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Agroecologia e meio ambiente* - Calos Vogt
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Editorial
Agroecologia e meio ambiente*
Por Calos Vogt
10/10/2016

Como transformar conhecimento em valor econômico, parece ser o lema mais constante e a preocupação mais exasperante das sociedades contemporâneas, que estão empilhadas, em diferentes níveis, na pirâmide do desenvolvimento. E o desafio dessa transformação motiva e acompanha os esforços de sociedades desenvolvidas e de sociedades emergentes, que lutam para se estabelecerem como parceiros nos cenários da competitividade internacional. Surge, então, o primeiro paradoxo da retórica da globalização que, como tantos outros, procura, no discurso, harmonizar as contradições de que se faz, com ferocidade às vezes – o doce engano de que com a competição se dá também a ajuda mútua.

À atuação crescente e à conscientização amadurecida dos formadores de opinião, dos tomadores de decisão, de parcelas importantes das populações organizadas em instituições cada vez mais atuantes na afirmação dos direitos e deveres de cidadania, foi-se formatando, a partir dos anos de 1960, a concepção – consolidada, em 1972, em Estocolmo e reafirmada em 1992, na cidade do Rio de Janeiro – de que a Terra é um sistema coeso e integrado, no qual é possível ver, com clareza, a sistematicidade das relações entre as partes vivas e as partes não vivas. A mesma concepção se repetiu, em 2002, em Johanesburgo, e em 2012, na capital carioca.

Constituem-se, assim, os conceitos de ecossistema e de desenvolvimento sustentável e a compreensão moderna do termo biodiversidade, utilizado, então, para definir a variabilidade de organismos vivos, flora, fauna, fungos macroscópicos e microrganismos, abrangendo a diversidade de genes e de populações de uma espécie, a diversidade de espécies, a diversidade de interações entre espécies e a diversidade de ecossistemas, conforme o artigo 7º da Convenção sobre a Diversidade Biológica¹, celebrada na cidade do Rio de Janeiro em 1992, e que foi aprovada no Brasil, em 1994, pelo Decreto Legislativo n. 2, embora o tema tivesse sido tratado na Constituição de 1988, no artigo 225. Esse artigo consagra o direito de todos os brasileiros ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o que, em contrapartida, nos obriga ao compromisso de preservação de todas as espécies. Desse modo, no parágrafo 4º desse artigo na Constituição, veem-se garantidos em lei de preservação a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira, todos considerados patrimônios nacionais. Outras leis e códigos tratam de outros temas relacionados ao equilíbrio ecológico, à preservação de sistemas complexos de vida, à biodiversidade, de maneira que, do ponto de vista legal, mesmo havendo necessidade de seu aprimoramento contínuo, o país está alinhado com as grandes preocupações e tendências internacionais relativas à questão.

Ao lado do sistema legal, cresceu e organizou-se todo um sistema institucional que, além dos atores tradicionais, como as universidades, os sindicatos, as associações de classe, passou a incluir um número muito grande de organizações não governamentais (ONGs) voltadas ao tema e que têm tido papel definidor nas políticas de preservação ambiental e nas ações efetivas para sua operacionalidade, de modo que – não seria exagero dizer – meio ambiente e ecologia são hoje tópicos de excelência nos avanços de cidadania que a sociedade brasileira vem vivenciando e conquistando de alguns anos para cá.

O tema da biodiversidade está relacionado a essas questões, mas envolve também um aspecto econômico que lhe é intrinsecamente constitutivo e envolve ainda uma possibilidade real de sua transformação em riqueza, o que lhe é dado pela biotecnologia. De fato, a grande extensão territorial brasileira, a enorme variedade de espécies que a povoa e o potencial tecnológico hoje disponível para sua transformação em valor econômico, uma vez feito seu mapeamento e consolidado seu conhecimento científico, tornam a biodiversidade do Brasil uma riqueza efetiva e um desafio permanente: a riqueza está estimada, pelo que se anuncia nos estudos do Ipea, em cerca de 4 trilhões de dólares; o desafio reside em não desrespeitarmos o equilíbrio dessa vida diversa e múltipla nem permitirmos que outros o façam, fazendo sua bioprospecção sem, contudo, agredir seus sagrados direitos à existência, garantidos pela Constituição.

