Nas últimas décadas, diversas pesquisas envolvendo primatas em seu habitat natural têm demonstrado que, guardadas as devidas proporções, a complexidade da vida social e a capacidade de criar e manipular ferramentas não são exclusividades humanas. Mas além do vasto repertório de criações do homem ser inigualável, muito antes da invenção da roda ele já havia criado a máquina mais fantástica de todos os tempos, na opinião do escritor argentino Jorge Luis Borges – que usou com maestria esse artefato universal e ao alcance de todo e qualquer ser humano: a linguagem. Há algo em comum ou alguma relação entre esse fantástico aparato humano e a comunicação animal – particularmente, a de outros primatas? Houve um grande salto evolutivo para o surgimento da linguagem?
Em 1980, a bióloga Doroth Cheney e o psicólogo Robert Seyfarth, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, apresentaram em parceria com Peter Marler, do Laboratório de Comunicação Animal da Universidade da Califórnia, um estudo sobre chamados de alarme emitidos por macacos vervet (Cercopithecus aethiops) para anunciar aos membros de seu grupo a presença de diferentes tipos de predadores. Os pesquisadores identificaram três chamados distintos. Ao ouvir um deles, os vervet se escondiam atrás de moitas e olhavam para o alto, esperando a chegada de uma águia. Outro chamado os levava a ficar eretos no solo e atentos aos movimentos no chão, à espera da passagem de uma cobra. O terceiro chamado indicava que eles deviam subir no abrigo mais comum entre os primatas, as árvores, para não serem pegos por um leopardo. Macaco vervet fêmea de Uganda. Foto: Rhett A. Butler
Uma década depois, o brasileiro Francisco Dyonisio Cardoso Mendes, antropólogo com especialização em primatologia, iniciou uma série de gravações de sons emitidos por muriquis (Brachyteles arachnoides) da Estação Biológica de Caratinga, em Minas Gerais , uma área de Mata Atlântica ainda preservada. O estudo desse que é considerado o maior primata das Américas, desenvolvido por Mendes ao longo do mestrado e do doutorado em psicologia experimental pela USP, sob orientação de César Ades, levou a achados sobre a vocalização dos muriquis que chamaram a atenção do foneticista Didier Demolin, da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica. A partir da fonética acústica, que estuda os sons da fala humana, Demolin, Ades e Mendes analisaram chamados longos usados em distâncias acima de 50 metros entre membros do grupo, identificados como relinchos, e chamados curtos, identificados como estacados, usados em distâncias curtas.
“Relinchos e estacados são vocalizações cuja estrutura acústica difere das vocalizações emitidas em contextos específicos”, afirma Mendes, referindo-se a choros de filhotes que se sentem abandonados, a convocações da mãe à prole desgarrada ou a alarmes em situação de perigo. Ele não distingue esses últimos como sons inatos – herdados geneticamente – em contraposição àqueles chamados mais complexos, que envolvem diferentes recombinações de 14 elementos sonoros e ocorrem como intercâmbios seqüenciais, nos quais um muriqui responde ao chamado do outro. “Dificilmente um determinado comportamento é apenas inato ou apenas aprendido, e não temos estudos sobre o desenvolvimento das vocalizações de muriquis pra saber o quanto elas são aprendidas”, diz Francisco Mendes.
“Esse achado é muito importante. Há sons dos muriquis com vibrações que parecem com a das nossas consoantes vibrantes”, avalia Eleonora Cavalcanti Albano, do Laboratório de Fonética e Psicolingüística da Unicamp, que teve acesso aos dados e às análises acústicas. “Mas a articulação é diferente. O trato vocal deles é pequeno, bem menor que o nosso”, completa, mencionando a parte do corpo entre as pregas ou cordas vocais e os lábios, usada para articular os sons. Muriqui fêmea de Caratinga e seu filhote. Foto: Luciano Candisani
Mendes, que é professor da Universidade Católica de Goiás, e Ades, da USP, acreditam que o alto grau de dispersão dos muriquis e a densa vegetação do seu habitat podem ter favorecido a evolução das complexas vocalizações nessa espécie, por dificultar um outro tipo de comunicação, a visual. “Posturas, movimentos e expressões faciais são muito importantes para os primatas, mas necessitam de ambientes mais abertos para que sejam eficientes. Primatas que vivem em florestas tendem a utilizar mais frequentemente a comunicação vocal e possuir vocalizações mais complexas”, observa Mendes.
