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Vacinas para doenças negligenciadas ganham força com parcerias
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Reportagem
Vacinas para doenças negligenciadas ganham força com parcerias
Por Juliana Passos e Patrícia Santos
10/10/2014
Após 30 anos de pesquisas sobre esquistossomose – a barriga d'água –, a pesquisadora Miriam Tendler, da Fundação Oswaldo Cruz, coordena a fase final de testes da vacina contra a doença que atinge 200 milhões de pessoas no mundo. Esta é a segunda fase de testes em humanos, que será realizada em duas áreas endêmicas, uma no Brasil e outra em um país africano, a exemplo da primeira fase, mas com um maior número de pessoas. Tendler explica que colocar um medicamento em escala é um dos principais desafios.

A pesquisadora comemora a chegada à fase dois, sendo a pesquisa brasileira reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um modelo a ser seguido, mas ela evita falar em prazos para o uso em larga escala. “Nos próximos anos, a vacina estará disponibilizada para uso em maior escala, não é ainda em larga escala. As fases clínicas vão sendo ampliadas de tal maneira que quando você avança de fases clínicas para uma utilização em alguns milhares de pessoas em algumas áreas endêmicas você já está usando, mas a vacina não está liberada, porque ainda está em fase de testes. Isso é feito gradativamente e nos próximos anos será concluído”, explica.

Tendler está confiante com o sucesso da vacina para “doenças da pobreza”. Esse é o termo usado pela OMS que engloba doenças tropicais negligenciadas, o qual ela não abre mão de usar. “Hoje se usa 'doenças da pobreza' porque estão ligadas a áreas endêmicas em países pobres. Do ponto de vista ético, epidemiológico, social, moral, técnico, todos os lados que você quiser ver, é mais correto falar em ‘doenças da pobreza’, que é um conjunto de doenças bem caracterizado”, afirma.

O salto de financiamento, na última década, permitiu que os estudos passassem para a fase de ganho de escala. Essa maior disponibilidade de recursos também é percebida pelo coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Vacinas (INCTV), Ricardo Gazzinelli. Ele recebeu, junto com Ana Paula Fernandes, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Prêmio Péter Murányi 2014, concedido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por desenvolver em parceria uma vacina contra leishmaniose visceral canina. O produto foi desenvolvido em conjunto com o laboratório Hertape Calier e a empresa está realizando testes clínicos na Espanha com a ideia de comercializar a Leish-Tec na Europa. Há perspectivas promissoras também para que a vacina para humanos se torne disponível.

Assim como nas pesquisas para a vacina contra leishmaniose, os estudos de Miriam Tendler também ganharam impulso por terem despertado interesse da indústria veterinária. “No nosso caso, as duas pesquisas andaram pari passu (simultaneamente). O primeiro interesse é sempre veterinário e, por conta disso, criamos uma parceria público-privada. Foi essa parceria que nos permitiu ganhar um financiamento de R$ 6 milhões em 2006 da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para pesquisa em humanos e que também auxilia no progresso da vacina para animais”, explica.

Gazzinelli observa que os investimentos para produtos que combatam doenças negligenciadas estão mais frequentes. “Houve mudanças na visão da indústria e ela está mais interessada em vacinas contra doenças antes mais negligenciadas. A economia dos países em desenvolvimento melhorou. Há um mercado enorme no Brasil, na China e na Índia. Para uma vacina contra a dengue, por exemplo, com certeza vai haver mercado”, afirma.

O próprio INCTV, que enfoca doenças negligenciadas em suas ações, tem se aproximado da indústria para colocar em produção em escalas maiores vacinas desenvolvidas por seus pesquisadores. O instituto estuda e desenvolve formulações vacinais e aquelas promissoras entram na dinâmica do desenvolvimento de vacinas com os testes clínicos. “Essa é a etapa cara do processo. Normalmente é realizada em parceria com indústrias interessadas, públicas ou privadas, que poderão oferecer condições de produção extremamente controladas”, explica Gazzinelli. Outra empresa em parceria com o INCTV é a Bio-Manguinhos – instituição pública sediada na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que, em 2013, produziu sete das 15 vacinas oferecidas no Calendário Básico de Vacinação do Brasil. Essas instituições estão trabalhando no desenvolvimento de vacinas contra a dengue, a leptospirose e a influenza.

A visibilidade das pesquisas brasileiras no exterior também contribui para o maior interesse sobre o tema, na avaliação de Miriam Tendler. “Na medida em que o Brasil tem uma credibilidade maior no cenário internacional, a gente tem mais facilidade de colaborações com grupos de fora que têm mais acesso à tecnologia. Existe uma comunidade muito grande nos países do norte, muito maior do que no Brasil, que tem pesquisas na área, e isso tudo cria fomento. Digo, no nosso caso, que nos últimos 10 anos houve um maior interesse de parcerias e as parcerias são fundamentais”, conta.

Para a médica Lucia Brum, da organização Médicos Sem Fronteiras, o Brasil historicamente contribuiu muito para investigações em doenças negligenciadas, uma vez que das 17 atualmente listadas pela OMS, 14 são prevalentes no país. Ao mesmo tempo, ela vê falhas que começam desde a formação dos médicos, que em muitos casos desconhecem o diagnóstico das doenças, o que gera um ciclo de esquecimento. “Se os médicos não notificam, não há dados. Sem dados, o Ministério da Saúde não faz orçamento. E sem orçamento não há desenvolvimento”, avalia. Brum destaca que, apesar dos esforços, 98% dos investimentos mundiais da indústria farmacêutica é destinado para produção de cosméticos, enquanto há 2 bilhões de pessoas infectadas por doenças negligenciadas. O custo também é um impedimento para o acesso aos tratamentos que muitas vezes existem, mas são inacessíveis para a maioria dos doentes. Atualmente, a organização trabalha em estudos e divulgação de testes para diagnosticar a doença de Chagas, foco dos Médicos Sem Fronteira nas Américas em doenças negligenciadas.

