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Reportagem
Enfrentamento e violência no caminho LGBT pela conquista de direitos
Por Gabrielle Adabo e Valdir Lamim-Guedes
10/06/2014
Gabriel e Leonardo são dois adolescentes apaixonados um pelo outro. Donato e Konrad são dois homens que também se apaixonam. Os dois primeiros aparecem no curta Eu não quero voltar sozinho e no longa Hoje eu quero voltar sozinho, dirigidos por Daniel Ribeiro. Os segundos, em Praia do futuro, de Karim Aïnouz , protagonizado por Wagner Moura. Gabriel e Leonardo descobrem a sexualidade em meio ao bullying dos colegas de escola. Donato e Konrad ficam juntos e exercem o direito à sexualidade em cenas que geraram polêmica nos cinemas brasileiros. Visíveis nas telas, esses personagens trazem à tona, para a plateia, questões sobre a homossexualidade. Longe da ficção, a realidade é, no entanto, bem menos romântica.

A luta dos movimentos sociais pela conquista de direitos para as pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) já dura diversas décadas e, apesar das recentes conquistas, como o direito ao reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, ainda há um caminho longo a ser percorrido para se distanciar da intolerância. “Durante muito tempo, nem homossexuais, muito menos pessoas trans, eram sujeitos sociais visíveis no Brasil. Se eles não são sujeitos sociais visíveis, nós não podemos pensar nem em direitos, nem em combate à violência. Há uma história para essa visibilidade acontecer”, explica a pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Regina Facchini, autora dos livros Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90 (Garamond, 2005) e Na trilha do arco-íris – Do movimento homossexual ao LGBT (Perseu Abramo, 2009), este último em parceria com Júlio Assis Simões.

Segundo Facchini, apenas a partir do final da década de 1970, se inicia a mobilização política em torno da categoria homossexuais no Brasil. Em abril de 1978, surgiu o jornal de circulação nacional Lampião de Esquina (inicialmente chamado apenas de Lampião), que abordava questões ligadas à homossexualidade. No mesmo ano, a partir dessa publicação, é fundado em São Paulo o Somos, primeiro grupo pela defesa do direito dos homossexuais. “O combate ao preconceito, à discriminação e à violência são questões que estão na pauta desses movimentos desde aquele período”, diz a pesquisadora.

O primeiro desafio dos movimentos era fazer com que a homossexualidade deixasse de ser caracterizada no discurso médico como uma patologia, o “homossexualismo”. “Há todo um trabalho que é feito no começo da década de 1980, a partir da liderança do Grupo Gay da Bahia (GGB), pela despatologização da homossexualidade, com sua retirada do código de doenças do (antigo) Inamps (atual Instituto Nacional de Seguridade Social). Isso também é muito importante para que os homossexuais se constituam como sujeitos de direito”, afirma Facchini. O GGB foi fundado pelo antropólogo e historiador Luiz Mott, em 1980, após ele próprio sofrer violência por conta da sexualidade. “A partir de um abaixo assinado com milhares de assinaturas, nós conseguimos que, em 1985, o Conselho Federal de Medicina retirasse o homossexualismo da classificação de doenças”, relembra Mott.

A epidemia de HIV, a violência e as políticas públicas

Não mais considerada uma doença, a homossexualidade passou, então, a ser politizada. Facchini explica que as duas principais bandeiras dos movimentos que lutavam pelos direitos dos homossexuais na década de 1980 eram o combate à violência e o controle da epidemia de Aids. “A Aids, porque foi inicialmente chamada de ‘peste gay’, de ‘câncer gay’, acabou também por difundir socialmente a ideia de que havia homossexuais”. Facchini ressalta que apenas a partir do combate à epidemia da Aids surgem, na década de 1990, as primeiras políticas públicas voltadas para os direitos humanos de homossexuais e o combate à violência contra eles.

Nessa época, a sigla LGBT ainda não era usada. Facchini explica que se falava até então somente em homossexuais. “Depois se criou uma categoria, na prevenção (de doenças sexualmente transmissíveis), que era HSH (homens que fazem sexo com homens), para dar conta de que as pessoas têm uma prática homossexual, mas, não necessariamente, elas vão ter uma identidade ligada a essa prática, e que a prevenção tem que ser para todo mundo. Porque a pessoa se infecta com o HIV não pela identidade e sim por conta da prática sexual desprotegida”, conta Facchini. A ideia de que é necessário o respeito aos direitos humanos dos homossexuais surge em meados da década de 1990, quando se entende que se trata de um conjunto de pessoas cuja situação de vulnerabilidade se agrava por conta da violência à qual estão sujeitas.

Segundo a pesquisadora do Pagu, essas duas principais bandeiras se desenvolviam de modo articulado, pois muitos dos que promoviam a violência contra os homossexuais se baseavam na ideia de que a Aids estava ligada a um estilo de vida, considerado como promíscuo, que se atribuía à homossexualidade. “Novamente, o Luiz Mott aparece como uma figura muito importante nesse processo, porque ele fez o primeiro trabalho de pesquisa sobre violência contra homossexuais no Brasil. Ele compilava notícias de jornal sobre o assunto. Ainda que se saiba que o que vai aparecer no jornal é só a ponta do iceberg de um conjunto de violência que vai muito além da letal – e que é muito maior do que o que foi parar na polícia e que é estampada nas páginas dos jornais –, ainda assim, ele estava mostrando que existia uma coisa que ninguém se dava conta ou que ninguém parava para olhar”, conta Facchini.

