No dia 14 de novembro de 1913 vai para as livrarias No caminho de Swann (Du côté de chez Swann), primeiro volume das 3 mil páginas que compõem Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu), de Marcel Proust. Cem anos, pois, da publicação de uma obra tão definitiva quanto a efemeridade objetiva do mundo que ela recria e a permanência subjetiva de sua criação.
Mas em 1913 o manuscrito de Em busca do tempo perdido foi recusado por várias editoras, entre as quais Ollendorf, NRF e Mercure de France. A editora Grasset aceita publicá-lo por conta do autor.
O sucesso da obra, nesses cem anos de seu lançamento, é não só intenso como constante. Em busca do tempo perdido é uma obra permanente e permanentemente criativa pela leitura que dela se faz.
Antes, e como preparação do que viria a ser a apoteose literária de sua vida artística, Proust publica vários artigos no Le Figaro, entre eles, “La mort des cathédrales”, que será retomado no livro Pastiches et mélanges, sendo que, em 1904, é publicada, por Mercure de France, La Bible d’Amiens.
No dia 26 de setembro de 1905 morre, aos 56 anos, sua mãe. Em dezembro, Proust ingressa, para um tratamento, na clínica do doutor Solliès, em Boulogne sur Seine, de onde ele sairá em janeiro de 1906.
Nesse ano sai, pela Mercure de France, traduzida por ele, a publicação de Sésame et les lys, do autor inglês John Ruskin (1819-1900), por quem Proust nutria grande admiração intelectual e existencial.
Proust escreve para a publicação em francês um prefácio que acaba por se constituir num texto em si, embora motivado pelas conferências de Ruskin reunidas no livro, e num elogio magnífico da leitura, que faz eco ao tratamento que o pensador inglês dá, ele próprio, ao tema.
Tive, há alguns anos atrás, a oportunidade feliz de traduzir para o português e publicar esse texto fundamental para os que amam a leitura, para os que poderão amá-la e para os que são ou serão profissionais ou amadores desta aventura fantástica de viver, pelo imaginário, a multiplicação de sua vida e de sua finitude no infinito do espaço-tempo da memória, da percepção e da expectativa.
No próprio texto de Proust há, às páginas 25 e 26, uma observação sobre trabalhos de Ruskin que abordam o tema da leitura que é esclarecedora:
“Sabe-se que os “Trésors des Rois” é uma conferência sobre a leitura que Ruskin proferiu no Hôtel-de-Ville de Rusholme, perto de Manchester, no dia 6 de dezembro de 1864, para ajudar a criação de uma biblioteca no Instituto de Rusholme. Em 14 de dezembro, pronunciou uma segunda conferência “Des Jardins des Reines” sobre o papel da mulher, para ajudar a fundar escolas em Ancoats. “Durante todo o ano de 1864, diz o sr. Collingwood no seu admirável trabalho Life and Work of Ruskin, ele permaneceu at home, salvo para fazer frequentes visitas a Carlyle. E quando em dezembro em Manchester ele deu os cursos que, sob o nome de Sésame et les lys, tornaram-se sua obra mais popular1, podemos discernir seu melhor estado de saúde física e intelectual nas cores mais brilhantes de seu pensamento. Podemos reconhecer os ecos de seus encontros com Carlyle no ideal heróico, aristocrático e estóico que ele propõe e na insistência com a qual ele retorna ao valor dos livros e das bibliotecas públicas, sendo o próprio Carlyle o fundador da Biblioteca de Londres...”
