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Reportagem
Prevenir violência funciona mais do que reduzir maioridade
Por Sérgio Mattos
10/12/2005

Crianças e adolescentes são mais vítimas do que responsáveis por violência. Em São Paulo, por exemplo, levantamento feito em 2003, pela Secretaria de Segurança Pública, mostrou que 3% dos homicídios dolosos e menos de 10% dos atos criminosos registrados no estado foram cometidos por menores. Já o número de crianças e adolescentes assassinados no Brasil, segundo dados do IBGE de 2002, é de 9,15 para cada 100 mil, o que corresponde à cerca de 16 homicídios por dia de pessoas situadas na faixa dos 0 aos 18 anos. Apesar disso, a violência cometida por crianças e adolescentes parece preocupar mais a sociedade brasileira do que a violência por eles sofrida.

Para a advogada Karyna Sposato, diretora-executiva do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), o mito que se criou em relação à periculosidade e alta freqüência da violência praticada por menores se deve à sensação de insegurança e ao “discurso do medo” que prevalece na sociedade. Segundo ela, os meios de comunicação repercutem os crimes mais graves – sobretudo quando cometidos por menores – de um modo muito mais intenso do que eles acontecem na realidade e, assim, contribuem decisivamente na construção desse discurso do medo. Nesse contexto, em que a sociedade se sente ameaçada, o aumento da repressão é considerado como solução ideal para o problema. Pesquisa publicada no ano passado pelo Datafolha, por exemplo, revelou que 84% dos entrevistados se posicionaram a favor da redução da maioridade penal, isto é, da idade mínima (atualmente de 18 anos) em que a pessoa pode responder criminalmente por seus atos.

De acordo com a diretora do Ilanud, a partir de uma pesquisa feita pela instituição, a maioria das pessoas que se diziam a favor da diminuição da idade penal justifica sua posição argumentando que os jovens devem ser responsabilizados pelos atos que cometem. “Há um problema de interpretação da lei, já que as pessoas acreditam que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não prevê responsabilização dos menores”, explica. Por outro lado, a advogada acredita que o sentimento de impunidade presente na sociedade também se deva à falta de implementação efetiva do ECA, o que impede a aplicação mais eficiente das medidas e programas sócio-educativos previstos na lei para os menores infratores.

Propostas de redução da idade penal

Com o resultado do referendo sobre a lei do desarmamento, ocorrido em 23 de outubro, no qual 64% da população brasileira foi contra a proibição da venda de armas de fogo e munição, parlamentares ligados à Frente pelo Direito da Legítima Defesa (que liderou a campanha contra a proibição) elegeram entre suas próximas ações prioritárias a proposição de uma consulta popular sobre a redução da idade penal. O deputado Luiz Antônio Fleury Filho (PTB-SP), vice-presidente da Frente, que propôs a realização de um plebiscito sobre o tema, em uma proposta de emenda à Constituição de sua autoria.

Segundo o sociólogo Marcelo Campos, da Universidade Estadual Paulista (Unesp - campus de Marília-SP), entre 1993 e 2004 foram apresentadas ao Congresso Nacional 21 propostas de emenda à Constituição sobre a redução da maioridade penal, incluindo a do deputado Fleury. A idade mínima sugerida em duas dessas propostas é 14 anos, mas a maioria delas indica os 16 anos. De acordo com Campos, além do argumento da “impunidade” em relação aos menores infratores, uma justificativa usada com bastante freqüência nessas propostas é a de que o desenvolvimento mental de um jovem que vive hoje é superior ao daquele que vivia em 1940, quando foi criado o Código Penal brasileiro. Por isso, argumentam os propositores dos projetos, os jovens atualmente atingem a maturidade mais cedo e, assim, poderiam responder criminalmente pelos atos que cometem antes dos 18 anos.

Karyna Sposato, do Ilanud, no entanto, discorda de tal justificativa. “É uma opção de política criminal não aplicar a mesma estratégia penitenciária que se utiliza em um adulto para alguém que está em formação”, afirma. Esta também é a opinião da psicóloga e socióloga Irene Rizzini, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (Ciespi). “É uma violência encarcerar crianças e adolescentes que estão em formação, sobretudo considerando as instituições que existem”, diz a pesquisadora. “Tentar solucionar o problema da violência com violência nada resolve: o que se produz nessas instituições é uma população ainda mais violenta”, complementa.