“Nós temos lá em Salvador um arquivo com documentação enorme de jornais, revistas – na época não tinha internet, não tinha fax, era muito mais difícil. Há material sobre assassinatos incluindo um dossiê com mais de 3 mil casos de violência, nos últimos 35 anos, contra gays, travestis e lésbicas, com matérias de jornal e cartas de informantes que davam conta de algum gay assassinado no interior e que não tinha saído na mídia”, explica Mott. O material foi digitalizado e está disponível no site “Quem a homotransfobia matou hoje”, que mantém atualizados todos os casos de assassinato contra homossexuais e transgêneros e que podem ser consultados por categoria, como local e data.

A categoria homofobia

Segundo a pesquisadora do Pagu, a ampliação da visibilidade em torno da violência contra os homossexuais também foi possibilitada pelo uso da categoria homofobia. Facchini explica que essa categoria emerge da produção acadêmica norte-americana, na área de psicologia, com um sentido mais individualizante. Nessa formulação original, homofobia era vista como um tipo de aversão que as pessoas teriam de alguém que tem uma sexualidade ou uma expressão de gênero que é diferente. “Atualmente, quando o movimento utiliza a categoria homofobia, o faz situando essa questão no âmbito das relações entre o indivíduo e o que é social. Esse preconceito tem raízes nas convenções de gênero e sexualidade, ou seja, como são concebidos na nossa sociedade: a ideia de que você tem pessoas de dois sexos e que esses sexos são não só incomensuravelmente diferentes como complementares e que parte dessa complementaridade desses sexos implica que as pessoas tenham relações afetivas e sexuais com pessoas de outros sexos”, diz.

“Esse conjunto de convenções e o impacto delas sobre situações de violência e discriminação não estavam explicitados nesse primeiro sentido de homofobia”, completa a pesquisadora. Hoje, no entanto, o sentido do conceito foi alargado. “Esse entendimento que o movimento tem hoje obviamente considera que não se trata uma questão de âmbito individual, que isso é uma questão social e que é preciso um trabalho de mudança cultural em torno disso”, analisa.

Os direitos das pessoas trans

A visibilidade das pessoas transgêneros é uma conquista que só começa mais tarde. Facchini aponta que há, portanto, uma diferença na história desses atores sociais. “As travestis são pessoas bastante visíveis socialmente, até porque as pessoas se incomodam por elas estarem ali fazendo prostituição, se incomodam com o fato de elas não estarem vestidas do sexo que disseram que elas tinham quando elas nasceram, mas, do ponto de vista de movimento social, travestis só vão aparecer como sujeitos políticos em meados da década de 1990. E transexuais só depois de 1997, quando o Conselho Federal de Medicina deixa de considerar as mudanças corporais demandadas por esses sujeitos como mutilação”, explica.

Facchini cita dados de pesquisas realizadas nos anos 2000 pelo Centro Lationo-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade Cândido Mendes, comandadas por Sérgio Carrara e Silvia Ramos. Uma parceria deles com instituições de São Paulo, da qual Facchini e o pesquisador da USP Júlio Simões participaram, promoveu estudos durante a Parada do Orgulho Gay na capital paulista, na qual se investigou a questão da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. “Os resultados dessas pesquisas foram que cerca de dois terços das pessoas LGBT que estavam na parada já tinham sofrido alguma situação de agressão ou de discriminação, ao longo da vida, motivada pela sexualidade. E quando a gente olha para as pessoas trans, para as pessoas travestis ou transexuais, esse percentual sobe muito; é quase impossível achar uma pessoa trans que não tenha passado por discriminação ou violência. Esse dado é consistente, apareceu nas pesquisas em diferentes capitais”, resume.

Além de altos, os percentuais de violência contra pessoas trans são, também, pouco denunciados, segundo a pesquisadora. “Tem muitas pessoas que sequer relatam para um amigo, para um familiar o que aconteceu”, diz. “Outro ponto importante que aparece nessas pesquisas é que a violência também se dá de modo diferente para pessoas de diferentes sexos. Para homens e para mulheres, funciona de formas diferentes; para homossexuais, pessoas trans e bissexuais também. Mas essa violência está marcada, ainda, por classe, por questões raciais, por questões geracionais”, lembra. O movimento LGBT, então, passa a criar categorias como transfobia ou lesbofobia para procurar abarcar essas diferenças das violências.

