09/03/2006
ComCiência -
A linguagem da cidade é um exemplo de texto não verbal. O espaço urbano
é uma sucessão de imagens que marcam o cenário cultural da nossa rotina
e a identificam como urbana. O que se caracterizaria por código da
cidade? Quais seriam as principais características dessa linguagem
própria da cidade?
Lucrécia D'Aléssio Ferrara - A
cidade é objeto de investigação de várias áreas do conhecimento:
arquitetura, demografia, sociologia, economia. Cada uma dessas áreas
estuda distintas manifestações do espaço urbano: a funcionalidade e as
políticas da sua edificação, seu adensamento populacional, seus
movimentos e organizações sociais, sua riqueza material e produtiva,
seu território e sua geopolítica. Em conseqüência dessa múltipla
atenção científica, é necessário perguntar: a complexidade científica
do espaço urbano decorre da sua interdisciplinaridade ou a própria
cidade é um complexo objeto de investigação porque decorre da
experiência humana tecida e tramada nos meandros da vivência cotidiana?
Aquela vivência constitui a realidade fenomênica da cidade e é ela que
atrai a atenção das várias áreas das ciências humanas. Porém, essa
realidade só é passível de estudo através de representações, de signos
que, no tempo e no espaço, marcam o modo como o homem se relaciona com
a cidade, dela se apropria e a transforma. A contínua transformação
dessas representações desenha a imagem da cidade e constitui a
linguagem da qual se ocupam, direta ou indiretamente, todas as áreas
científicas que a têm como objeto de investigação.
ComCiência - A
cidade medieval é fundadora de um dos principais símbolos da cidade, a
multidão, imagem que permanece até o século XIX. Entretanto, o
capitalismo industrial como imagem cultural urbana descaracteriza a
cidade como espaço público enfraquecendo o papel das multidões e
resultando numa colisão entre público e privado. A senhora poderia
falar mais sobre este processo de desaparecimento das multidões e suas
conseqüências? Neste contexto, onde prevalece o privado sobre o
público, quais os novos signos do espaço urbano com suas praças, ruas,
etc?
Ferrara -
Da aldeia à cidade cosmopolita, à metrópole ou à megalópole não há
rupturas ou cisões, mas nexos e signos em metamorfose, em semiose
contínua. Do flaneur do século XIX ao voyeur dos nossos dias, temos
uma longa história com distintas características semióticas e
interativas, porém, na atualidade, misturam-se todas as manifestações
anteriores. Desse modo, o espaço público da cidade cosmopolita marcado
pelas fabulações orais que zelavam pela tradição e pela manutenção de
costumes e valores, expande-se no espaço público televisivo consumido
através da imagem que re-apresenta, igualmente, uma escala de valores e
desejos a serem imitados, ao mesmo tempo em que incorpora o espaço
fisicamente privado, mas publicamente vivido. Na mesma continuidade, a
cidade contemporânea, marcada pela aceleração da cibercultura, cria a
compulsiva mediação de um espaço público virtual da telecomunicação e
da telepresença de um coletivo anônimo que apresenta um espaço público
global/local sem limites geográficos ou sociais rígidos, mas fluído e
flexível expandido nas ruas do planeta.
Não
se trata de lastimar de modo nostálgico a perda dos cenários da cidade
cosmopolita, mas de perceber o cotidiano da cidade como aprendizagem
constante de novas experiências.
ComCiência - A
senhora fez um estudo sobre a Praça da Sé, em São Paulo. Sem as
multidões, qual o papel de um espaço como essa praça numa grande
metrópole como São Paulo? Porque a senhora considera que esse espaço se
tornou ilegível para o usuário?
Ferrara -
São Paulo é uma cidade que se constrói e reconstrói na expectativa de
aprontar-se para desempenhar, ontem ou hoje, o papel da maior cidade
industrial da América Latina ou de incontestável destino de magalópole
global. Nessa operação, a cidade não soube zelar pela manutenção dos
signos que representavam suas referências históricas ou emblemáticas.