Como se trata de um tesouro vivo, é preciso aprender a explorá-lo sem esgotar-lhe a vida, que é, ela própria, a razão primeira e última de seu imenso valor econômico e social para a qualidade de vida do homem na Terra. Múltiplo e desigual, no espelho de seu ambiente, o homem aspira à unidade que hoje, mais do que nunca, ele aprendeu, não se sustenta sequer como aspiração fora do conhecimento e do reconhecimento de si no outro.

Produzir riqueza, apropriando-se, pelo conhecimento e pela tecnologia, da natureza e da diversidade manifesta e recôndita das vidas que a habitam, requer o fino equilíbrio entre nosso legítimo desejo de bem-estar constante e a constância de nosso compromisso consciente com a preservação das condições dessa variedade de vidas. Com características de pensamento e linguagem singulares, o homem se distingue e se assemelha pelo fato de viver em sociedade e por precisar construir a sociedade para viver. Nessa construção, que é cultural, política e econômica, o outro social só adquire densidade plena na imagem biodiversa da natureza, de seus iguais e dessemelhantes.  

É possível manter os atuais padrões de produção e de consumo e ainda assim acreditar ser possível o desenvolvimento sustentável da economia, da sociedade e das relações do homem com a natureza? Tudo indica que não, ao menos se forem levados em conta os indicadores que vêm sendo publicados por instituições como a ONU ou o Fundo Mundial para a Natureza (em inglês, World Wildlife Fund WWF).

O Relatório Planeta Vivo 2010, do WWF, afirma que excedemos em 50% a capacidade da Terra para responder à demanda do consumo de alimentos e, portanto, bastante além da capacidade de reposição do planeta. Como, em outubro de 2011, a população na Terra passou dos 7 bilhões de habitantes, com previsão para mais de 8,5 bilhões até 2050, grosso modo, tem-se o desenho do cenário da catástrofe global que se anuncia desde o fim dos anos de 1960 e que deu origem à consciência, cada vez mais aguda, de que é preciso replanejar, com clareza, e praticar, com urgência, novas formas culturais de relacionamento produtivo do homem em sociedade e da sociedade com a natureza.

Realizada de 5 a 16 junho de 1972, a Conferência de Estocolmo acrescentaria, definitivamente, às questões prioritárias discutidas pela ONU – a paz, os direitos humanos e o desenvolvimento com igualdade – o tema da segurança ecológica. Desse modo, a Conferência de Estocolmo passou a ser o marco de referência para as discussões sobre o que, na sequência, viria a constituir uma das questões mais complexas e mais cruciais da história recente da humanidade, ou seja, a questão do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, vários encontros e documentos foram produzidos no interregno de vinte anos entre a Conferência de Estocolmo e a seguinte, realizada em 1992.

Na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) ou Rio-92, realizada de 3 a 14 de junho de 1992, teve origem o documento Agenda 21, aprovado e assinado por 179 nações presentes no encontro. O documento tem como objetivo fomentar em escala planetária, a partir do século XXI, um novo modelo de desenvolvimento – desenvolvimento sustentável – que modifique os padrões de consumo e produção, de forma a reduzir as pressões ambientais e atender às necessidades básicas da humanidade, conciliando justiça social, eficiência econômica e equilíbrio ambiental.

Paralelamente à Rio-92, ocorreu, promovido por entidades da sociedade civil, o Fórum Global 92, do qual participaram cerca de 10 mil ONGS, e que, por sua vez, deu origem a outro importante documento, a Carta da Terra, para pautar, pelos olhos críticos e pelos interesses legítimos da cidadania, as ações globais dos governos e dos órgãos oficiais em prol do desenvolvimento sustentável.

Dando prosseguimento a essas discussões, vários eventos, acordos e compromissos de repercussão internacional vêm ocorrendo, reforçando criticamente a necessidade de medidas que avaliem a questão dos limites do crescimento e as consequências dos modelos concentradores de produção e riqueza vigentes, hoje, na economia globalizada.

O primeiro tratado global para redução de gases de efeito estufa, o Protocolo de Kyoto (1997), foi assinado nessa cidade do Japão por 189 países, os quais se comprometeram em reduzir a emissão de gases poluentes que, segundo especialistas, provocam o aquecimento global com efeitos catastróficos para a humanidade. Mas os Estados Unidos, responsáveis por um alto percentual das emissões de carbono, não assinaram o documento, levando consigo, para a mesma posição de intransigência econômica, países como o Canadá e a Austrália. Em compensação, o Japão, a Rússia e os quinze países que então formavam a União Europeia aderiram ao protocolo, dando a medida de quanto é política, além de ética, a luta para a mudança na cultura de gestão do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável nos diferentes países do mundo e de quanto os interesses econômicos interferem na gestão dessas políticas. Por decisão do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Brasil aderiu ao protocolo, buscando contribuir para a alteração do modelo de desenvolvimento econômico em vigência no mundo, altamente predatório ao meio ambiente e à paz social, tão decantada retoricamente e tão pouco praticada na efetividade da distribuição da riqueza e da justiça social. O protocolo entrou em vigor em fevereiro de 2005.