Uma das conquistas das pessoas trans é o direito ao uso do nome social. O advogado e ativista André Leal, que já atuou no Centro de Combate à Homofobia (CCH) da cidade de São Paulo, explica que a mudança do nome é feita por um processo chamado de retificação de registro, no qual transexuais ou travestis pedem para constar em seus documentos o nome social e, em alguns casos, a mudança de sexo. Esse direito, que é uma conquista no processo de autodeterminação dessas pessoas, pode se transformar em uma experiência vexatória devido às exigências de laudo para provar as mudanças de sexo, o que retoma uma visão patologizante da sexualidade. Outro aspecto problemático é a falta de uma regulamentação clara, o que faz com que a decisão fique condicionada ao mérito do juiz, que pode ter diferentes níveis de exigências. A alteração na cédula de identidade é simples, segundo Leal. No entanto, na Certidão de Nascimento, a exigência de uma declaração sobre a mudança do registro ter sido decorrente de uma decisão judicial pode gerar constrangimentos, principalmente porque a certidão é um documento público.

Ainda distante do fim do caminho

“É, portanto, uma longa trajetória de luta, com questões graves envolvidas, como a epidemia do HIV/Aids e a violência, e uma conquista de direitos que se dá muito lentamente”, resume Facchini. Hoje, ainda há muitos desafios a serem superados pelos movimentos sociais e pelo trabalho dos pesquisadores, que também interfere na criação de políticas públicas. O Brasil, segundo Mott, é o campeão mundial em assassinatos de homossexuais e transgêneros: a cada ano, são mortas mais de 300 pessoas LGBT, uma a cada 26 horas, aproximadamente. A ocorrência de Aids/HIV em HSH (15%) ainda é muito maior, proporcionalmente, do que em pessoas heterossexuais (1,2%). As pessoas trans permanecem patologizadas. A união estável foi aprovada, mas ainda não se tornou lei. A criminalização da homofobia, em proposição desde 2006, ainda não foi aprovada.

A estagnação também ocorre nas políticas públicas. Em 2004, segundo Facchini, houve avanço com o lançamento do programa “Brasil Sem Homofobia”, com ações mais consistentes nos campos da saúde, direitos humanos, educação e cultura. Até 2010, houve conferências LGBT nas quais se discutiram pautas e foram implementadas políticas públicas em âmbito federal, estadual e municipal. “Mas há uma mudança em 2010, no processo eleitoral, e uma pressão de grupos conservadores religiosos para barrar inclusive as políticas públicas. De lá para cá houve, inclusive, retrocesso nas poucas ações de políticas públicas que havia até 2010”.

Dois dos exemplos, citados por Facchini e Mott, são os vetos do governo ao material educativo que seria distribuído para capacitar professores a discutir a questão da homofobia com os estudantes, que ficou conhecido na mídia como “kit gay”, e a uma campanha em vídeo de prevenção à Aids destinada ao público HSH. “Era uma campanha simples, nada explícito, com um casal de rapazes em situação de paquera, sentados no sofá de uma balada, quando chegava uma singela fadinha e levava uma camisinha para os dois”, descreve a pesquisadora. A justificativa para o veto ao “kit gay” era de que o governo não faria propaganda de orientação sexual, argumento que, segundo Leal, é falacioso, pois isso já acontece em várias propagandas “na qual você vê uma família branca, de classe média”. “Você está fazendo propaganda de uma raça, de uma orientação sexual e de uma identidade de gênero constantemente”, analisa.

Homofobia e direitos LGBT no Brasil e no mundo

“Todos têm direito de ser e amar quem quer que seja. Pense nisso, ser lésbica, gay, bissexual, transexual ou travesti não é uma escolha, é simplesmente ser e viver a sua essência. Não é óbvio para você?”. Esta frase da cantora baiana e ativista gay Daniela Mercury, que recentemente casou-se com sua namorada, faz parte de um vídeo que integra a campanha “Livres e Iguais” lançada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Segundo a ONU, em 76 países relações consensuais homoafetivas ainda são criminalizadas. São leis discriminatórias que violam os direitos humanos e expõem milhões de pessoas ao risco de serem presas e processadas e, até mesmo, condenadas à pena de morte. De acordo com o relatório “Homofobia do Estado – análise mundial das leis: criminalização, proteção e reconhecimento do amor entre pessoas do mesmo sexo” (8ª. ed, maio 2013), editado por Lucas Paoli Itaborahy e Jingshu Zhu, da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA), em pelo menos cinco países há pena de morte para relações homoafetivas – Arábia Saudita, Irã, Mauritânia, Sudão e Iêmen –, e a pena máxima também existe em regiões da Somália e Nigéria.

O relatório aponta que 114 países, cerca de 60% dos Estados membros da ONU, entre eles o Brasil, não criminalizam as relações homofetivas. Em 15 países, entre eles Grécia, Chile, Paraguai e Canadá, há uma idade de consentimento – idade determinada por lei para se ter relações sexuais consentidas – desigual para atos homossexuais e heterossexuais; 97 países, apresentam idade de consentimento igual para atos homossexuais e heterossexuais. “As leis relativas ao casamento são, talvez, o sinal mais visível de mudança no que diz respeito à igualdade, mas não o único domínio que testemunha progressos nos direitos LGBTI: aos níveis nacional e local, por meio de regulamentações, litigâncias ou mesmo a eleição de personalidades autárquicas ou parlamentares abertamente LGBTI, estão a acontecer transformações graduais em muitos países de todo o planeta”, dizem Itaborahy e Zhu no relatório.