As expectativas em relação ao mundo de possibilidades que a televisão digital pode trazer não esgotam as discussões sobre a nova tecnologia. Quase dois anos após a inauguração do sistema no Brasil, o processo de implantação segue permeado pelos embates acerca de temas como regulamentação, inclusão e democratização.
A portaria 24/2009 do Ministério das Comunicações, que impede a multiprogramação para TVs comerciais, acendeu o debate sobre o tema. A norma proíbe que um canal comercial digital seja dividido em quatro para oferecer diferentes programações ao telespectador. A Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra) contesta as regras, alegando que essa possibilidade é uma das principais vantagens do sistema japonês, o adotado para a TV digital brasileira. A norma regulamenta a multiprogramação apenas por canais ligados a órgãos e entidades integrantes dos poderes da União, o que restringe o recurso aos canais: TV Brasil, TV Senado, TV Câmara e TV Justiça.
A associação divulgou um comunicado em que argumenta contra a portaria do Ministério das Comunicações. A instituição considera inadequada a medida do governo, uma vez que o padrão escolhido para a TV digital, a partir do japonês e adaptado às necessidades do Brasil, tem como principal característica o multicanal. Não faz sentido, portanto, proibir a utilização de uma das características principais do sistema brasileiro de TV digital.
Está em discussão pelo governo a possibilidade de estabelecer normas e critérios que regulamentem uma futura permissão de multiprogramação para emissoras comerciais de TV aberta. De acordo com o site da Abra, o instrumento jurídico, que poderá ser um decreto da Presidência da República ou uma portaria do Ministério das Comunicações, deve estar concluído no prazo de noventa dias.
A professora Ana Silvia Médola, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e líder do Grupo de Estudos Audiovisuais (GEA), acredita que o debate ainda se manterá aquecido. “Há possibilidade de desenvolver a multiprogramação por conta do sistema japonês que adotamos aqui e as emissoras estão pleiteando essa possibilidade. O Ministério das Comunicações alega que precisa regulamentar, para evitar problemas, tais como a sublocação de canais”, explica.
Outro entrave que gera polêmica é a questão das concessões. Ericson Meister Scorsim, doutor em direito pela USP e autor do livro TV digital e comunicação social: aspectos regulatórios (Fórum, 2008) fala sobre os problemas da concessão na radiodifusão brasileira em um artigo publicado em seu site. De acordo com Scorsim, a concessão de serviço público tem, na interpretação clássica, o objetivo de transferir uma atividade estatal com potencial de lucro à iniciativa privada, que passa a prestar o serviço ao público mediante cobrança de tarifa. No serviço de televisão por radiodifusão, no entanto, nada é cobrado dos usuários.
“ A concessão do serviço público de televisão por radiodifusão não se molda ao instituto clássico da concessão, pois a existência de prerrogativas administrativas em favor da organização, da disciplina e da fixação do conteúdo do serviço, naturais à concessão, é incompatível com o exercício da liberdade de comunicação social pelas emissoras de televisão. Em sendo o poder público o titular do serviço público, em caráter exclusivo, na concessão há o poder de fixar o conteúdo da prestação material, disciplinando, inclusive, a organização interna da gestão”, argumenta Scorsim, explicitando a incompatibilidade entre o conceito clássico de concessão e o serviço de televisão por radiodifusão adotado no Brasil.
Acesso ao sinal
A televisão digital foi inaugurada no Brasil no dia 02 de dezembro de 2007, na cidade de São Paulo, em um esforço conjunto de diversas emissoras. Atualmente, o sinal digital está presente em vinte e uma cidades de dezessetes estados brasileiros, além do Distrito Federal, segundo informações do Fórum do Sistema Brasileiro de TV digital Terrestre (Fórum SBTVD). No entanto, dezesseis dessas cidades recebem transmissões digitais de apenas uma emissora, em sua maioria as afiliadas locais da Rede Globo.
Para assistir à programação digital, além de já possuir um televisor em boas condições e uma antena para recepção de canais UHF, o telespectador precisa adquirir um conversor (também chamado set-top box), que custa cerca de R$ 600,00, de acordo com a Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros). Há diferentes versões do equipamento disponíveis no mercado. Na internet é possível encontrar conversores mais simples, com menos recursos, por pouco mais de R$ 300,00. A expectativa é que, com o aumento da demanda, os preços caiam nos próximos anos. Há, ainda, a opção dos televisores com conversor embutido.
