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Artigo
Lógica como semiótica: apontamentos sobre o pensamento de Peirce
Por Cassiano Terra Rodrigues
10/03/2006

A concepção de lógica como semiótica, de Charles Sanders Peirce (1839-1914), é muito mais ampla do que a tradicional concepção da lógica como calculus raciocinatur e, talvez, seja a mais anti-positivista e libertária concepção de lógica já defendida por um lógico. Para entender melhor a semiótica peirciana, é preciso entender a sua classificação das ciências da descoberta, ditas heurísticas, porque são aquelas ciências que nos fazem descobrir coisas novas. Essa classificação pode ser apresentada num diagrama com a possível disposição:


    A. Ciências da descoberta, chamadas heurísticas.

        A.1. Classe: Matemática

            A.1.i. Subclasse: matemática da lógica

            A.1.ii. Subclasse: matemática das series discretas

            A.1.iii. Subclasse: matemática dos continua e pseudocontínua.

    A.2. Classe: Filosofia, ou cenoscopia

        A.2.i. Subclasse: Categórica, fenomenologia ou faneroscopia

        A.2.ii. Subclasse: Ciência Normativa

            A.2.ii.a. Ordem: Estética

            A.2.ii.b. Ordem: Ética

            A.2.ii.c. Ordem: Lógica

        A.2.iii. Subclasse: Metafísica

            A.2.iii.a. Ordem: Metafísica geral, ou ontologia

            A.2.iii.b. Ordem: Metafísica psíquica ou religiosa

            A.2.iii.c. Ordem: Metafísica física


A classificação é lógica: as ciências mais gerais fornecem princípios às menos gerais, que, por sua vez, fornecem dados e informações às primeiras. A lógica aparece em dois lugares diferentes no diagrama, na primeira subclasse da matemática e na terceira ordem de uma subclasse da filosofia.

 

Como subclasse da matemática, a lógica é parte constitutiva dela, mas com uma diferença fundamental. A matemática é a ciência que “não se incumbe de averiguar nenhuma razão de fato, mas, sim, meramente de por hipóteses e de investigar as suas conseqüências” CP 1.240. Assim, ela não lida com fatos positivos, mas somente com construções imaginárias para, em seguida, “observar esses objetos imaginários, encontrando neles relações de partes não especificadas no preceito da construção.” id.. Por causa disso, a matemática é a ciência que constrói modelos formais hipotéticos e, em seguida, extrai conclusões necessárias dedutivamente desse modelo. Ora, isso é muito próximo do que comumente se chama de lógica. Mas, segundo Peirce, uma diferença crucial é que a lógica visa explicitar todos os passos do raciocínio, sendo a ciência de extrair conclusões necessárias CP 4.239. A diferença é de interesse: enquanto a matemática se pauta pelo princípio de economia, visando determinar os passos estritamente necessários para se chegar a uma conclusão, a lógica visa analisar um raciocínio “em seus passos elementares últimos”, sejam eles necessários ou não para se chegar à conclusão id.. A lógica se interessa, assim, pelo que a matemática em certo sentido despreza, isto é, pelo caráter retórico do raciocínio. Na verdade, a retórica é parte constitutiva da lógica, como veremos.