Ainda não há descrição semântica sobre os significados das diferentes combinações de sons dos muriquis, como a que foi feita em relação aos vervet, associando três tipos de chamados a três situações específicas. “A dificuldade de encontrar o contexto específico de estacados e relinchos tem a ver com o fato de eles acontecerem ao longo do dia em diversos contextos. Mas alguns elementos sonoros contidos em estacados e relinchos foram associados a alguns contextos, como por exemplo o estado reprodutivo da fêmea vocalizadora, a coesão do grupo durante o forrageio (procura de alimento) e a presença de grupos vizinhos de muriquis”, conta o antropólogo da Universidade Católica de Goiás.
Mesmo que o avanço das pesquisas chegasse à associação de diferentes combinações de sons a significados específicos – da mesma forma que na linguagem humana atribuímos um sentido a “lobo” e outro a “bolo” –, o que poderia levar a um “vocabulário muriqui”, ainda assim não seria possível chamar essa comunicação propriamente de linguagem. “Seria um léxico (vocabulário) como o de uma criança com menos de dois anos de idade. A capacidade de combinação é pequena”, pontua Albano, da Unicamp. Além disso, mesmo no caso dos vervet, embora emitam um som interpretável como “leopardo”, não há evidência de que eles seriam capazes de visualizar uma pegada e dizer algo do tipo “por aqui passou um leopardo” ou “o leopardo pode voltar”. A possibilidade de relatar o passado, predizer o futuro ou referir-se a algo que não está presente são características que distinguem a linguagem humana. “Em uma língua natural, você tem liberdade no tempo e no espaço para falar de qualquer coisa”, completa a pesquisadora.
Segundo Albano, pode-se caracterizar as vocalizações dos muriquis como uma protolinguagem. O termo, emprestado da lingüística comparativa, área de estudo que faz a comparação de línguas aparentadas para chegar a uma proto-língua de origem comum, foi usado pelo lingüista Derek Bickerton e pelo neurologista William Calvin, no livro Lingua ex machina – reconciling Darwin and Chomsky with the human brain (Lingua ex - machina: reconciliando Darwin e Chomsky com o cérebro humano) (2000), para tratar da evolução da linguagem. A partir da teoria evolutiva de Darwin, os autores levantam a hipótese de que uma protolinguagem relativamente simples, formada por gestos e algumas palavras, teria surgido a partir de pressões seletivas envolvendo a interação com o ambiente, como a necessidade de notar e interpretar pistas como pegadas, para escapar de um predador, já que o homem vivia em savanas, onde não havia a proteção das árvores das florestas tropicais habitadas por chimpanzés, além de sua capacidade para subi-las ser menor.
A reconciliação anunciada no subtítulo do livro está na proposição da protolinguagem como um estágio entre a ausência de linguagem e a linguagem plena que o lingüista Noam Chomsky acredita ser inata no ser humano. Segundo ele, herdaríamos geneticamente princípios sintáticos universais – como a existência de sujeito, verbo e objeto em qualquer língua –, enquanto parâmetros específicos – como o adjetivo vir antes do substantivo, em inglês – seriam fixados no contato da criança com a língua dos pais. “Todas as línguas do mundo permitem formular infinitas frases a partir de um número finito de palavras e de regras sintáticas. E qualquer criança de quatro anos já consegue falar fluentemente em sua língua materna sem nunca ter ido à escola”, diz Gabriel de Ávila Othero, da PUC-RS, que também tenta conciliar Chomsky e o evolucionismo em textos como “Darwin, Lamarck e a lingüística” e “A comunicação animal: uma forma de linguagem?”. Neste último, embora não use o termo protolinguagem, Othero discorda da afirmação de Chomsky sobre não haver qualquer semelhança entre a comunicação animal e a linguagem humana, mas concorda que a riqueza de criar sentenças distintas a partir de termos recorrentes na língua seja uma exclusividade humana.