 No Brasil, vacinação impacta em equidade

A lista das doenças negligenciadas ou doenças da pobreza mais preocupantes muda de tempos em tempos. Epidemias de febre amarela, peste bubônica e varíola já foram constantes no Brasil no século passado, vitimando principalmente a população que vivia em moradias precárias. Além de controlar essas doenças, algumas regiões do país conseguiram também a erradicação da malária, como o Rio de Janeiro. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) tem mais de 40 anos e acumula algumas vitórias na missão de erradicá-las. Um dos impactos positivos das imunizações é a redução da mortalidade infantil por 100 mil menores de cinco anos, que diminuiu 70% desde a década de 1980.

“A vacina foi um grande mecanismo para que a mortalidade infantil diminuísse. Isso reduz as iniquidades, à medida que beneficia a maior parte da população”, afirma a coordenadora do PNI, Carla Domingues. Ela lembra que não há casos de sarampo no Brasil desde 2001, sendo que antigamente havia enfermarias exclusivas para tratar as crianças dessa doença nos hospitais. Além do sarampo, o PNI contabiliza a erradicação da poliomielite, a eliminação da rubéola e do tétano neonatal.

Para Domingues, o programa de vacinação brasileiro se diferencia em relação a outros países por fazer parte de uma estrutura nacional em que há parcerias com estados e municípios, participação da comunidade científica, mobilização da população para adesão às campanhas, além da obtenção de 96% das vacinas a partir de instituições públicas nacionais. A missão do PNI é organizar a política nacional de vacinação, contribuindo para o controle, eliminação e ou erradicação de doenças imunopreveníveis, utilizando distintas estratégias de vacinação (rotina, campanhas, bloqueios e intensificação), desenvolvidas de forma hierarquizada e descentralizada.

Com grandes e importantes ambições, o investimento anual em vacinas para o PNI é da ordem de R$ 3 bilhões, mas não há atualmente um estudo amplo do custo e do impacto socioeconômico do programa, o que incluiria as despesas com transporte, cadeia de armazenamento, recursos humanos, entre outros. No entanto, desde 2006, há avaliações de custo-efetividade para cada nova vacina a ser introduzida no programa, em que se verifica estimativas de diminuição de casos da doença e óbitos, o impacto no serviço de saúde, a diminuição de atendimentos em hospital, entre outros aspectos.

 União de esforços internacionais em pesquisa

A OMS está testando uma base de dados sobre doenças negligenciadas que deverá receber um investimento de US$ 11,5 milhões, tanto para seu desenvolvimento como para a compra de publicações para serem disponibilizadas. A proposta, apresentada em 12 de setembro na revista Science, tem como objetivo reunir dados sobre tratamentos, testes clínicos, resumos dessas análises e informações de patentes. O professor da Universidade Estadual de Santa Catarina envolvido na publicação e integrante da elaboração do sistema, José Francisco Salm Júnior, explica a ideia: "Ao analisar um resultado de uma pesquisa, será possível fazer reconhecimento de entidades dessa pesquisa e recomendá-las para o usuário, que poderá ser um órgão governamental. Não só apresento (nessa recomendação) o conceito que está sendo buscado, mas todo relacionamento (institucional) que representa o conceito em cima dessa base".

A lista de doenças negligenciadas da Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeia 17 enfermidades que afetam mais de 1 bilhão de pessoas no mundo e são endêmicas em 149 países. O ebola e a malária não estão entre elas. Uma conquista recente na eliminação de doenças negligenciadas aconteceu no Equador e na Colômbia que, entre 2013 e 2014, eliminaram a onconcercose depois de implementar diversas ações durante décadas, segundo a OMS.

Em 2013, todos os países membros da organização foram convocados a continuar os esforços para prevenção, controle, eliminação e erradicação das doenças negligenciadas, fortalecendo a vigilância e as intervenções por meio de uma resolução da Assembleia Mundial da Saúde, fórum que envolve ministros e gestores de saúde de todos os países membros da OMS.

Outras iniciativas têm ações e investimentos junto aos países membros, como a Global Immunization Vision and Strategy (GIVS), lançada em 2006 em parceria com o Unicef, envolvendo discussões com os países e parceiros. A proposta era de, em 10 anos, controlar a morbidade e mortalidade por doenças preveníveis por vacinas e ajudar países a imunizarem mais pessoas, de crianças a idosos, com maior variedade de vacinas com tecnologias mais novas.

O compromisso com imunização, porém, não foi mantido em todos os países e a GIVS estava distante de suas metas. Como novo marco, foi estabelecida a Década de Vacinas (DoV) para o período de 2010 a 2020, e uma nova estratégia, o Global Vaccine Action Plan (GVAP). A iniciativa foi apresentada em 2013 como conjunto de ações para prevenir milhões de mortes através de acesso mais equitativo a vacinas. O GVAP deverá acelerar o controle de todas as doenças preveníveis por vacinas, sendo que a erradicação da pólio é tida como um possível marco. O programa também visa estimular pesquisa e desenvolvimento para a próxima geração de vacinas.

A OMS estima que a imunização previna de 2 a 3 milhões de mortes a cada ano, mas cerca de 21,8 milhões de crianças em todo o mundo ainda não estão recebendo vacinas básicas, sendo que a metade delas vive na Índia, na Nigéria e no Paquistão. Entre os principais desafios está a necessidade de priorizar vacinação de rotina, além de melhorar recursos, gestão, monitoramento e supervisão.