Como ordem das ciências normativas, a lógica é uma parte da investigação filosófica. Aqui, a lógica é a semiótica propriamente dita, “ciência das condições gerais dos signos serem signos” CP 1.444. A filosofia é também chamada de cenoscopia, isto é, “visão do comum”; segunda ciência heurística, na ordem lógica da generalidade de suas investigações, é antecedida pela matemática. Enquanto a matemática não diz nada a respeito das verdades fatuais, a filosofia lida com os fatos mais comuns da experiência humana: “por Filosofia, quero dizer aquele departamento da Ciência Positiva, ou Ciência de Fato, que não se ocupa em recolher fatos, mas meramente em aprender o que pode ser aprendido da experiência que constrange a cada um de nós, todos os dias e todas as horas.” HL 207-208. A filosofia, inicialmente, não junta novos fatos, porque isso implica assumir pontos de vista metafísicos sobre o que é a realidade de fato; os primeiros passos da filosofia acontecem sobre o solo daquela “experiência comum da qual ninguém duvida ou pode duvidar e da qual ninguém nem mesmo fingiu duvidar ...; assim como um escritor não está ciente das peculiaridades de seu próprio estilo, assim como ninguém de nós pode ver a si mesmo como os outros podem.” id.. O ponto de partida da filosofia é o aqui-e-agora de todos os seres humanos, o mundo do senso comum do qual não há razões para duvidar, porque não se percebe que é possível duvidar dele, tão imersos nele que estamos. A investigação filosófica, já de início, volta-se para a vida, e não para os livros: “Certamente, em filosofia, o que um homem não pensar por si mesmo, isto ele jamais entenderá. Nada pode ser aprendido de livros e palestras. Eles devem ser tratados não como oráculos, mas simplesmente como fatos a serem estudados como quaisquer outros.” HL 139. Se as hipóteses e conclusões da filosofia partem da e retornam à experiência mais geral e corriqueira, sua força deve estar na possibilidade de serem plenamente universais, com a mínima probabilidade de exceções. Assim, qualquer pessoa também poderia por à prova as conclusões de uma inquirição filosófica, confirmando ou refutando a sua veracidade. Em suma, a filosofia pode ser entendida como a ciência do embate com a experiência, no que ela tem de mais perturbador e resistente e no que ela tem de mais universal e corriqueiro. Cada uma das subclasses da filosofia é definida pela maneira característica de compreender a experiência.


Em primeiro lugar, a investigação filosófica apresenta-se como fenomenologia: “Essa deve ser a ciência que não extrai qualquer distinção de bom ou mau em qualquer sentido que seja, mas só contempla fenômenos como eles são, simplesmente abre seus olhos e descreve o que vê.” HL 120. A fenomenologia não se restringe a observar e analisar a experiência atual e efetiva, mas também deve “descrever todos os aspectos que são comuns a tudo aquilo que é experienciado ou poderia concebivelmente ser experienciado ou se tornar objeto de estudo, de qualquer maneira, direta ou indiretamente.” id.. A fenomenologia, portanto, não é a ciência somente daquilo que aparece, mas também daquilo que parece ser de uma certa maneira. Não se trata de interpretar a experiência para entender o que ela nos diz sobre a realidade do mundo exterior, mas de inspecionar a própria experiência, com base na observação e na descrição de seus elementos mais essenciais.


A segunda subclasse da cenoscopia é composta pelas ciências normativas. Tal subclasse pode ser definida como “uma análise das condições de obtenção de algo que tenha como um de seus elementos essenciais o propósito” CP 1.575, isto é, um fim, um ideal. Porque são investigações sobre as maneiras de atingir determinados fins, essas ciências são ditas normativas, porque estabelecem as condições de ação controlada, isto é, segundo uma norma, um parâmetro para a obtenção desses fins. Por isso é que fazem a distinção entre o que deveria e o que não deveria ser EP 2: 259. As ciências normativas formam “a parte mais característica” da cenoscopia, por estudarem o domínio no qual “nosso encontro com o fato bruto é recompensado” EP 2: 376. Por causa disso, cada uma das ciências normativas é marcada por um “duro dualismo” do encontro com a experiência em suas formas fenomenológicas. Percebe-se que o problema aqui implícito é o do tradicional dualismo filosófico entre o ser e o dever-ser, problema que não podemos desenvolver nos limites deste artigo.