As propostas sobre diminuição da idade penal estão tramitando em conjunto na Comissão de Constituição e Justiça, que deverá julgar a constitucionalidade da matéria. Para o juiz Sérgio Mazina, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), todas as propostas existentes são inconstitucionais, pois imputabilidade a menores de 18 anos é um direito individual que se configura como cláusula pétrea e, portanto, não passível de ser alterada enquanto a atual Constituição brasileira estiver vigente. Além disso, para Mazina, adotar a repressão como modelo para tratar os menores infratores, é uma alternativa ineficaz. “Acreditar que a privação da liberdade solucionará o problema da violência é tão equivocado quanto achar que o aumento no número de hospitalizações diminuirá o número de doenças; ao contrário, o que acontece é que só aumentam as infecções hospitalares”, compara o juiz.

Prevenção como alternativa à repressão

“Reduzir a maioridade penal seria abrir mão de qualquer ideal ressocializador e optar por criminalizar a pobreza de uma forma bastante expressa, porque se trata de jovens, em sua maioria, excluídos socialmente”, argumenta Karyna Sposato, do Ilanud. “A maioria dos menores infratores, além de proveniente de famílias emprobrecidas, tem uma trajetória de vida muitas vezes marcada pela violação de direitos: não passou pela escola ou teve experiências traumáticas nela, foi vítima de violência doméstica, foi explorada em termos de trabalho ou sexualmente”, lembra a advogada.

A análise das trajetórias de vida de crianças e adolescentes em situação de marginalidade, pobreza e violência é justamente uma das linhas de pesquisa do Ciespi, coordenado por Irene Rizzini. Ela explica que, a partir dos relatos dessas crianças e adolescentes, busca-se reconstruir a história deles e identificar fatos marcantes que contribuíram para sua maior vulnerabilidade à violência. Segundo a pesquisadora, tal vulnerabilidade está associada tanto a questões estruturais (como falta de instituições e programas de proteção e educação adequados) quanto a aspectos referentes aos relacionamentos inter-pessoais, como a ausência dos chamados “elos significativos”, isto é, laços que se estabelecem com outras pessoas (familiares ou não) e que permitem construir a sensação de pertencimento a uma comunidade.

Nota-se, assim, que há uma rede de fatores de risco relacionados a aspectos sociais, familiares e individuais (como exclusão social, desagregação familiar e falta de perspectivas futuras) que ajudam a entender tanto a violência cometida como a sofrida por crianças e adolescentes. Minimizar esses fatores de risco e, ao mesmo tempo, aumentar a capacidade dos menores de 18 anos para enfrentá-los, faz parte de um modelo de combate à violência baseado na prevenção e não na repressão, como ocorre com as propostas de redução da maioridade penal.

Segundo a médica Simone Assis, pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde (Claves), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a eficácia de programas de prevenção, em comparação aos de repressão e privação de liberdade, é bem ilustrado por um estudo publicado em 2001 pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos. Além dos benefícios sociais, a pesquisa mostrou que para cada dólar investido em um programa de prevenção, voltado a jovens infratores e suas famílias, o governo economizou 14 dólares em gastos futuros com justiça criminal, mesmo tratando-se de um programa com custo elevado (US$ 4,5 mil anuais por jovem infrator). Apesar de análises como essa evidenciarem o sucesso dos programas de prevenção, a médica destaca que os Estados Unidos priorizam muito mais investimentos em estratégias de policiamento e instituições de privação da liberdade, fato que, segundo ela, também se repete no Brasil.

De acordo com a pesquisadora do Claves, a análise dos programas de prevenção revela que os mais eficientes na redução das infrações são aqueles que atuam sobre vários fatores de risco e que se iniciam desde a infância, abrangendo não só a criança, mas toda sua família. Programas que envolvem a escola também se mostram bem-sucedidos.

Para Irene Rizzini, do Ciesp, a prevenção da violência, cometida ou sofrida por crianças e adolescentes, deve conjugar tanto o fortalecimento dos seus elos significativos como a existência de intervenções estruturais que visem a melhoria nas condições de vida da família, criando-se uma política multissetorial, e não meramente assistencialista, como comumente se faz. “O estabelecimento de elos significativos está intimamente ligado a políticas de médio e longo prazo que possibilitem condições básicas e dignas para a população”, defende. “Sem isso, é muito difícil resolver o problema, pois o enfrentamento da violência fica exclusivamente na mão do indivíduo desamparado, crescendo à margem da sociedade e em contextos violentos”, afirma a pesquisadora.