Há
dimensões da existência humana que são repetidamente apresentadas
como naturais, como existindo sem alterações desde sempre, mas que
possuem sua história secreta. A loucura é certamente uma delas. Sua
história é contada por Michel Foucault em um livro (História da
loucura na idade clássica) e em pelo menos dois cursos já
publicados (O poder psiquiátrico e Os anormais), onde
relata os acontecimentos subterrâneos pelos quais a loucura foi
convertida em doença mental.
No
contexto das décadas de 1960 e 1970, quando diversos movimentos
sociais reivindicavam o direito de afirmar a verdade sobre a sua
própria identidade, a relação entre a psiquiatria e a loucura foi
pensada por Foucault e outros intelectuais como central nas lutas de
seu tempo. O louco reduzido a doente mental era o caso paradigmático
de perda de autonomia do sujeito a partir de uma identidade que lhe
era imposta por outros. Na relação psiquiatra-paciente, o médico
era superinvestido de poder, podendo, a partir da autoridade de seu
saber científico, diagnosticar a doença mental do paciente. Este,
por sua vez, após ser diagnosticado como doente mental, perdia toda
a autonomia sobre si mesmo, não podendo nem mais afirmar a verdade
sobre si nem determinar os rumos da sua vida, que passavam
inteiramente para as mãos do especialista que deveria tratá-lo.
O estigma
da doença mental rompia todo diálogo entre o louco e as pessoas de
razão, restando apenas o monólogo da razão científica positivista
sobre esse ser humano silenciado. Contar a história da formação
desse poder, esquecida sob a naturalização do discurso
médico-psiquiátrico, era revelar a batalha por meio da qual
determinados modos de ser foram descartados como não-humanos,
perdendo seu direito de existir livremente. Além disso, como o
louco-doente mental era o caso paradigmático de imposição da
identidade, mostrar os pressupostos e efeitos de poder do saber
científico permitia desconstruí-lo e assim abrir espaço para que
outros movimentos sociais reivindicassem a verdade sobre si mesmos,
estabelecendo o significado de suas diferenças e fazendo
experiências com outras formas de ser (movimento feminista, negro,
de orientações sexuais diversas, étnicos, entre outros).
Em
História da loucura na idade clássica, Foucault iniciou sua
luta contra as verdades antropológicas assujeitadoras apresentadas
como naturais e universais. Não se trata, nesse livro inaugural, de
retraçar os avanços da psiquiatria em relação a um objeto
imutável que se revelaria aos poucos com a sofisticação dos
métodos científicos. Tampouco de contar como o surgimento da
psiquiatria no século XVIII representou uma guinada para um
tratamento mais humano e racional, com a clássica imagem de Pinel
libertando os loucos das correntes em Bicêtre. Trata-se, pelo
contrário, de mostrar historicamente como se deu a separação entre
a loucura e a razão, o rompimento do diálogo e da troca entre
ambas, relegando a loucura ao silêncio. Nesse processo, a própria
razão se constituiu por oposição à loucura. Somente com a
realização histórica a priori dessa separação e
subjugação que se tornou possível a elaboração de um saber
científico sobre a loucura, forma de conhecimento positivista que é
uma racionalidade abstrata imposta ao louco como ordem, constrição
física e moral, pressão anônima do grupo e exigência de
conformidade.
A
história da loucura feita por Foucault é uma história contada do
ponto de vista dos sujeitados, não de sua experiência vivida
direta, mas de uma perspectiva que permite compreender pelo avesso
como se constituíram os poderes que na sociedade determinaram o que
é racional, relegando a alteridade à condição de doença e de
não-humanidade. Nessa condição estigmatizada, as falas
balbuciantes são reduzidas a sintomas que o especialista deve
interpretar. Em última instância, quem falaria pela boca do louco
seria sempre a doença mental, cuja verdade é simultaneamente
produzida e revelada pelo psiquiatra. É, portanto, a história da
sujeição e do silenciamento da loucura que Foucault relata.
Foucault
retorna ao fim da Idade Média para mostrar como essa separação que
hoje tomamos como evidente não existia. Ao mostrar a alteridade do
passado, Foucault já desnaturaliza o presente, mostrando que o que
somos hoje possui uma história feita das contingências das lutas e
relações humanas, sendo, portanto, passível de mudança. Nesse
momento, a loucura ainda circulava livremente, fazia parte da vida
cotidiana, não havendo internamento. Sua imagem característica era
a da nau dos loucos, navios em que estes eram embarcados e levados de
uma cidade a outra. A loucura possuía valores e significados
herdados do que havia sido a lepra antes de seu desaparecimento após
o fim das Cruzadas: representava ao mesmo tempo a cólera e a bondade
de Deus, pois sua exclusão social remetia à salvação de sua alma.
A nau compreendia assim um sentido ritual, onde a segregação
imiscuía-se à reintegração espiritual. O embarque dos loucos
assegurava sua partida para longe, fazendo com que se tornassem
prisioneiros de sua própria partida, realizando simultaneamente uma
purificação e uma passagem para a incerteza da sorte. A água e a
navegação remetiam a uma consideração simbólica da loucura:
encerrado na nau, o louco estava entregue ao livre curso das
correntes e das marés, tornando-se prisioneiro da mais livre das
rotas, um prisioneiro da passagem. O louco era assim um errante,
figura ambígua que ameaçava e surpreendia o mundo, povoando a
imaginação europeia.