A estética é a ciência que busca determinar como é possível distinguir o que é admirável em si mesmo do que não é; a ética é o estudo das condições da conduta deliberada para se conformar a um ideal admirável por si mesmo; e a lógica é o estudo do pensamento deliberado, na medida em que este é uma forma de ação deliberada HL 212. A lógica deve ser a investigação sobre as condições de possibilidade de se pensar a verdade, pois nenhum outro ideal seria mais admirável ao pensamento do que a verdade, que é considerada por Peirce como bem lógico per se HL 216. Com base nisso, depreende-se o preciso sentido da famosa afirmação peirciana de que lógica é semiótica, isto é, “a lógica como o estudo cenoscópico total ... de todas as espécies de signos.” EP 2: 387. Com efeito, a lógica concebida ampliadamente como semiótica tem três ordens:

 

Todo pensamento sendo perpetrado por meio de signos, a Lógica pode ser considerada como a ciência das leis gerais dos signos. Ela tem três ramos: (1) Gramática Especulativa, ou a teoria geral da natureza e da significação dos signos ...; (2) Crítica, que classifica argumentos e determina a validade e o grau de força de cada espécie; (3) Metodêutica, que estuda os métodos que deveriam ser perseguidos na investigação, na exposição e na aplicação da verdade. EP 2: 260.

 

Essas três divisões da lógica constituem o que Peirce chama de trivium filosófico, no qual o teor retórico de cada uma delas é evidente. A gramática especulativa estuda as várias maneiras de se emitir asserções, e não só as expressões verbais: “a álgebra, figuras aritméticas, emblemas, linguagem gestual, maneiras, uniformes, monumentos, para mencionar apenas os modos intencionais de declaração.” A gramática especulativa, assim, é o estudo dos modos de significar em geral, isto é, das condições gerais dos signos serem signos EP 2:19; CP 1.444. A segunda divisão da lógica como semiótica, disciplina que Peirce também chama de retórica especulativa, está estreitamente relacionada com o estudo do uso efetivo de formas significativas: “Uma arte de pensar deveria também recomendar as formas de pensamento que mais economicamente servirão ao propósito da Razão. ... Já que esta é a fundação geral da arte de colocar proposições em formas efetivas, ela tem sido chamada retórica especulativa.” EP 2:19. A retórica especulativa estuda “as leis da evolução do pensamento”, e seu nome vem do fato de ser o estudo das condições necessárias da transmissão de significado por meio de signos; em outras palavras, pode ser chamada de lógica objetiva, já que lida com as condições efetivas da significação. A terceira divisão completa a definição da lógica como semiótica, estudando os métodos e procedimentos que levam o pensamento a expressar a verdade. Nessa definição ampliada da lógica como semiótica, encontramos a justificativa teórica das classificações dos signos apresentadas por Peirce e tantas vezes mal-compreendidas.


A metafísica, enfim, terceira subclasse da filosofia, sendo a ciência que busca dar uma interpretação do universo da mente e do universo da matéria id., é a ciência que busca dizer o que é a realidade em seus traços e características mais gerais EP 2: 375. Para Peirce, a situação da metafísica em sua época carecia de rigor e de parâmetros científicos: “em sua presente condição, ela é, ainda mais do que os outros ramos da cenoscopia, uma ciência trocadilhesca, raquítica e escrofulosa.” id.. Mas esse é assunto para outra ocasião.


Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia no Centro Universitário - SENAC-SP, Colégio I. L. Peretz e é pesquisador do Centro de Estudos do Pragmatismo, na PUC–SP.

 

Obs.: O autor agradece a Vicente Sampaio pela atenta leitura deste artigo, que me permitiu melhorá-lo em diversos aspectos. Obviamente, toda responsabilidade sobre o escrito é minha.

 

Bibliografia das obras de Peirce citadas:

 

Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Ed. by: C. Hartshorne & P. Weiss (v. 1-6); A. Burks (v. 7-8). Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-58. 8 v. CP, seguido dos números do volume e do parágrafo.

 

The Essential Peirce: Selected Philosophical Writings. Ed. by: N. Houser & C. Kloesel (v. 1: 1867-1893); “Peirce Edition Project” (v. 2: 1893-1913). Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1992-98. 2 v. EP, seguido dos números do volume e da página.

 

Pragmatism as a Principle and Method of Right Reasoning: The 1903 Harvard “Lectures on Pragmatism”. Ed. and Introduced with a commentary, by Patricia Ann Turrisi. Albany, NY: The State University of New York Press, 1997. HL, seguido do número da página.