De acordo com Othero, os primatas conseguem lidar com uma linguagem simbólica e criar sentenças rudimentares, mencionando o chimpanzé Chimpsky – batizado assim, como uma referência a Chomsky – e a gorila Koko que foram domesticados em centros de primatologia e treinados para usar a língua de sinais norte-americana. “O que acontece no caso dos animais que dominam alguma linguagem de sinais é que eles apresentam uma sintaxe bastante rudimentar, sem essa capacidade de criação e de recursão. Além disso, esses animais passam por treinamentos exaustivos e artificiais. Não vemos na natureza animais se comunicarem pela linguagem de sinais”, observa.
Os pioneiros em pesquisas envolvendo domesticação e treinamento de primatas foram Winthrop Kellogg, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, e sua esposa Luella. O casal adotou em 1931 uma chimpanzé de sete meses e meio de idade, Gua, para criá-la junto com seu filho Donald, então com dez meses. Os pesquisadores relatam a percepção da chimpanzé em relação a sentenças como a sugestão dos pais para que Donald pegasse a mão de Gua, em que ela geralmente tomava a iniciativa. Eles tentaram ensinar a Gua e Donald várias palavras do inglês, sem sucesso durante os nove meses do experimento.
O caso mais notável é o da bonobo Kanzi, estudada por Sue Savage-Rumbaugh no Centro de Estudos de Primatas de Yerkes, também nos Estados Unidos. Ela demonstrou um interesse bem maior que o de sua mãe no treinamento do uso de teclado de computador com lexigramas (ícones em lugar de palavras). Já no primeiro dia de treinamento, Kanzi usou o teclado 120 vezes, e segundo a pesquisadora, a bonobo comunicou-se naturalmente e sabia o que os símbolos significavam. “Está mais do que provado que os primatas são capazes de lidar com símbolos, e Kanzi é um exemplo disso”, diz Eleonora Albano, da Unicamp.
Ela menciona a descoberta feita pelo italiano Giacomo Rizzolatti, do Departamento de Neurociências da Universidade de Parma, há quase uma década, dos neurônios espelhos no lóbulo frontal de macacos. Esses neurônios respondem à observação de um movimento e estão ligados ao aprendizado por imitação. Alguns pesquisadores, como Vilayanur Ramachandran, do Departamento de Neurociências da Universidade da Califórnia, associam esses neurônios à origem da linguagem pela imitação de gestos. Albano concorda com a hipótese de que a linguagem pode ter surgido primeiro com gestos, que durante um tempo conviveram com palavras na construção de sentenças simples – como propõe Bickerton, em sua hipótese da protolinguagem – e depois evoluíram para a complexa vocalização que usamos há milhares de anos.
A pesquisadora da Unicamp está orientando uma pesquisa de doutorado, desenvolvida por Leonardo Couto, que através de simulação em computador, vai testar se a hipótese gestual para o surgimento da fala é plausível. Segundo ela, a abordagem de Couto não será sobre a vantagem adaptativa da fala diante do gesto, e sim sobre a vantagem perceptiva, ou seja, no entendimento do que o outro diz. Mas a questão da origem da linguagem é controversa e o próprio Bickerton, em Lingua ex-machina, assume sua idéia de protolinguagem como uma especulação talvez não comprovável. “Chomsky diz que existem problemas (que ainda não solucionamos, mas estamos caminhando pra isso) e mistérios (que nunca iremos solucionar)”, lembra Othero, da PUC-RS. “A questão da origem da linguagem parece estar mais para um mistério do que para um problema”, opina. Se ele está certo ou se seremos capazes de um dia desvendar esse mistério, só o futuro dirá.
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