O Fundo Verde Climático foi aprovado na 16ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ou 16ª Conferência das Partes (COP-16), realizada em novembro de 2010, em Cancún (México), quando os países desenvolvidos se comprometeram a colocar 100 bilhões de dólares até 2020 num fundo para custear ações de corte de emissões e de adaptação às mudanças climáticas. Em dezembro de 2011, duzentos países reunidos na 17ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ou 17ª Conferência das Partes (COP-17), em Durban (África do Sul), aprovaram um pacote que prorrogava o Protocolo de Kyoto, viabilizava o Fundo Verde Climático e criava um cenário de um acordo global com metas obrigatórias de redução de emissão de gases estufa para todos os países, inclusive os Estados Unidos e a China, que assumiram compromissos de corte das emissões de dióxido de carbono (CO2). Nas conferências dos próximos anos, deverão ser definidos detalhes e datas, além de ser esperada a adesão do Japão, do Canadá e da Rússia, que decidiram não participar da segunda fase do protocolo.

Nessa trajetória, também merece destaque o Fórum Social Mundial (FSM), um espaço organizado anualmente por entidades e movimentos de vários continentes que, tendo caráter não governamental e não partidário, discute alternativas de transformação social global, resumidas no slogan “Um outro mundo é possível”. Além de atividades espalhadas pelo mundo nas edições de 2008 e 2010, os eventos do FSM já foram centralizados no Brasil (2001, 2002, 2003, 2005, 2009, 2012), na Índia (2004), no Mali (2006), no Paquistão (2006), na Venezuela (2006), no Quênia (2007) e no Senegal (2011).

Dez anos após a Rio-92, em 2002, as nações do globo realizaram a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (CMDS) ou Rio+10, de 26 de agosto a 4 setembro de 2002, em Johanesburgo (África do Sul). Em 2012, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNDUS) ou Rio+20, que aconteceu no Brasil, de 13 a 22 de junho, procurou manter, atualizar e incentivar as propostas de ações para um mundo mais decente e seguro, com a promoção de mais empregos, maior prosperidade, menos pobreza e menor comprometimento do meio ambiente nos processos de produção e consumo numa economia que possa, nesse sentido, ser cada vez mais verde.

O Brasil parece ter se preparado, tanto pelas ações governamentais, explicitadas nas posições adotadas nesses eventos, como pelas ações da sociedade civil, para desempenhar um papel importante entre as lideranças da consciência ecológica mundial, que deverão, pelos documentos, pelas declarações, pelas análises críticas, pelo exemplo, enfim, constituir-se em exemplaridades éticas das políticas de meio ambiente e de desenvolvimento sustentável a serem efetivamente adotadas para garantir condições de qualidade de vida presentes, projetando-as, para a preservação da vida com qualidade das futuras gerações.

O conjunto de ações e de políticas de proteção ambiental que integram a Agenda 21 Brasileira resultaram de um amplo processo de diálogo e de discussão do qual participaram mais de 40 mil pessoas em todos os estados do país que elaboraram cerca de 6 mil propostas. Ela apresenta quatro seções, que estão distribuídas por quarenta capítulos, 115 programas e aproximadamente 2.500 ações sobre as diferentes áreas incluídas no processo, desde saúde, educação e ambiente até saneamento, habitação e assistência social. São estas as seções:

􀂃 Dimensões Sociais e Econômicas, que trata das relações entre meio ambiente e pobreza, saúde, comércio, dívida externa, consumo e população;

􀂃 Conservação e Gerenciamento dos Recursos para o Desenvolvimento, que estabelece maneiras de gerenciar os recursos naturais, visando a garantir o desenvolvimento sustentável;

􀂃 Fortalecimento dos Principais Grupos Sociais, no qual se apresentam formas de apoio a grupos sociais organizados e minoritários que trabalham, colaboram ou adotam os princípios e as práticas da sustentabilidade;

􀂃 Meios de Implementação, em que são tratados os financiamentos e os papéis das instituições governamentais e das entidades não governamentais no desenvolvimento sustentável.