É através de um televisor dessa nova geração que a dona de casa Maria Augusta Meireles e sua família se informam, assistem a shows, seriados e novelas na cidade de São Paulo. Ela garante que a imagem e o som são tão nítidos que não se acostumaria a ver os programas preferidos em uma TV convencional. “Já estou bem habituada a usar o controle remoto para algumas funções que a minha TV tem e aguardo ansiosa pelas novidades, como o conteúdo interativo”, diz.
Os aparelhos mais simples garantem apenas imagem e som de boa qualidade, com grau de nitidez variável, de acordo com a resolução do televisor. Para imagem em alta definição (1920x1080 pixels), não basta o conversor. É preciso ter um aparelho de televisão Full HDTV (do inglês, High Definition Television) de, no mínimo, 42 polegadas.
Você escolhe o final
Lembra-se daquele programa em que os telespectadores votavam em uma das opções de final para a história? Com a TV digital isso será possível graças à interatividade. Mas não será preciso usar o telefone para escolher o final de um episódio, votar no candidato que deve deixar o reality show, ou ainda comprar o eletrodoméstico “mil e uma utilidades”. Todas essas escolhas poderão ser feitas por meio do controle remoto, sem ter que levantar do sofá. Mais uma comodidade que a tecnologia garante. Entretanto, a interatividade – possibilidade que gera grande expectativa em relação à TV digital – ainda não está disponível. Depende da chegada ao mercado do middleware Ginga, tecnologia que deve ser instalada nos conversores para possibilitar a utilização do conteúdo interativo. A promessa é que o Ginga esteja disponível no mercado em dezembro.
Marcelo Moreno, do Departamento de Informática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro da (PUC-Rio) e coordenador técnico do Laboratório TeleMídia, grupo de pesquisa responsável pela especificação Ginga-NCL (do inglês, Nested Context Language), acredita que, embora o Brasil tenha saído atrasado no desenvolvimento das tecnologias para a TV digital, o atraso acabou possibilitando vantagens. “Pudemos estudar melhor as características desse mercado, observar o que já tinha sido feito e temos um produto que, atualmente, é o melhor do mercado”, explica. Prova disso é a aprovação do sistema NCL em abril deste ano pela União Internacional de Telecomunicações (UIT). Eles trazem a especificação completa do sistema de NCL como solução para o desenvolvimento de aplicações em serviços Internet Protocol Television ( IPTV ). Mas, além do Ginga, para ter acesso a todas as possibilidades de interatividade, o telespectador precisa, ainda, conectar o conversor digital (ou o televisor integrado) a uma rede de telecomunicações, como linha telefônica fixa, celular ou banda larga.
Nova mídia
Imagem em alta definição e conteúdo interativo são recursos que necessitam de investimento das emissoras e devem ser desenvolvidos e disponibilizados aos poucos. A mudança do sinal digital para o analógico não significa somente o aperfeiçoamento de uma tecnologia, explicam Ana Silvia Médola e Lauro Teixeira, da Unesp, no artigo “Televisão digital interativa e o desafio da usabilidade para a comunicação”. A TV digital é uma nova mídia, que associa dispositivos tecnológicos da televisão e da internet, criando lógicas expressivas próprias.
“Encaro a TV digital como um processo mais amplo de midiatização, pautado em outra plataforma, que é a digital. Com isso, temos uma mudança de paradigma. Por ser uma mídia que tem um aspecto infoeletrônico, trará muitos ganhos e benefícios, como imagens e som muito nítidos, sem ruídos e interferências, e possibilidade de expansão no número de canais”, analisa Médola.
Nesse contexto, já é grande a demanda por profissionais especializados, tanto na criação quanto na produção de conteúdo voltado à nova tecnologia, como afirma Juliano Maurício de Carvalho, do Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã (Lecotec) e coordenador do mestrado em TV digital da Unesp. É o primeiro mestrado do país voltado à nova tecnologia. Carvalho conta que a criação do curso atendeu não só à demanda do mercado, mas, também, a um incentivo do próprio governo federal, por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em busca do aumento de recursos humanos e de referencial teórico sobre o assunto no Brasil.
