Como
transformar conhecimento em valor econômico, parece ser o
lema mais constante e a preocupação mais exasperante das sociedades
contemporâneas, que estão empilhadas, em diferentes níveis, na pirâmide do desenvolvimento.
E o desafio dessa transformação motiva e acompanha os esforços de sociedades
desenvolvidas e de sociedades emergentes, que lutam para se estabelecerem como
parceiros nos cenários da competitividade internacional. Surge, então, o
primeiro paradoxo da retórica da globalização que, como tantos outros, procura,
no discurso, harmonizar as contradições de que se faz, com ferocidade às vezes –
o doce engano de que com a competição se dá também a ajuda mútua.
À
atuação crescente e à conscientização amadurecida dos formadores de opinião,
dos tomadores de decisão, de parcelas importantes das populações organizadas em
instituições cada vez mais atuantes na afirmação dos direitos e deveres de
cidadania, foi-se formatando, a partir dos anos de 1960, a concepção –
consolidada, em 1972, em Estocolmo e reafirmada em 1992, na cidade do Rio de
Janeiro – de que a Terra é um sistema coeso e integrado, no qual é possível
ver, com clareza, a sistematicidade das relações entre as partes vivas e as
partes não vivas. A mesma concepção se repetiu, em 2002, em Johanesburgo, e em
2012, na capital carioca.
Constituem-se,
assim, os conceitos de ecossistema e de desenvolvimento sustentável e a compreensão
moderna do termo biodiversidade, utilizado, então, para definir a variabilidade
de organismos vivos, flora, fauna, fungos macroscópicos e microrganismos,
abrangendo a diversidade de genes e de populações de uma espécie, a diversidade
de espécies, a diversidade de interações entre espécies e a diversidade de
ecossistemas, conforme o artigo 7º da Convenção sobre a Diversidade Biológica¹, celebrada na cidade do
Rio de Janeiro em 1992, e que foi aprovada no Brasil, em 1994, pelo Decreto
Legislativo n. 2, embora o tema tivesse sido tratado na Constituição de 1988,
no artigo 225. Esse artigo consagra o direito de todos os brasileiros ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, o que, em contrapartida, nos obriga ao
compromisso de preservação de todas as espécies. Desse modo, no parágrafo 4º
desse artigo na Constituição, veem-se garantidos em lei de preservação a
Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona
Costeira, todos considerados patrimônios nacionais. Outras leis e códigos
tratam de outros temas relacionados ao equilíbrio ecológico, à preservação de
sistemas complexos de vida, à biodiversidade, de maneira que, do ponto de vista
legal, mesmo havendo necessidade de seu aprimoramento contínuo, o país está
alinhado com as grandes preocupações e tendências internacionais relativas à
questão.
Ao
lado do sistema legal, cresceu e organizou-se todo um sistema institucional
que, além dos atores tradicionais, como as universidades, os sindicatos, as
associações de classe, passou a incluir um número muito grande de organizações
não governamentais (ONGs) voltadas ao tema e que têm tido papel definidor nas
políticas de preservação ambiental e nas ações efetivas para sua
operacionalidade, de modo que – não seria exagero dizer – meio ambiente e
ecologia são hoje tópicos de excelência nos avanços de cidadania que a
sociedade brasileira vem vivenciando e conquistando de alguns anos para cá.
O
tema da biodiversidade está relacionado a essas questões, mas envolve também um
aspecto econômico que lhe é intrinsecamente constitutivo e envolve ainda uma
possibilidade real de sua transformação em riqueza, o que lhe é dado pela
biotecnologia. De fato, a grande extensão territorial brasileira, a enorme
variedade de espécies que a povoa e o potencial tecnológico hoje disponível
para sua transformação em valor econômico, uma vez feito seu mapeamento e
consolidado seu conhecimento científico, tornam a biodiversidade do Brasil uma
riqueza efetiva e um desafio permanente: a riqueza está
estimada, pelo que se anuncia nos estudos do Ipea, em cerca de 4 trilhões de
dólares; o desafio reside em não desrespeitarmos o equilíbrio dessa vida
diversa e múltipla nem permitirmos que outros o façam, fazendo sua
bioprospecção sem, contudo, agredir seus sagrados direitos à existência,
garantidos pela Constituição. Como
se trata de um tesouro vivo, é preciso aprender a explorá-lo sem esgotar-lhe a
vida, que é, ela própria, a razão primeira e última de seu imenso valor
econômico e social para a qualidade de vida do homem na Terra. Múltiplo e
desigual, no espelho de seu ambiente, o homem aspira à unidade que hoje, mais
do que nunca, ele aprendeu, não se sustenta sequer como aspiração fora do
conhecimento e do reconhecimento de si no outro. Produzir riqueza, apropriando-se, pelo conhecimento e pela tecnologia, da natureza e da
diversidade manifesta e recôndita das vidas que a habitam, requer o fino
equilíbrio entre nosso legítimo desejo de bem-estar constante e a constância de
nosso compromisso consciente com a preservação das condições dessa variedade de
vidas. Com características de pensamento e linguagem singulares, o homem se
distingue e se assemelha pelo fato de viver em sociedade e por precisar
construir a sociedade para viver. Nessa construção, que é cultural, política e
econômica, o outro social só adquire densidade
plena na imagem biodiversa da natureza, de seus iguais e dessemelhantes.