Como registro singelo do centenário da publicação de No caminho de Swann, que abre as veredas da alma metropolitana que está na origem dos encontros e desencontros do homem contemporâneo, e como anotação do papel transfigurador da leitura como caminho para se chegar à dimensão interior e real da realidade objetiva das coisas, reproduzo aqui dois movimentos em dois textos desse elogio fundamental da leitura:
Primeiro movimento:
Não fazia muito tempo que lia no quarto e já era preciso ir ao parque, a um quilômetro da vila2. Mas após o jogo obrigatório, eu abreviava o fim da merenda trazida em cestos e distribuída às crianças às margens do rio, sobre a relva onde o livro tinha sido posto ainda com a proibição de que fosse retomado. Um pouco mais adiante, em certos cantos bastante incultos e bastante misteriosos do parque, o rio deixava de ser uma água retilínea e artificial, coberta de cisnes e margeada de aleias onde sorriam estátuas, e, momentaneamente saltitante de carpas, precipitava-se, passava rapidamente a cerca do parque, tornava-se um rio no sentido geográfico do termo ─ um rio que devia ter um nome, ─ e não tardava a se espalhar (seria realmente o mesmo que corria entre as estátuas e sob os cisnes?) entre pastagens onde dormiam bois e onde ele afogava botões-de-ouro, espécies de prados que ele tornou bastante alagadiços e que estando, de um lado, junto à vila, perto de torres disformes ─ ruínas, dizia-se, da idade média ─, alcançava, de outro, por caminhos de roseiras-bravas e de espinheiros brancos, a “natureza” que se estendia ao infinito, vilas que tinham outros nomes, o desconhecido. Eu deixava os outros terminarem de lanchar na parte baixa do parque, à margem dos cisnes, e subia correndo no labirinto até uma alameda onde eu me sentava, impossível de ser encontrado, recostado nos nogueirais podados, olhando os aspargos, a cercadura dos pés de morango, o lago, onde, certos dias, os cavalos faziam a água subir de nível andando à sua volta, a porteira branca que estava acima, no “fim do parque” e, além, os campos de bleuets e de papoulas. Nessa alameda, o silêncio era profundo, o risco de ser descoberto, quase nulo, a segurança mais doce, pelos gritos distantes, que, lá de baixo me chamavam em vão, algumas vezes se aproximavam, subiam os primeiros taludes, procurando em toda parte, depois retornavam sem nada encontrar; depois, nenhum ruído; apenas, de quando em quando, o som de ouro dos sinos que, ao longe, para além das planícies, pareciam soar atrás do céu azul, poderia advertir-me sobre o tempo que passava; mas, surpreendido por sua doçura e tocado pelo silêncio mais profundo, esvaziado dos últimos sons, que o seguia, jamais podia dizer ao certo o número de batidas. Não eram os sinos troantes que se ouvia quando se voltava para a vila ─ quando se aproximava da igreja, que, de perto, tinha retomado seu porte alto e esguio, erguendo no céu azul da tarde seu capuz de ardósia pontilhado de corvos ─ e que faziam estourar o som sobre a praça “para o bem da terra”. Ao fim do parque, não chegavam senão fracos e suaves, não se dirigindo a mim, mas a todo o campo, a todas as vilas, aos camponeses isolados na sua terra, não me forçavam absolutamente a levantar a cabeça, passavam perto de mim, levando a hora aos rincões distantes, sem ver-me, sem conhecer-me e sem incomodar-me.
Algumas vezes, em casa, no meu leito, muito tempo depois do jantar, as últimas horas da noite, antes de adormecer, abrigavam também minha leitura, mas isso somente nos dias em que eu chegava aos últimos capítulos de um livro, que não faltava muito para chegar ao fim. Então, arriscando ser punido se fosse descoberto e ter insônia que, terminado o livro, se prolongava, às vezes, a noite inteira, eu reacendia a vela, assim que meus pais iam deitar; enquanto isso, na rua vizinha, entre a casa do armeiro e o correio, banhadas de silêncio, o céu sombrio, mas azul, estava cheio de estrelas; à esquerda na viela suspensa, onde começava sua ascensão espiralada, sentia-se a vigília monstruosa e negra da abside da igreja cujas esculturas não dormiam à noite, a igreja da vila e, no entanto, histórica, morada mágica do Bom Deus, do pão bento, dos santos multicolores e das damas dos castelos vizinhos que, nos dias de festa, quando atravessavam o mercado, fazendo pipilarem as galinhas e atraindo os olhares das comadres, vinham à missa “nas suas parelhas”, não sem deixar de comprar, ao regressar, na doceria da praça ─ imediatamente após ter deixado a sombra do pórtico onde os fiéis empurrando a porta giratória semeavam os rubis errantes da nave ─ alguns desses doces em forma de torre, protegidos do sol por um estore ─ “manques”, “Saint-Honorés” e “génoises”, ─ cujo odor ocioso e açucarado eu guardei misturado com os sinos da missa cantada e com a alegria dos domingos.” (p. 20-22)
Segundo Movimento:
