Você sabe o que a discoteca, a metalúrgica, o show de fogos de artifício do ano novo e o trio elétrico têm em comum? Se você disse “todos são barulhentos”, você acertou. Mas se você disse que todos têm sons muito intensos, você acertou em cheio. Isso porque o que é barulho para uns, é música para outros... Mas para ganhar nota máxima, você poderia ir mais além: esses sons são suficientemente intensos para causar uma perda auditiva irreversível e zumbido (apito ou chiado no ouvido). Isso sem contar com uma provável dor de cabeça e muito cansaço, mesmo que você não esteja trabalhando nem dançando.
Hoje a exposição a sons intensos, especialmente por exposição voluntária, é a principal causa de perda auditiva em crianças e adolescentes nos Estados Unidos e vem crescendo ao redor do mundo.
Que sons intensos, sejam eles desejados ou não, provocam perda auditiva não é novidade. Até crianças pequenas sabem disso e, instintivamente, tapam os ouvidos na presença de sons fortes. Mas se todos nós sabemos disso, por que continuamos a nos expor propositadamente à música alta, a batucadas de torcidas e agremiações e a rajadas intermináveis de rojões? E por que será que não protegemos nossos pobres ouvidos quando vamos furar uma parede ou usar o cortador de grama?
A noção de risco
O risco contido na exposição a sons intensos existe objetivamente, mas a criação do conceito de que expor-se a eles é arriscado depende da construção social do risco.
Há ao menos três motivos claramente associados a qualquer comportamento de risco, que é adotado a despeito do conhecimento de seus efeitos deletérios, como é o caso do fumo, da falta do uso do cinto de segurança e inclusive da exposição a sons intensos. O primeiro é a ilusão da indestrutibilidade, a impressão de que o que pode afetar aos outros não nos afetará. O segundo está na cultura vigente, ou seja, o código associado a um determinado comportamento - eventos de lazer animados e alegres, por exemplo, são imediatamente associados à música e a pessoas rindo e falando em volume alto. Por fim, mas não menos importante, vem o conhecimento aprofundando sobre os riscos reais relacionados aos comportamentos de risco. Em outras palavras, não basta entoar um mantra que diga: “essa música está muito alta, você vai ficar surdo”, se a criança, jovem ou adulto já se expôs muitas vezes à música alta, não ficou surdo e não percebe as alterações silenciosas que ocorrem pouco a pouco em sua via auditiva. Tais alterações podem culminar em uma dificuldade auditiva que difere do que a maioria das pessoas conhece como surdez.
O risco objetivo
A perda auditiva provocada por exposição a sons intensos pode ocorrer por exposição crônica ou por uma única exposição muito intensa e abrupta como, por exemplo, explosões e tiros. A ocorrência da primeira, chamada de PAINPSE (perda auditiva induzida por níveis de pressão sonora elevados) e da segunda (trauma acústico), depende do tipo e da intensidade do som, da duração da exposição sonora e também da sensibilidade orgânica de cada um. A PAINPSE já foi chamada de PAIR (perda auditiva induzida por ruído). A mudança do nome se deu para que ficasse claro que não é o ruído, sempre indesejado, que provoca perda auditiva, mas o som intenso, desejado e agradável ou não.
Chegamos à primeira questão que precisa ser entendida. Que intensidade sonora faz mal para a audição? Para respondê-la, precisamos nos remeter à relação intensidade versus duração do som. O quadro 1 apresenta intensidades sonoras (em decibel, ou dB) com exemplos de sons do cotidiano e o tempo máximo de exposição a tais intensidades por dia. Repare que o tempo máximo (seguro) de exposição a sons cai pela metade a cada 3 dB a mais em intensidade sonora. Isso acontece porque o decibel é uma grandeza que segue uma escala logarítmica. Lembre-se que nós estamos expostos a inúmeros sons de várias intensidades e cada exposição tem uma duração própria. Vamos a um exemplo: digamos que uma pessoa acorde com um despertador (83 dB por 10 segundos), prepare uma vitamina no liquidificador (88 dB por um minuto), ande de metrô (94 dB por 45 minutos), caminhe do metrô ao trabalho (85 dB por 5 minutos), trabalhe num escritório (70 dB por oito horas, com um intervalo para almoço no refeitório da empresa - 85 dB por 20 minutos). Depois volte para casa ouvindo música no trajeto (100 dB por 55 minutos), assista um pouco de TV e durma. A partir de uma fórmula matemática que leva em consideração a intensidade e a duração do som, chegamos a um exposição média de 91,5 dB por 10 horas e 10 minutos, o que representa que essa pessoa recebeu uma dose sonora de 445%, ou seja, excedeu em mais de quatro vezes a recomendação de exposição a sons para o dia! Isso porque imaginamos que nesse dia o nosso sujeito não foi a nenhum restaurante, clube noturno, cinema ou concerto. Finalmente, observe que o cálculo de dose é feito para oito horas de exposição diária, pois todos esses parâmetros surgiram da necessidade de se delimitar a exposição de trabalhadores a sons intensos.
