hoje apelidado carinhosamente de “bolachão”, foi criado em 1887 por um imigrante alemão, Emile Berliner, e era tocado pelo gramofone, aparelho construído por Eldridge R. Johnson e que tinha um motor helicoidal. No início, era feito de goma-laca, uma secreção vegetal importada da Ásia. Caros, pesados e frágeis, os primeiros discos variavam de 60 a 120 rpm (rotações por minuto). Com o tempo, essa disparidade de velocidades logo caiu para um intervalo entre aproximadamente 76 e 82 rpm. E por volta de 1910, a Victor Talking Machine Company, antecessora da RCA Victor, adotou o 78 rpm como a velocidade padrão, e essa foi adotada por toda a indústria de discos. Os 78 rpm eram fabricados em sete polegadas de diâmetro e comportavam no máximo uma música de cada lado.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão corta o suprimento de goma-laca que ia para os Estados Unidos e a indústria fonográfica se vê obrigada a buscar outros materiais. O vinil, um plástico térmico muito mais leve e resistente que a goma-laca, foi o material escolhido e trazia uma nova vantagem sonora: estava totalmente apropriado à descoberta da gravação por microssulco (microgroove), entalhes de tamanho menor na superfície do disco. Em 1949, a RCA lança o disco de 45 rpm e um toca-discos especialmente desenhado para reproduzi-lo. Tal invenção só não fizera mais sucesso porque coexistiu com a chegada do disco de 33 1/3 rpm, que recebeu o nome de LP, do inglês long play, lançado em 1948 pela Columbia, e que se popularizou nos anos 1950 e 1960.

O LP foi, sem dúvida, a grande revolução musical da primeira metade do século XX. Com o advento do LP, o evento da audição musical passou a acontecer no ambiente doméstico. “O som ficava no meio da sala. Você comprava um disco do Chico Buarque, vinha o vizinho, vinha o amigo, ouvia-se o disco todo, um lado, depois o outro, discutindo o disco, acompanhado por uma bebida, era um evento. Tinha a coisa do fetiche da mercadoria, era um ritual”, conta o DJ Paulão, pesquisador e produtor musical, dono de uma respeitável coleção de discos. A denominação, long play, que abandona a referência técnica das rotações por minuto, diz tudo: o disco permite um maior armazenamento de informações em cada lado, passando a comportar muito mais músicas. De acordo com o jornalista Leonardo De Marchi, no artigo “A angústia do formato: uma história dos formatos fonográficos”, publicado na revista eletrônica e-compos, da Universidade Federal Fluminense, fruto de sua pesquisa sobre a indústria fonográfica independente e novas tecnologias de comunicação, o nome long play sugere uma “nova experiência de consumo sonoro, temporalmente ‘alongada' em relação aos formatos anteriores”, e é, a partir de então, o preferido pelo grande público e pela indústria fonográfica.

À medida que houve melhora da alta fidelidade da gravação, da durabilidade do material suporte em que o som era gravado (vinil) e da possibilidade de portar esse som, aumenta também o consumo, e é nos anos 1960 e 1970 que se tem um boom comercial na venda de discos. Nesse sentido, o padrão de consumo do LP merece atenção. A capa, com um grande volume de informações sobre o álbum e trabalhada com um requinte gráfico cada vez maior, coloca o disco na mesma categoria de valores do livro. “Com o surgimento da estética do álbum, os discos passam a ser vistos como obras de arte em si. O LP passa a ser consumido como livros, ou seja, um suporte fechado, passível de coleção em discotecas privadas – com status de objeto cultural, afinal julga-se a cultura musical de uma pessoa pela discoteca que possui”, afirma De Marchi.

Mas os anos de glória do LP, que não foram poucos, estavam prestes a ter um fim. Em 1983, surge um novo suporte, o compact disc ou CD, feito de alumínio, menor e mais leve do que um LP e com capacidade para armazenar aproximadamente 70 minutos de música. Está inaugurada a era digital, que tem como características praticidade e portabilidade: fácil de gravar, fácil de reproduzir, fácil de carregar.

A fita magnética já havia trazido as mudanças para o estabelecimento dessa nova fase. Criado bem antes, em 1935, o princípio magnético revolucionou os métodos de gravação em estúdio. “Não apenas as fitas magnéticas eram o suporte adequado às inovações tecnológicas como também eram maleáveis, podendo ser cortadas e editadas, criando novas técnicas de manipulação sonora no estúdio”, conta De Marchi. E trouxe, também, transformações no consumo da música: a possibilidade de se carregar o som no corpo, de ouvi-lo ao andar pelas ruas, com o surgimento da fita cassete e do walkman.