“Quantas vezes, na Divina Comédia, em Shakespeare, tive esta impressão de ter diante de mim, inserido na hora presente, atual, um pouco do passado, esta impressão de sonho que se tem em Veneza na Piazzetta, diante de suas duas colunas de granito cinza e rosa que trazem sobre seus capitéis gregos, uma o Leão de São Marcos, outra, São Teodoro calcando com os pés o crocodilo, ─ belas estrangeiras vindas do Oriente pelo mar que elas olham ao longe e que vêm morrer a seus pés e que, ambas, sem compreender as conversações trocadas em torno delas numa língua que não é a do país, nessa praça pública onde ainda brilha o seu sorriso distraído, continuam a retardar no meio de nós os seus dias do século XII que elas intercalam nos nossos dias de hoje. Sim, em plena praça pública, no meio de hoje cujo império é interrompido nesse local, um pouco do século XII, do século XII, há tanto tempo transcorrido ergue-se num duplo elã de granito rosa. Em torno, os dias atuais, os dias que vivemos circulam, agitam-se zumbindo em volta das colunas, mas aí, bruscamente, param, fogem como abelhas espantadas; porque elas não estão no presente, estes altos e finos enclaves do passado, mas num outro tempo no qual é proibido ao presente penetrar. Em torno das colunas rosas, voltadas para os seus grandes capitéis, os dias se agitam e zumbem. Mas neles interpostas, elas os afastam, preservando de sua fina espessura o lugar inviolável do Passado: ─ do Passado surgido familiarmente no meio do presente, com esta cor um pouco irreal das coisas que uma espécie de ilusão nos faz ver a alguns passos, e que, na verdade, estão a séculos de distância; orientando-se em todo seu aspecto um pouco diretamente demais ao espírito, exaltando-o um pouco como, sem surpresa, um espectro de um tempo sepultado; no entanto, ali, no meio de nós, próximo, tangível, palpável, imóvel, ao sol.” (p. 49-50)
Num terceiro movimento, para fechar este registro afetivo e intelectual das águas da memória, da imaginação e do papel da leitura na nossa aproximação da realidade objetiva pelos caminhos da subjetividade, vai aí um trecho da entrevista do filósofo Nicolas Grimaldi concedida a Raphael Enthoven e publicada em Le Monde, Hors-Série – Une vie, une Oeuvre – Marcel Proust – À l’ombre de l’imaginaire, Paris: 2013, p. 61-66:
(...) É uma ilusão, da mesma natureza que a do realismo ingênuo, que, nos faz crer que a realidade não é senão exterior, e que, consequentemente, não poderemos encontrar, a não ser fora de nós mesmos, em uma percepção a verdade que a imaginação nos fez esperar. Daí a interminável litania das decepções (...): a igreja de Balbec, as ruelas de Veneza, a primeira prestação de Berna, o almoço com Bergotte (e seu nariz “de saca-rolha”)... Mas, inversamente, há uma experiência mais intensa e mais perturbadora em Proust do que aquela a que nos obriga uma hora de leitura ou a audiência de um trecho de Vinteuil ou de Wagner? Fora do real, retirados, recolhidos pela leitura na interioridade pura de nossa imaginação, aí nos encontramos totalmente absorvidos pela realidade na qual somos introduzidos. Ali não há lugar para a decepção. No entanto, aí tudo é imaginário. A experiência da leitura ou da música permite antecipar o que revelará a lembrança involuntária, a saber que não há realidade que não seja interior. Ora, esta existência interior da realidade, tal como a suscita uma sensação, só a imaginação a transcreve. Mas esta transcrição é, na realidade, uma alquimia da imaginação que transforma a exterioridade em interioridade, a estranheza em intimidade, e a passividade em atividade. É isso que faz a metáfora, puro produto da imaginação, mas que exprime tanto o real quanto o recria, buscando-o no fundo de nós mesmos por um mimetismo interior. Essa é a razão pela qual o narrador não começa a sentir a realidade dos espinheiros-brancos a não ser imaginando-os: “Tentando imitar no fundo de mim mesmo o gesto de sua eflorescência, eu o imaginava”. (p. 64-65)
Assim, boa leitura da leitura da leitura...
Notas: PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Tradução de Carlos Vogt. Campinas: Pontes, 1989. 60 p. Título original: Sur la lecture. 1-Esta obra foi, em seguida, aumentada pela adição de uma terceira conferência às duas primeiras: The Mistery of Life and its Arts. As edições populares continuaram a trazer apenas Des Trésors des Rois e Des Jardins des Reines. Traduzimos no presente volume apenas essas duas conferências, sem precedê-las de nenhum dos prefácios que Ruskin escreveu para Sésame et les Lys. As dimensões deste volume e a abundância de nosso próprio Comentário não nos permitiram fazer diferente. Salvo para quatro entre elas (Smith, Elder et C.º) as numerosas edições de Sésame et les Lys apareceram todas por Georges Allen, o ilustre editor de toda a obra de Ruskin, o mestre de Ruskin House.
2-O que chamamos, não sei por que, uma vila é a localidade principal de um cantão ao qual o Guia Joanne atribui cerca de 3000 habitantes.
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