Dentro desse processo de profundas mudanças em nossas atitudes culturais, é importante entender que, muitas vezes, por diferentes caminhos de peregrinação e aventuras, o conhecimento científico e experimental acaba por encontrar-se com a sabedoria da tradição de antigas filosofias a dizer, pela teoria e pela experimentação do método, o que já fora dito pela intuição especulativa e pela expressão sensível de conceitos consubstanciados em metáforas e imagens de pura poesia. Nesse sentido, leiamos o que escreve Aldo da Cunha Rebouças, no livro Águas doces no Brasil, também organizado e coordenado por Benedito Pinto Ferreira Braga Junior e José Galizia Tundisi:

A ideia da Terra como um sistema vem dos primórdios das civiliza-

ções. Porém, a sua visão só se tornou possível a partir das primeiras

viagens espaciais, na década de 1960. Atualmente, ninguém põe em

dúvida a ideia chave da Teoria de Gaia …, que mostra um estreito

entrosamento entre as partes vivas do planeta – plantas, microrganismos

e animais – e as partes não vivas – rochas, oceanos e a atmosfera.

O ciclo todo é caracterizado por um fluxo permanente de energia

e de matéria, ligando o ciclo das águas, das rochas e da vida. Essa

visão sistêmica reúne geologia, hidrologia, biologia, meteorologia,

física, química e outras disciplinas cujos profissionais não estão

acostumados a se comunicar uns com os outros.

Torna-se evidente que, se a água é elemento essencial à vida, esta é,

por sua vez, um dos principais fatores que engendram as condições

ambientais favoráveis à existência da água em tão grande quantidade

e abundância na Terra².

Comparemos, agora, o trecho acima com uma passagem do romance O fio da navalha, de William Somerset Maugham, em que o autor-narrador dialoga com a personagem Lawrence Darrel, que lhe conta, em um café de Paris (França), quase no fim da obra, suas andanças por países e experiências, em busca de respostas às suas indagações existenciais e metafísicas. O trecho em questão contém o relato do jovem Larry de seu convívio com um também jovem amigo hindu em constante jornada em busca de seu objetivo.  

– E isso era…?

– Libertar-se do cativeiro da reencarnação. De acordo com os ven-

danistas, a identidade pessoal, que eles chamam de atman e nós de

alma, é distinta do corpo e seus sentidos, distinta do cérebro e sua

inteligência; não faz parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infi-

nito, não pode ter partes, é o próprio Absoluto. É incriada; sempre

existiu e, quando finalmente despir os sete véus da ignorância, voltará

à imensidade de onde veio. É como uma gota d’água que subiu do

mar e num aguaceiro caiu numa poça, resvalando depois para um

regato, e dali para um rio, passando por desfiladeiros e vastas planícies,

insinuando-se aqui e ali, malgrado o obstáculo de rochas e árvores

caídas, até chegar aos ilimitados mares de onde proveio³.

A visão sistêmica de nosso planeta, de que nos fala com competência científica Rebouças, está, também, presente, a seu modo, no trecho do romance que reproduz, por metáfora, a filosofia vedanta. As diferenças, é claro, entre uma coisa e outra, são muitas e até mesmo intransponíveis, do ponto de vista teórico e metodológico. Contudo, permanece inegável o fato de que em ambas as atitudes culturais há um traço comum que nasce da consciência de que não basta decompor analiticamente o todo em suas partes para chegar à plena compreensão de seu funcionamento. É preciso, ao contrário, entendê-lo na sistematicidade das relações entre natureza e cultura para que as transformações de uma pela outra não engendre o monstro da soberba, tampouco o querubim da apatia.


* Este texto, composto das partes III e IV do ensaio Planeta água, integra o livro do autor A utilidade do conhecimento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014, p. 114-123.

¹Brasil, Ministério do Meio Ambiente, A Convenção Sobre a Diversidade Biológica – CDB, Cópia do Decreto Legislativo n.2, de 5 de junho de 1992. Brasília: MMA, 2002, p.9. Disponível em: . Acesso em 23 ago. 2013.

²Rebouças, A. da C.; Braga Junior, B. P. F.; Tundisi, J. G. (org./coord.).  Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: IEA-USP/Academia Brasileira de Ciências (ABC)/  Escrituras, 1999, p. 4-5.

³Maugham, W.S. O fio da navalha. São Paulo: Globo/Folha, 2003, p. 271.