Quadro 1. Relação entre intensidade e tempo de exposição máxima
Fonte: http://www.e-a-r.com/hearingconservation/faq_main.cfm
Bem, agora vamos à próxima questão que precisa ser compreendida: o que é que os sons intensos realmente provocam na via auditiva?
A via auditiva é dividida em periférica (orelha, tímpano, ossículos e cóclea) e central (do nervo auditivo até o cérebro). Dentro da cóclea está o órgão de Corti, com aproximadamente 15 mil células ciliadas muito bem organizadas e imersas em um meio líquido. Cada célula ciliada tem dezenas de cílios conectados entre si por micro ligamentos. A vibração sonora provoca movimentação dos líquidos da cóclea, que por sua vez gera inclinação dos cílios das células ciliadas, fazendo com que canais minúsculos se abram para a troca de sódio e potássio entre a célula e o meio líquido. A partir de então, uma série de reações eletroquímicas da célula gera sinais elétricos correspondentes àquela entrada acústica, e tais sinais elétricos são processados, avaliados e interpretados pela via auditiva central (Veja o funcionamento do ouvido na animação disponível).
A exposição a sons intensos provoca alterações estruturais e metabólicas no órgão de Corti. As células ciliadas podem sofrer alterações no citoplasma e no núcleo, além de edema e alterações na permeabilidade da membrana. A comparação da estrutura do órgão de Corti e das células ciliadas antes e depois de um trauma acústico está ilustrada na figura 1. Quando vibrações intensas atingem a cóclea, provocam movimentos também intensos nos líquidos da mesma. Esse “tsunami” entorta e quebra os delicados cílios das células ciliadas. Nesse estado, as células perdem sua capacidade de transformar energia acústica em impulsos elétricos. Como essas células não se recuperam desse estado, elas se autodestroem. Não há possibilidade de regeneração ou de crescimento de novas células, ou seja, sons intensos provocam lesões irreversíveis. A exposição a sons intensos provoca ainda: aumento da liberação de radicais livres, danos vasculares locais e liberação de neurotransmissores em excesso, o que leva a alterações das vias auditivas centrais.
Figura 1. Adaptação de Harrison, 2008 (com permissão de uso do autor)
- alto à esquerda: epitélio sensorial normal
-
fig à esquerda, de cima pra baixo: estereocílios e micro ligamentos, as
demais palavras e deixar apenas “mitocôndrias” (última palavra à
direita do desenho). Acrescentar uma chave que diga “corpo celular” para
o desenho retangular abaixo dos estereocílios.
- abaixo das quatro fotos à direita: estágio inicial de danos celulares após trauma acústico
-
título da figura: imagem por microscopia eletrônica de varredura de
células ciliadas normais da cóclea (à esquerda) e imediatamente após
trauma acústico (à direita). O diagrama no canto inferior esquerdo
mostra os ligamentos normais entre os esteriocílios, que se rompem ou se
quebram em perdas auditivas induzidas por exposição a sons intensos.
Entretanto, a perda auditiva só é percebida imediatamente após a exposição a sons intensos quando esta é tamanha que chega a provocar um trauma acústico. E, mesmo assim, a perda auditiva não é total. Geralmente a pessoa tem sensação de ouvido tapado, dificuldade para compreender fala em ambientes ruidosos e zumbido. Quando a exposição a sons intensos é crônica, o aparecimento desses sintomas é muito gradual, o que leva à falsa impressão de que está tudo bem.
Os custos da remediação, reabilitação e da perda de produtividade de pessoas com PAINPSE, trauma acústico e zumbido vão além dos custos financeiros, pois não é incomum que essas pessoas tenham a qualidade de vida afetada, mas praticamente todos os casos de PAINPSE podem ser prevenidos.
A educação na construção do risco social
Há vinte anos, andar de moto sem capacete e permitir que crianças ficassem pulando no banco de trás de um veículo em movimento era comum. A aplicação de multas mudou esses comportamentos e as autoridades passaram a educar a sociedade sobre esses e outros assuntos, com reforço contínuo e desde a infância.