É
possível manter os atuais padrões de produção e de consumo e ainda assim
acreditar ser possível o desenvolvimento sustentável da economia, da sociedade
e das relações do homem com a natureza? Tudo indica que não, ao menos se forem
levados em conta os indicadores que vêm sendo publicados por instituições como
a ONU ou o Fundo Mundial para a Natureza (em inglês, World Wildlife Fund WWF).
O
Relatório Planeta Vivo 2010, do WWF, afirma que excedemos em 50% a
capacidade da Terra para responder à demanda do consumo de alimentos e,
portanto, bastante além da capacidade de reposição do planeta. Como, em outubro
de 2011, a população na Terra passou dos 7 bilhões de habitantes, com previsão
para mais de 8,5 bilhões até 2050, grosso modo, tem-se o desenho do
cenário da catástrofe global que se anuncia desde o fim dos anos de 1960 e que
deu origem à consciência, cada vez mais aguda, de que é preciso replanejar, com
clareza, e praticar, com urgência, novas formas culturais de relacionamento
produtivo do homem em sociedade e da sociedade com a natureza.
Realizada
de 5 a 16 junho de 1972, a Conferência de Estocolmo acrescentaria, definitivamente,
às questões prioritárias discutidas pela ONU – a paz, os direitos humanos e o
desenvolvimento com igualdade – o tema da segurança ecológica. Desse modo, a Conferência
de Estocolmo passou a ser o marco de referência para as discussões sobre o que,
na sequência, viria a constituir uma das questões mais complexas e mais
cruciais da história recente da humanidade, ou seja, a questão do
desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, vários encontros e documentos foram
produzidos no interregno de vinte anos entre a Conferência de Estocolmo e a
seguinte, realizada em 1992.
Na
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) ou
Rio-92, realizada de 3 a 14 de junho de 1992, teve origem o documento Agenda
21, aprovado e assinado por 179 nações presentes no encontro. O documento
tem como
objetivo fomentar em escala planetária, a partir do século XXI, um novo modelo
de desenvolvimento – desenvolvimento sustentável – que modifique os padrões de
consumo e produção, de forma a reduzir as pressões ambientais e atender às
necessidades básicas da humanidade, conciliando justiça social, eficiência
econômica e equilíbrio ambiental.
Paralelamente
à Rio-92, ocorreu, promovido por entidades da sociedade civil, o Fórum Global 92,
do qual participaram cerca de 10 mil ONGS, e que, por sua vez, deu origem a
outro importante documento, a Carta da Terra, para pautar, pelos olhos
críticos e pelos interesses legítimos da cidadania, as ações globais dos
governos e dos órgãos oficiais em prol do desenvolvimento sustentável.
Dando
prosseguimento a essas discussões, vários eventos, acordos e compromissos de
repercussão internacional vêm ocorrendo, reforçando criticamente a necessidade
de medidas que avaliem a questão dos limites do crescimento e as consequências
dos modelos concentradores de produção e riqueza vigentes, hoje, na economia
globalizada.
O
primeiro tratado global para redução de gases de efeito estufa, o Protocolo de
Kyoto (1997), foi assinado nessa cidade do Japão por 189 países, os quais se
comprometeram em reduzir a emissão de gases poluentes que, segundo
especialistas, provocam o aquecimento global com efeitos catastróficos para a
humanidade. Mas os Estados Unidos, responsáveis por um alto percentual das
emissões de carbono, não assinaram o documento, levando consigo, para a mesma
posição de intransigência econômica, países como o Canadá e a Austrália. Em
compensação, o Japão, a Rússia e os quinze países que então formavam a União
Europeia aderiram ao protocolo, dando a medida de quanto é política, além de
ética, a luta para a mudança na cultura de gestão do meio ambiente e do
desenvolvimento sustentável nos diferentes países do mundo e de quanto os
interesses econômicos interferem na gestão dessas políticas. Por decisão do então
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Brasil aderiu ao
protocolo, buscando contribuir para a alteração do modelo de desenvolvimento
econômico em vigência no mundo, altamente predatório ao meio ambiente e à paz
social, tão decantada retoricamente e tão pouco praticada na efetividade da
distribuição da riqueza e da justiça social. O protocolo entrou em vigor em
fevereiro de 2005.
