A campanha pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio tranformou a responsabilidade social empresarial num conceito conhecido e respeitado pela sociedade brasileira. É hora de empregar esta força em favor de um país menos desigual, e capaz de estabelecer nova relação com a natureza
“Devemos ser nós mesmos a mudança que queremos no mundo”, disse certa vez Mahatma Ghandi. Dois anos depois de iniciada a campanha brasileira pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que balanço é possível fazer de seus resultados? Quais os passos já cumpridos? Para onde podem caminhar as empresas dispostas a se transformar continuamente – para construir, a partir de si mesmas, o mundo e o país melhor pelo qual lutamos?
Os ODM entraram na agenda nacional. Receberam o apoio de parte importante das pessoas e organizações cujas atitudes repercutem em toda a sociedade, e se tornaram conhecidos por uma ampla parcela população. Ganharam face brasileira: graças a um importante esforço intelectual, os propósitos gerais estabelecidos na Conferência do Milênio da ONU foram adaptados à realidade brasileira. Resultaram num conjunto de metas compreensíveis e alcançáveis, e em indicadores que permitem acompanhar os progressos feitos para torná-las realidade. Passou-se das intenções aos gestos. Um número crescente de empresas adota práticas que contribuem diretamente para alcançar os oito objetivos.
Houve também um ganho cultural inestimável. Além de princípio ético, a responsabilidade social empresarial passou a ser vista – pela população e pelas próprias empresas – como algo capaz de produzir mudanças reais. Isso significou reconhecimento público e empoderamento. A população e os consumidores tendem a valorizar e criar empatia com as companhias cujo horizonte não se limita à conquista de mercados e de lucros. A partir das primeiras vitórias, estas empresas, seus dirigentes e colaboradores, sentem que são capazes de colocar para si mesmos metas mais audazes.
Nossas metas de longo prazo
No Brasil, duas delas são particularmente importantes, porque dizem respeito a potencialidades nacionais não realizadas e a dívidas que o país tem consigo mesmo. Estamos falando da luta contra a desigualdade e do uso sustentável de nosso patrimônio natural.
Por circunstâncias histórias, assumimos a condição de uma das nações mais desiguais do planeta e uma das que mais contribuem para a devastação da natureza. A primeira característica, adquirida no período da escravidão mas aprofundada ao longo das “modernizações” do século passado, resulta numa sensação permanente de exclusão, violência e risco de dissolução social. O Brasil multiplicou sua capacidade de produzir riquezas, mas as manteve extremamente concentradas. Uma parcela expressiva da população é permanentemente impedida de usufruir dos bens e serviços que o país produz. Essa situação de flagrante injustiça e violência produz outras formas de brutalidade – em particular o crime. Impede a sociedade de se conciliar consigo mesma, multiplicando situações de apartheid e ressentimento. Gera ameaça permanente de explosão social.
A segunda chaga – a devastação do ambiente – tem também raízes no passado. O primeiro papel do Brasil, no mercado internacional, foi de extrator e exportador de recursos naturais. O nome do país está associado ao de uma commodity. Embora os produtos fornecidos se alternassem, esta condição – e as seqüelas a ela associadas – se mantiveram até o século XX. E a devastação prosseguiu mesmo após a industrialização, alimentada pela abundância de recursos naturais, a ignorância, a falta de alternativas de sobrevivência em mutas regiões do país e a ganância primária de certos agentes econômicos poderosos. A hipótese de degradação da Amazônia, onde chegou a haver estiagem, em 2005, é um dos símbolos deste fenômeno.
Do problema à oportunidade
Um problema é sempre uma oportunidade, para os que acreditam no direito das sociedades a construir seu futuro comum. Certas características da civilização brasileira tornaram-se especialmente admiradas, em todo o mundo, nos últimos anos. Entre elas estão a criatividade, o espírito tolerante, a capacidade de tirar forças da diversidade. Não seriam estes valores tão marcantes – e tão opostos à idéia de discriminação social – dois grandes pontos de apoio para lutar contra a desigualdade?
O esgotamento de alguns recursos naturais e a descoberta do valor de outros têm feito emergir, ao mesmo tempo, algumas potencialidades econômicas ligadas ao patrimônio biológico do país. Nossas fontes de água doce – as mais fartas do planeta – significarão, ao longo deste século, uma vantagem promissora. O vasto território e sua insolação permanente podem nos transformar em grande produtor de biomassa, no exato momento em que outras formas de energia estão se extingüindo. Se protegidos, a biodiversidade de nossos eco-sistemas e os conhecimentos dos povos tradicionais poderão multiplicar as possibilidades do país em biotecnologia, um dos ramos econômicos cuja explosão é dada como certa, nas próximas décadas.
Enxergar e aproveitar oportunidades é algo inerente à cultura empresarial. Fazê-lo em sintonia com a construção de uma sociedade mais justa é base do conceito de responsabilidade social das empresas. Dois anos depois de iniciado o movimento pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, no Brasil, estamos em condições de comemorar muitas vitórias. Mas exatamente por as termos alcançado, é possível vislumbrar o passo adiante, o desafio ainda não atingido, as metas capazes de mobilizar nossas energias.
Enfrentar a desigualdade. Estabelecer uma relação sustentável com nosso imenso patrimônio natural. No segundo aniversário dos ODM, estas duas frases poderiam resumir nossas ambições de longo prazo. Para conquistá-las, as empresas precisarão, como lembrava Ghandi, incorporá-las a sua própria identidade e cultura – até se transformarem, elas próprias, em exemplo do país que queremos.
Antonio Martins é jornalista. Este texto é um trecho do manual produzido pelo Instituto Ethos: O compromisso das empresas com as metas do milênio – volume II. O texto original completo pode ser encontrado aqui.
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