Embora a PAINPSE e o trauma acústico sejam irreversíveis e possam atingir crianças, adolescentes e adultos, historicamente têm-se dado mais atenção às lesões auditivas causadas por exposição a ruído intenso no ambiente de trabalho, com esforço crescente para a prevenção, por meio da educação dos trabalhadores e através de intervenções que incluem a avaliação periódica da audição e o uso de protetores auditivos. Paradoxalmente, nenhum esforço das autoridades tem sido feito para prevenir a PAINPSE e o trauma acústico fora do ambiente de trabalho. Assim, as pessoas se expõem indiscriminadamente a fogos de artifício, brinquedos ruidosos, ferramentas de uso doméstico, eventos esportivos e folclóricos, música alta em concertos, bares e danceterias, academias de ginástica, festas populares e em tocadores de mp3.
Os alicerces dos comportamentos saudáveis são construídos na infância e, por isso, programas de prevenção da PAINPSE e do trauma acústico deveriam fazer parte da educação formal (na escola) e informal (por meio da mídia, da literatura, de peças de teatro, exposições em museus, debates...) das crianças.
Nos Estados Unidos existem pelo menos dez organizações que oferecem programas de prevenção de PAINPSE em crianças e adolescentes e pelo menos 18 outras organizações que produzem ou disseminam materiais sobre o tema, para serem usados em sala de aula. Um desses programas educacionais é o Dangerous Decibels® (www.dangerousdecibels.org), já traduzido, adaptado e avaliado para crianças brasileiras. Trata-se de uma aula interativa e divertida para crianças, com duração aproximada de 50 minutos. As crianças participam de experimentos simples, mas capazes de demonstrar o que é o som e a intensidade sonora, como funcionam a audição e as células ciliadas, jogos com simulação de PAINPSE para sensibilizá-los quanto às dificuldades experimentadas por quem tem perda auditiva, desenvolvimento da noção de risco auditivo, discussão sobre medidas de proteção auditiva e treinamento para colocação de protetores auditivos. Embora criado inicialmente para educar crianças e adolescentes, na Nova Zelândia o Dangerous Decibels vem sendo usado com sucesso até mesmo em programas de conservação auditiva para policiais. Ao que parece, em qualquer idade a educação deve vir acompanhada de vivência e de diversão.
Proteger para conservar
Provavelmente nós nos lembraremos com espanto do tempo em que crianças eram levadas para matinês de carnaval com música ensurdecedora, de quando carros circulavam pelas ruas com músicas extremamente altas (e com crianças dentro do carro) e da época em pessoas de todas as idades comemoravam a chegada do ano novo assistindo de perto a longos shows de fogos de artifício...
Proteger a audição não é difícil e não exige quase nenhum esforço. Apenas três cuidados (quase intuitivos) são suficientes:
1. Se o som estiver muito alto e se você tiver controle sobre ele, abaixe-o! Quando promover encontros e festas, mantenha (a todo custo) a música num volume que permita que as pessoas consigam se falar sem que tenham que gritar.
2. Afaste-se de sons intensos. Mantenha-se distante de caixas de som, de fogos de artifício, tiros e explosões (se forem previsíveis, claro).
3. Se não puder abaixar o som nem afastar-se dele, use protetores auditivos. Carregue sempre ao menos um par de protetores auditivos dentro da bolsa, mochila ou carteira e não hesite em usá-los. Eles são vendidos em farmácias e em lojas de materiais de construção. Para crianças, que têm condutos auditivos menores, recomendam-se protetores do tipo concha (colocados sobre as orelhas), protetores usados para natação (comprados em farmácia, lojas esportivas ou feitos sob medida com um fonoaudiólogo). Algodão e lenços de papel colocados dentro do ouvido não funcionam. Em último caso, tampe os ouvidos!
E, por fim, duas dicas para quem não abre mão de uma boa música:
- Ouvir música não faz mal, nem com fones de ouvido. O que faz mal é ouvir música alta por muito tempo. Uma proporção segura é a 90-80, ou seja, ouvir até 90 minutos de música a 80% do volume de um tocador de mp3. Se quiser ouvir música por mais tempo, abaixe o volume, se quiser ouvir música mais alta, diminua o tempo.
- As pessoas tentam encobrir os ruídos ambientais com a música, e por isso acabam exagerando no volume. Fones com canceladores de ruído minimizam esse problema.
Proteger a audição não garante, mas é fundamental para quem quer continuar se comunicando bem e desfrutando da música e dos sons da natureza até a velhice. Não é difícil, mas exige atenção (às situações de risco) e determinação (para enfrentar os pouco informados). Certamente, um esforço que valerá à pena.
Aplicativos sugeridos (gratuitos):
Play it down : informações (em inglês), triagem auditiva, medidor de pressão sonora e o melhor item: um simulador de perda auditiva que pode ser aplicado a qualquer áudio do celular.
Decibel 10 th : não substitui um medidor de pressão sonora de verdade, mas dá uma ideia bastante aproximada da intensidade sonora medida.
Keila A. Baraldi Knobel é fonoaudióloga.
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