O
Fundo Verde Climático foi aprovado na 16ª Conferência das Nações Unidas sobre
as Mudanças Climáticas ou 16ª Conferência das Partes (COP-16), realizada em
novembro de 2010, em Cancún (México), quando os países desenvolvidos se
comprometeram a colocar 100 bilhões de dólares até 2020 num fundo para custear ações
de corte de emissões e de adaptação às mudanças climáticas. Em dezembro de 2011,
duzentos países reunidos na 17ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças
Climáticas ou 17ª Conferência das Partes (COP-17), em Durban (África do Sul),
aprovaram um pacote que prorrogava o Protocolo de Kyoto, viabilizava o Fundo
Verde Climático e criava um cenário de um acordo global com metas obrigatórias
de redução de emissão de gases estufa para todos os países, inclusive os
Estados Unidos e a China, que assumiram compromissos de corte das emissões de
dióxido de carbono (CO2).
Nas conferências dos próximos anos, deverão ser definidos detalhes e datas,
além de ser esperada a adesão do Japão, do Canadá e da Rússia, que decidiram
não participar da segunda fase do protocolo.
Nessa
trajetória, também merece destaque o Fórum Social Mundial (FSM), um espaço
organizado anualmente por entidades e movimentos de vários continentes que,
tendo caráter não governamental e não partidário, discute alternativas de
transformação social global, resumidas no slogan “Um outro mundo é possível”. Além de atividades
espalhadas pelo mundo nas edições de 2008 e 2010, os eventos do FSM já foram
centralizados no Brasil (2001, 2002, 2003, 2005, 2009, 2012), na Índia (2004),
no Mali (2006), no Paquistão (2006), na Venezuela (2006), no Quênia (2007) e no
Senegal (2011).
Dez
anos após a Rio-92, em 2002, as nações do globo realizaram a Cúpula Mundial
sobre Desenvolvimento Sustentável (CMDS) ou Rio+10, de 26 de agosto a 4
setembro de 2002, em Johanesburgo (África do Sul). Em 2012, a Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNDUS) ou Rio+20, que
aconteceu no Brasil, de 13 a 22 de junho, procurou manter, atualizar e
incentivar as propostas de ações para um mundo mais decente e seguro, com a
promoção de mais empregos, maior prosperidade, menos pobreza e menor
comprometimento do meio ambiente nos processos de produção e consumo numa
economia que possa, nesse sentido, ser cada vez mais verde.
O Brasil parece ter se preparado, tanto pelas ações governamentais, explicitadas
nas posições adotadas nesses eventos, como pelas ações da sociedade civil, para
desempenhar um papel importante entre as lideranças da consciência ecológica
mundial, que deverão, pelos documentos, pelas declarações, pelas análises críticas, pelo exemplo, enfim, constituir-se em exemplaridades éticas das políticas de meio ambiente e de
desenvolvimento sustentável a serem efetivamente adotadas para garantir
condições de qualidade de vida presentes, projetando-as, para a preservação da
vida com qualidade das futuras gerações.
O
conjunto de ações e de políticas de proteção ambiental que integram a Agenda
21 Brasileira resultaram de um amplo processo de diálogo e de discussão do
qual participaram mais de 40 mil pessoas em todos os estados do país que
elaboraram cerca de 6 mil propostas. Ela apresenta quatro seções, que estão
distribuídas por quarenta capítulos, 115 programas e aproximadamente 2.500
ações sobre as diferentes áreas incluídas no processo, desde saúde, educação e
ambiente até saneamento, habitação e assistência social. São estas as seções:
Dimensões Sociais e Econômicas, que trata das relações entre meio ambiente e
pobreza, saúde, comércio, dívida externa, consumo e população;
Conservação e Gerenciamento dos Recursos para o Desenvolvimento, que estabelece
maneiras de gerenciar os recursos naturais, visando a garantir o
desenvolvimento sustentável;
Fortalecimento dos Principais Grupos Sociais, no qual se apresentam formas de
apoio a grupos sociais organizados e minoritários que trabalham, colaboram ou
adotam os princípios e as práticas da sustentabilidade;
Meios de Implementação, em que são tratados os financiamentos e os papéis das
instituições governamentais e das entidades não governamentais no
desenvolvimento sustentável.