Com o CD, o princípio da portabilidade é o mesmo, o produto é inclusive mais delicado do que as fitas cassetes e exige um cuidado maior para se carregar. Mas a qualidade sonora do CD em relação à fita cassete carimbou a inovação do disc man, que se disseminou rapidamente em poucos anos. Também de forma rápida se deu a adoção da tecnologia no ambiente caseiro: em poucos anos, os aparelhos de som à base de madeira e aço que comportavam toca-discos foram substituídos por aparelhos mais modernos, feitos de plástico, com um CD player. Melhor dizendo, não havia opção: em menos de dez anos, não era mais possível comprar um aparelho de som para uso doméstico que tocasse LPs. Enquanto isso, coleções de discos eram colocadas no lixo por milhares de famílias e as fábricas de vinil foram desaparecendo. Foi a ditadura do CD.

A era da informação digital 

Não duraria muito tempo esse sucesso. Menos ainda do que o vinil foram os anos de glória do CD. A nova fase estreia com a chegada do motion picture expert group-layer 3, ou MP3. Totalmente popularizado nos dias de hoje, o MP3 é um arquivo compacto (1/12 do formato wav do CD) para transferência de dados. Em termos de indústria fonográfica, entramos na era da mobilidade da informação, que não está mais fechada em um suporte material. Como afirma DJ Paulão, “o digital é o imaterial. Você cria meios de acessar, mas o invólucro da música nem existe”.

É exatamente disso que se está falando. Como aponta De Marchi, “com os formatos virtuais – que não se restringem ao MP3 –, o próprio padrão de consumo se altera. Ao invés de se restringir a um objeto em si, surge um consumo diretamente on-line, transformando a gravação sonora numa informação transferível de suportes (do CD para um HD, para o iPod, para o CD, por exemplo). Isso significa que o formato fonográfico físico tornou-se uma tecnologia para armazenamento da informação, não mais um símbolo cultural em si, como o LP. Mais do que isso, com a convergência tecnológica, o consumo sonoro se expande por diversos meios de comunicação, abrindo o mercado fonográfico a outros setores industriais – empresas de telefonia, por exemplo”.

Se a pirataria, que já era possível desde o aparecimento da fita cassete, tomou proporções exorbitantes com a digitalização do processo de gravação e reprodução e a popularização do computador no começo dos anos 1990, seu espaço agora estava ainda mais garantido: o padrão de consumo da música passou por uma nova transformação, a possibilidade de acesso direto, sem mediações nem custo, aos arquivos digitais pela internet. “Essa facilidade tinha que ser vista pela gravadora como um convite à pirataria”, afirma enfaticamente DJ Paulão. Para ele, a maior responsabilidade da queda de vendas do CD é das próprias gravadoras. “Se o preço de consumo de um CD fosse bem mais em conta, desestimularia a indústria da pirataria e animaria as pessoas a investirem no artista. Só para dar um exemplo em reais, se o disco fosse algo em torno de R$ 8 e o disco pirata saísse a R$ 6 – porque, além do custo de produção, o vendedor também tem que ganhar –, dificilmente o cara iria se envolver na pirataria. A pessoa não vai piratear a R$ 6, algo que é legal, regular a R$ 8. Então, essa falta de visão da gravadora fez com que a pirataria ocupasse muito espaço e, a partir do momento em que ela está estabelecida, não tem mais volta”, completa.

Uma opção ao combate à pirataria tem movimentado o mercado na internet: a compra de músicas online. A Apple, fabricante do mais popular tocador de MP3, o iPod, desenvolveu recentemente um software de reprodução de áudio, o iTunes, compatível com computadores e sistemas operacionais utilizados comumente e que contém um componente, o iTunes Store, pelo qual os usuários podem comprar arquivos de mídia digital, como músicas. Alguns artistas e bandas, inclusive, têm lançado suas músicas na web para compra online em vários países. No Brasil, Roberto Carlos lançou pela primeira vez na web, em dezembro do ano passado, a canção “A mulher que eu amo”, tema da novela Viver a vida, da Rede Globo.

Mas para que comprar uma música na internet se é tão fácil encontrá-la para “baixar” gratuitamente? Essa é uma pergunta que muitas pessoas fariam hoje. Para DJ Paulão, é o que evidencia a mudança da relação com o trabalho do artista provocada pelo fácil acesso digital às obras e pelo alto custo dos originais em CD. “A relação com o artista se perdeu, a pessoa que consome o produto hoje não pensa em investir no artista, isso está muito distante”, comenta. Por esse motivo, existe uma tendência cada vez maior de disponibilização do trabalho pelo próprio artista. O maranhense Zeca Baleiro, por exemplo, tem lançado gratuitamente algumas de suas produções em seu site oficial.