Para Carvalho, o benefício mais importante da nova tecnologia para o país é a possibilidade da inclusão digital, colocada como primeiro objetivo no decreto presidencial de n° 4901/3, de 26 de novembro de 2003, que instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). “Mas é um aspecto muito pouco tocado hoje pelo governo e pelas emissoras de televisão”, afirma o professor. Carvalho explica que o governo federal deu muita ênfase à questão da inclusão no começo dos debates sobre a nova tecnologia, mas esqueceu desse ponto nas etapas seguintes do processo de implantação. Entre as expectativas de inclusão, por meio da TV digital, está o acesso à internet e a serviços públicos. No entanto, utilizado como browser da internet, o conversor digital será lento e deficiente, em comparação com o computador, segundo informações do Fórum SBTVD.
Diante do cenário atual, a possibilidade de que a democratização digital, tão falada nos discursos a respeito da implantação do sistema no Brasil, torne-se realidade é considerada remota pelo professor da Unesp. “O grande mercado de televisão, no Brasil, é comercial e o interesse das empresas não é a democratização. Mas existe um grande debate e pode haver mudança nesse cenário”, avalia Carvalho.
Expectativa dos brasileiros
Desde a inauguração da TV digital brasileira, a transmissão analógica tem sido mantida e os dois tipos de sinal funcionam simultaneamente. De acordo com o cronograma estabelecido pelo governo federal, todas as emissoras do país deverão passar a transmitir suas programações também em sinal digital até 2013 e o desligamento do sinal analógico está previsto para 2016. A TV analógica cobre, atualmente, 99,84% dos municípios brasileiros, segundo dados do Fórum SBTVD. Os televisores estão presentes em 95,22% dos lares, ultrapassando, inclusive, o número de casas com geladeira, de acordo com a Eletros. Para Carvalho, as emissoras não deverão enfrentar problemas para cumprir o cronograma de migração do sinal. No entanto, resta saber se a sociedade brasileira estará disposta a investir na TV digital nos próximos sete anos.
A melhor qualidade de imagem – mais nítida, sem fantasmas ou chuviscos – e o acesso a mais canais são os atributos considerados mais importantes pela população brasileira para a adoção da TV digital, segundo o Mapeamento de Demanda realizado pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD). A menor demanda pela interatividade é devida ao desconhecimento do recurso por parte da população, afirma o CPqD. Qualidade de imagem e maior número de canais são vantagens já oferecidas por operadoras de TV por assinatura e evidenciadas por estratégias de marketing.
A demanda por aparelhos que permitem acesso ao sinal digital tem crescido de maneira gradativa, com alto interesse dos consumidores pelos televisores de tela plana com conversores integrados, segundo a Eletros. A associação avalia que o aumento da procura está de acordo com o esperado e deve influenciar a queda nos preços dos aparelhos.
Para Carvalho, diversos fatores devem ser levados em consideração na análise do interesse dos brasileiros pela nova tecnologia. “Por exemplo, qual será o comportamento da população na Copa do Mundo de 2010 e na de 2014? Que marketing haverá, por parte das emissoras, em relação à nova TV digital?”, indaga o professor. Carvalho lembra que, no Brasil, a venda de televisores costuma aumentar durante as copas. O investimento, por parte das emissoras, na oferta de imagens em alta definição e de conteúdo interativo – como a opção de assistir a uma jogada a partir de diferentes ângulos, por exemplo – pode incentivar o aumento da demanda.
Já para a parcela da população que não pode investir na compra dos novos aparelhos, Carvalho avalia que haverá dificuldades, considerando-se o cenário atual. Mas, ressalta que é cedo para conclusões e que diversas variáveis podem modificar a situação, utilizando como exemplo a hipótese de que, próximo ao desligamento do sinal analógico, o governo ofereça subsídios para a compra dos aparelhos digitais. O professor da Unesp acredita que tudo dependerá do comportamento do consumidor: “Se a pessoa puder marcar uma consulta no Sistema Único de Saúde (SUS) pelo televisor, por exemplo, a TV digital pode passar a ser mais importante que o telefone”.
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