Dentro
desse processo de profundas mudanças em nossas atitudes culturais, é importante
entender que, muitas vezes, por diferentes caminhos de peregrinação e
aventuras, o conhecimento científico e experimental acaba por encontrar-se com
a sabedoria da tradição de antigas filosofias a dizer, pela teoria e pela
experimentação do método, o que já fora dito pela intuição especulativa e pela
expressão sensível de conceitos consubstanciados em metáforas e imagens de pura
poesia. Nesse sentido, leiamos o que escreve Aldo da Cunha Rebouças, no livro Águas
doces no Brasil, também organizado e coordenado por Benedito Pinto Ferreira
Braga Junior e José Galizia Tundisi: A ideia da Terra como um sistema
vem dos primórdios das civiliza- ções. Porém, a sua visão só se
tornou possível a partir das primeiras viagens espaciais, na década de 1960.
Atualmente, ninguém põe em dúvida a ideia chave da Teoria de
Gaia …, que mostra um estreito entrosamento entre as partes vivas
do planeta – plantas, microrganismos e animais – e as partes não vivas –
rochas, oceanos e a atmosfera. O ciclo todo é caracterizado por um
fluxo permanente de energia e de matéria, ligando o ciclo das
águas, das rochas e da vida. Essa visão sistêmica reúne geologia,
hidrologia, biologia, meteorologia, física, química e outras
disciplinas cujos profissionais não estão acostumados a se comunicar uns com
os outros. Torna-se evidente que, se a água é
elemento essencial à vida, esta é, por sua vez, um dos principais
fatores que engendram as condições ambientais favoráveis à existência
da água em tão grande quantidade e abundância na Terra².
Comparemos,
agora, o trecho acima com uma passagem do romance O fio da navalha, de
William Somerset Maugham, em que o autor-narrador dialoga com a personagem
Lawrence Darrel, que lhe conta, em um café de Paris (França), quase no fim da
obra, suas andanças por países e experiências, em busca de respostas às suas
indagações existenciais e metafísicas. O trecho em questão contém o relato do
jovem Larry de seu convívio com um também jovem amigo hindu em constante
jornada em busca de seu objetivo. –
E isso era…? –
Libertar-se do cativeiro da reencarnação. De acordo com os ven- danistas,
a identidade pessoal, que eles chamam de atman e nós de alma,
é distinta do corpo e seus sentidos, distinta do cérebro e sua inteligência;
não faz parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infi- nito,
não pode ter partes, é o próprio Absoluto. É incriada; sempre existiu
e, quando finalmente despir os sete véus da ignorância, voltará à
imensidade de onde veio. É como uma gota d’água que subiu do mar
e num aguaceiro caiu numa poça, resvalando depois para um regato,
e dali para um rio, passando por desfiladeiros e vastas planícies, insinuando-se
aqui e ali, malgrado o obstáculo de rochas e árvores caídas,
até chegar aos ilimitados mares de onde proveio³. A
visão sistêmica de nosso planeta, de que nos fala com competência científica
Rebouças, está, também, presente, a seu modo, no trecho do romance que
reproduz, por metáfora, a filosofia vedanta. As diferenças, é claro, entre uma
coisa e outra, são muitas e até mesmo intransponíveis, do ponto de vista
teórico e metodológico. Contudo, permanece inegável o fato de que em ambas as
atitudes culturais há um traço comum que nasce da consciência de que não basta
decompor analiticamente o todo em suas partes para chegar à plena compreensão
de seu funcionamento. É preciso, ao contrário, entendê-lo na sistematicidade
das relações entre natureza e cultura para que as transformações de uma pela
outra não engendre o monstro da soberba, tampouco o querubim da apatia.
Este texto, composto das partes III e IV do
ensaio Planeta água, integra o livro
do autor A utilidade do conhecimento.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2014, p. 114-123.
¹Brasil, Ministério do Meio Ambiente, A Convenção Sobre a
Diversidade Biológica – CDB, Cópia do Decreto Legislativo n.2, de 5 de junho de
1992. Brasília: MMA, 2002, p.9. Disponível em:
. Acesso
em 23 ago. 2013.
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