Muitos artistas vêm se apropriando de imagens médicas, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, com a popularização das imagens de raios X. Num primeiro momento, a reflexão sobre esse mundo interior transparente representado por tais imagens é que orienta o trabalho de muitos artistas, como o inglês Francis Bacon, nos anos 50. Bacon utilizou um livro de radiologia – Positioning in radiology (1934), de Kathleen Clara Clark – como uma espécie de manual para a produção de algumas de suas obras, como Head surrounded by sides of beef (1954), em que o artista produz um corpo vivo em forma de carcaça tendo imagens de raios X como referência. Em 2000, a artista italiana Benedetta Bonichi produz “A Francis Bacon”, uma clara citação ao trabalho de Bacon, utilizando dessa vez imagens de raios X de fato.1
A partir de meados dos anos 70, além das imagens radiográficas convencionais, outras digitalizadas, presentes no contexto médico já a partir dos anos 60, passam a ser apropriadas por alguns artistas. A imagem do corpo cosmeticamente perfeito, difundida principalmente pela mídia, e, em particular, o corpo da mulher, começa a ser questionada e uma produção em sua grande maioria realizada por mulheres propõe uma definição de autobiografia que expande as convenções sociais dominantes. No lugar do corpo sadio, entram os corpos doentes.
Assumindo a imagem médica como uma representação cultural, interessa-me entender de que maneira o saber científico é lido e reconfigurado através da arte. Assim, algumas perguntas orientam essa pesquisa: Como as imagens de raios X, de endoscopia, ultra-som, tomografias, entre outras, interagem com uma rede de interpretações culturais e são reutilizadas fora do contexto médico? Como os conceitos de público e privado são (re)significados? Como os corpos cientificamente medicalizados são (re)construídos no contexto artístico?
No Brasil, a artista carioca Monica Mansur é quem tem se dedicado mais regularmente à exploração de imagens médicas em seu trabalho como gravadora. Desde 1995, quando a artista realiza sua primeira exposição com obras produzidas a partir de raios X e impressas sobre esparadrapo e gaze, até mais recentemente com suas “paisagens cristais”, ou refotografias, como ela as chama, Monica explora as possibilidades de criação através da própria reprodução, discutindo a estética da repetição.
Refotografias são imagens refotografadas a partir de vários exames médicos e depois impressas. A artista fotografa a imagem que resulta do exame, a digitaliza, manipulando-a em seguida. Monica retira partes, aumenta ou diminui a luz, distorce, amplia, modifica o espaço físico. Em seguida, as imagens são impressas sobre diferentes suportes e meios, que vão do esparadrapo e a gaze, passando pelos acetatos impressos em grandes formatos, pela fotografia digital, experimentando a gravura tridimensional em placas acrílicas, e, finalmente, chegando à impressão serigráfica sobre acrílicos e espelhos. Em 1996, Monica se aproxima do vídeo, criando uma instalação com imagens em movimento do interior de estômagos e cólons humanos.2
O que predomina no trabalho de Monica Mansur são questões internas ao processo da gravura e à impressão. O centro de suas reflexões é a reprodução mecânica, são as possibilidades da imagem mediada. A artista não busca nas imagens médicas inspiração para o seu trabalho, mas parte dele próprio, numa analogia, por exemplo, entre o processo da gravura e os cortes dos planos tomográficos. Um exercício de metalinguagem.
As imagens com as quais Monica Mansur trabalha podem ser de seu próprio corpo como de outro qualquer; são não-identidades. Coletadas aleatoriamente3, podem ser imagens de pacientes que já faleceram, de doentes ou não. A desindividualização do sujeito contemporâneo é outro ponto presente no trabalho da artista. É o rastro sem nome do exame médico. “O olhar não identifica; o olho só lhe diz que aquilo é um ser humano”, afirma Monica. Se é homem ou mulher, velho ou moço, sem conhecimento médico especializado não é possível saber; são visões médicas e somente existem porque foram "imaginadas" através de uma máquina, seja ela uma câmera de vídeo com fibra ótica, um túnel com ondas magnéticas ou laser que laminam cortes transversais de órgãos e ossos.
Ao produzir realidades pseudofotográficas, a artista instiga a imaginação não contaminada com o vocabulário imagético incluído no repertório do observador, enfatizando as mudanças na visualidade do homem contemporâneo, geradas a partir da reprodutibilidade das imagens. Como Didi-Huberman (1998) afirma, “aquilo que vemos vale – vive – apenas por aquilo que nos olha”4. Não há imagens inocentes, nem tampouco olhos inocentes. Mais do que algo para ser contemplado, as imagens médicas são entendidas aqui como um texto a ser decifrado ou lido pelo espectador; como uma construção e um discurso, cujo acesso à realidade é mediado.
A popularização das imagens médicas em diferentes contextos midiáticos (cinema, televisão, propaganda etc) tem fornecido ao público leigo – os artista inclusive – um olhar que anteriormente era limitado ao olho especializado do médico, contribuindo para a criação de uma cultura dependente das imagens e das tecnologias que as produzem. Os processos de iluminação do interior do corpo humano, a transparência, passam a existir, então, como um produto cultural, um artefato cultural.
Os artistas, ao apropriarem-se dessas imagens médicas, definem uma nova noção de retrato, já que tradicionalmente o retrato lida com a fisicalidade exterior e aqui, mesmo quando se olha para o interior dos corpos, pode-se não saber o que se vê. Documentado em ambientes médicos e/ou científicos e transformado por esses artistas, esse tipo de trabalho traz uma nova visão do corpo ao público, questionando os significados de identidade. Esses artistas estão, além disso, visualmente representando e traduzindo questões científicas para o público leigo.
Afinal, o que se vê está inseparavelmente ligado e depende de como se vê. Assim, a questão que me interessa é muito mais como essas imagens médicas significam o que elas significam em diferentes contextos e não o que essas imagens realmente são.
Este artigo é um recorte do texto “Imagens médicas entre a arte e a ciência: relações e trocas”, publicado na revista Cinética, no dossiê “Estéticas da biopolítica. Audiovisual, política e novas tecnologias”, organizado por Ilana Feldman, André Brasil, Cezar Migliorin e Leonardo Mecchi. Essa publicação foi contemplada pelo Programa Cultura e Pensamento, do Ministério da Cultura, em 2007.
Rosana Horio Monteiro é mestre e doutora em política científica e tecnológica pela Unicamp. Professora do programa de mestrado em cultura visual da Universidade Federal de Goiás.
Notas
1 Ver www.toseeinthedark.it. 2 Para a visualização das obras da artista, visite www.monicamansur.com. 3 As imagens médicas usadas por Monica são, em geral, doadas por médicos que já conhecem o seu trabalho. 4 Didi-Huberman, G. O que vemos, o que nos olha . São Paulo: Ed. 34, 1998.
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