Outra tendência são os sites de relacionamento entre artistas, utilizados cada vez mais para lançarem seus trabalhos e que oferecem espaço para postagem de composições próprias, release, fotos e comentários de “amigos”. DJ Goya, pesquisador e produtor musical em Campinas (SP), teve uma carreira breve e faleceu em dezembro de 2008. Mas é possível que sua filha, Clara, que não chegou a conhecer o pai, além de outros usuários da web, possam tomar contato com parte de suas produções graças ao Myspace, um dos sites de relacionamentos mais acessados em todo o mundo. Ao lado dele, existem outros, como o Last.fm e, mais recente, o Soundcloud.

Decadência das gravadoras – o retorno do vinil  

Não é mais possível viver com lucro de CDs hoje em dia. Os artistas são pagos basicamente pelos shows que apresentam. Mas, com a queda de vendas das gravadoras, elas acabam escolhendo produzir apenas o que é sinônimo de lucro garantido, os campeões em audiência, rejeitando muitos artistas e gerando uma classe de “órfãos” de gravadoras. Essa situação, ao lado de toda a facilidade de acesso ao desenvolvimento tecnológico digital, tem feito aumentar o número de estúdios de gravação independentes e, graças a isso, muitos artistas têm conseguido penetrar no cenário da música.

Além disso, existe atualmente um interesse muito grande por parte de um número crescente de artistas em lançar sua obra em vinil. “O vinil, eu não sei se é o futuro, mas o CD não é”, responde taxativamente DJ Paulão. “O vinil não é um formato que estimula a pirataria. A aparelhagem de vinil para a pirataria é muito cara. Não é barato, nem tão simples quanto a produção de um CD. A produção de CD é desburocratizada, você seleciona, baixa, queima e pronto. O vinil, neste momento, está enterrando o CD, porque o CD simplesmente como proposta comercial não contempla mais”, conclui.

Apesar de ter sofrido um golpe nos anos 1980, o vinil não desapareceu e manteve uma classe de fãs e colecionadores. Entre eles, estão os DJs. Mesmo no universo da música eletrônica, que é composta e gravada através do formato digital, o número de DJs que defendem o uso do vinil é bastante grande. É o que mostra o trabalho de Pedro Peixoto Ferreira, apresentado na 24ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em 2004, cujo título é bastante esclarecedor: “Analógico ou digital: a politização nos discursos dos DJs”. Analisando fóruns de discussão virtuais frequentados pelos profissionais, Ferreira aponta duas naturezas diversas e imbricadas no discurso de argumentação dos DJs: uma ligada à estética que esse suporte proporciona, outra de natureza técnica. A questão de ser mais bonito um DJ tocar vinil, das mixagens serem mais “calorosas” em contrapartida à “frieza” do CD, são alguns dos argumentos estéticos que aparecem em suas falas. Entre os argumentos técnicos estão a segurança proporcionada pelo vinil no processo de mixagens, ao contrário do CD, que é um meio inseguro; o fato de ser uma mídia física e proporcionar uma “materialidade imediata” ao uso das mãos e dos olhos, contra a invisibilidade do que está sendo tocado em um CD ; a possibilidade de se atingir efeitos sonoros que dependem da materialidade do vinil, que os torna mais reais do que as simulações digitais “não convincentes” e a impossibilidade do meio digital em atingir frequências mais graves, ou “subgraves”, tão importantes aos ouvidos na opinião dos fãs do vinil.

Esse último argumento técnico é, geralmente, o mais citado entre os colecionadores e amantes desse suporte. O digital, como diria DJ Paulão, “sempre vai ser uma maneira de copiar o analógico. O analógico é nossa voz, é o instrumento da maneira como a gente ouve, é um comportamento de onda. O digital são quadradinhos que imitam a onda. Tecnologicamente, cada vez mais os quadradinhos estão menores e a cópia cada vez mais perto da onda, mas nunca vai ser a onda”. É o que explica Ferreira em seu artigo, que traz imagens ampliadas dos sulcos em um disco de vinil e das micro-covas de um CD, mostrando a diferença entre eles. “Não se trata de uma disputa meramente simbólica. Enquanto a gravação analógica é realizada através da transdução do som, a gravação digital é realizada através da sua codificação. A diferença não é superficial e interfere infra-estruturalmente na experiência sonora”, explica o pesquisador. “Na transdução, há sempre uma abertura para o caos, para o imprevisto, para o indeterminado, ao passo que a codificação se define justamente pela organização e pelo controle dos processos. A principal consequência dessa codificação é a necessária eliminação de todas aquelas dimensões sonoras que não podem ser controladas e organizadas, de tudo o que não cabe na ‘grade' da digitalização”, complementa.