Esse é o caso da Praça da Sé e do seu entorno. Na desarticulação e
fragmentação da cidade rumo ao planalto da Paulista, ou das margens do
Pinheiros à procura de locais rentáveis para especulação imobiliária e
econômico-financeira, aqueles locais foram deixados à deriva da atenção
pública do poder constituído ou da sua população e, atualmente, pagam o
preço da ilegibilidade e da fraqueza dos seus significados urbanos,
ainda que sejam articulados esforços para resgatá-los como pontos
turísticos.
ComCiência - A
partir da segunda metade do século XX a imagem da cidade sofre o
impacto de uma cultura e um consumo de massa, possibilitados pelo
acesso à informação via televisão e pela grande oferta de produtos
vindos de um mundo industrial que opera em constante superprodução. Se
este foi o desafio para a cidade do século XX, o que se pode esperar
para a cidade do século XXI?
Ferrara -
O flaneur foi o ícone que celebrizou a cidade cosmopolita e escreveu
sua história. O efeito zapping foi o alerta de que além do monitor
não havia uma recepção passiva, e a sutileza comercial da televisão
tratou de rever sua programação para identificar o receptor, tirando-o
do anonimato e tornando-o, supostamente, partícipe dos destinos da sua
programação e da sua aceitação pública. A megalópole do século XXI com
mais de 10 milhões de habitantes não escreve o fim da história urbana,
mas requer a escritura de outros capítulos cujos autores estão
dispersos na realidade singular e contraditória dos lugares do mundo,
mas despertos para a urgente construção de um meta-território que deve
caracterizar-se pelo exercício de apropriação social e cultural das
raízes que sedimentam a identidade coletiva.
É
possível que, habituados a uma ação comandada e pré-definida,
entendamos que esse contágio está à beira da utopia, porém essa ação
surge como possibilidade de mobilizar uma consciência universal que
constitui, talvez, a possível mudança do mundo contemporâneo. As
manifestações populares que, à maneira de fóruns sociais, são
apresentadas diariamente nos jornais impressos, falados e digitais são
claros indícios de reações coletivas que acenam nessa direção e nos
vários cantos do planeta.
ComCiência - Como
os indivíduos podem se orientar em meio à multiplicidade de signos que
a cidade contemporânea oferece? Como isso compromete a leitura das
imagens da cidade?
Ferrara -
A cidade contemporânea é pluricentralizada na medida em que se
verticaliza e se horizontaliza, ao mesmo tempo. Portanto, a
legibilidade dos seus signos supõe operar com escrituras verbais e não
verbais localizadas, mas descentralizadas ou pluricentralizadas. Ou
seja, a leitura da cidade em suas imagens supõe fragmentá-la na
articulação dos seus lugares e não na suposta totalidade do seu
conjunto.
Um
possível mapa mental da cidade vai muito além da simples funcionalidade
utilitária que facilitaria deslocamentos ou direções, ao contrário, a
leitura da cidade é não verbal e está diretamente relacionada à
capacidade que o homem desenvolve para produzir alternativas de
subsistência e a encontrar, no cotidiano, as melhores soluções para
comunicar-se e encontrar-se individual e coletivamente. Trata-se de uma
aprendizagem que decorre da maior experiência cultural da humanidade:
aprender a viver de modo solidário.
ComCiência -
Ainda comparando imagens da cidade medieval com a cidade contemporânea,
o homem medieval usava seu corpo como representação da estrutura social
ostentando trajes nas procissões e em outros momentos solenes que o
diferenciava dos demais. É certo dizer que o corpo como suporte foi
substituído pela posse e exibição de objetos? Como isso acontece nas
diferentes classes sociais?
Ferrara -
Dentro da mesma concepção de que a cidade apresenta uma contínua
transformação das suas representações semióticas, sem sofrer bruscas
interrupções ou explosões culturais, podemos observar que desde a Idade
Média, o corpo tem sido eficiente estrutura comunicativa através de
signos que a ele aderem e são representações de classes, hierarquias e
aspirações sociais. A moda e seus fetiches são apliques que expandem o
corpo fazendo-o signo sócio-cultural que identifica classes sociais
quando se distinguem pela manifestação de múltiplas preferências
estéticas que comunicam poder ou expectativas de poder.
|