A
representação da loucura, que impregnava a paisagem cultural do
século XV, celebrava-a muito mais do que a procurava dominar. De
início, ela pressagiava o macabro, pois era a loucura do homem,
denunciando por toda parte o espetáculo ridículo e vazio da vida
cotidiana, que invocava o fim do mundo e o tornava necessário. A
loucura possuía prestígio, encerrando enigmas que exerciam poder de
atração sobre os homens. A partir do Renascimento, a pintura, que
havia se desligado da função de ensinar a tradição religiosa,
passou a dedicar-se ao fascínio dos homens, remetendo
permanentemente à figuração da loucura. A loucura, revelando a
face monstruosa existente no interior dos homens, o que havia neles
de inumano, passava a constituir um saber exotérico, proibido,
inacessível às pessoas de razão, detido apenas pela inocência dos
loucos. Saber que revelava o reino das trevas e o fim do mundo, seu
poder sobre a terra e o castigo supremo. Anunciando por meio de
fantasias as ameaças, os segredos e o destino, a loucura
instaurava-se como uma experiência trágica.
Opondo-se
a essa representação pictórica trágica, a literatura e a
filosofia deram à loucura um tratamento de sátira moral,
esvaziando-a de seus enigmas e oferecendo ao homem uma verdade
relativa às suas fraquezas. A loucura marcava as ilusões e os erros
nascidos do excessivo apego por si mesmo. A crítica dos sábios
permitia que eles considerassem com distanciamento a loucura e a
colocassem em discurso. Com essa consciência crítica e discursiva
iniciava-se a percepção clássica da loucura. Mas a loucura ainda
estava por toda parte, em todo homem, sem possuir uma figura clara e
destacada, ainda que cada vez mais se submetesse à apreciação de
uma razão dominadora. A perda progressiva da conotação
mítico-religiosa da experiência trágica privou a loucura da
relação com a verdade. A partir da apreciação filosófica de
Descartes, ela foi associada ao conceito moral de desrazão, ou seja,
outra forma de razão que não se decidiu pela busca metódica do
verdadeiro, abandonando-se aos encantamentos e às contradições,
deixando de ser senhora de si e perdendo sua autonomia. A loucura
como desrazão remetia a um erro ético, a uma escolha perversa, em
que não se havia decidido pela retidão da ordem e da moralidade. A
desrazão compreendia uma dimensão mais ampla de imoralidade, da
qual a loucura era apenas uma parte menor, mas repreensível da mesma
maneira.
No século
XVII, com a fundação do Hospital Geral de Paris, que atendia a fins
punitivos de internamento e não a objetivos médicos, promoveu-se o
enclausuramento das figuras da desrazão, personagens igualmente
imorais, mas distintos entre si (pobres, ociosos, devassos,
alquimistas, suicidas, blasfemadores, portadores de doenças
venéreas, libertinos de todas as espécies e, claro, os loucos). A
punição da loucura encerrava, portanto, uma percepção moral,
remetendo a uma ética multifacetada do trabalho, religiosa e sexual.
O grande internamento representava uma vitória do bem contra o mal,
um triunfo da razão sobre a desrazão. No Hospital Geral, a exibição
pública da figura animalizada do louco enjaulado permitia à razão
vitoriosa observar a degradação daquilo de que ela se apartava,
reforçando sua consciência de ser diferente dessa não-humanidade e
exaltando sua própria moralidade. A extensão do internamento ao
louco marcaria para sempre uma percepção ética e dualista da
patologia mental: é-se ou não doente mental.
No século
seguinte, o medo que se constituiu de um mal-podridão derivado da
reunião promíscua no enclausuramento e a suspeita de que esse mal
misterioso pudesse se espalhar pelas cidades pelo ar dessa atmosfera
viciada acabaram por vincular a desrazão à doença a partir de seu
conteúdo moral. O médico foi então designado para observar o
internamento, não para curar os internos, mas para proteger os
outros do perigo que saía desses grandes estabelecimentos de
punição. O médico tornava-se assim cúmplice da moral e sua
relação com o louco começou a partir da reclusão e da condenação
ética. Ainda no século XVIII, os demais internos, em número
aumentado devido aos presos políticos da Revolução Francesa, se
revoltaram por serem internados com os loucos, pois não aceitavam
ser confundidos com estes que representam a humilhação e o risco de
alienação. Por outro lado, o internamento dos pobres passou a ser
visto como um erro econômico por suprimir o trabalho e imobilizar a
renda de uma parte da população, aumentando o empobrecimento geral.
A correção desse erro econômico levou à recolocação da
população internada no circuito da produção, reintroduzindo cada
indivíduo no seio de sua família para ser curado-moralizado.
Contudo, os loucos foram considerados incuráveis e perigosos para a
sociedade e permaneceram internados sob a vigilância médica. Aos
médicos coube diferenciar os internos curáveis-moralizáveis dos
incuráveis-loucos e proteger os cidadãos de razão desses reclusos
ameaçadores.
Ao
isolar-se o louco no confinamento e deixá-lo aos cuidados médicos,
criou-se a condição de possibilidade para que a loucura emergisse
como objeto de conhecimento da ciência médica positivista. A
observação ao mesmo tempo moral e científica do médico sobre o
louco converteu a loucura em uma doença mental, em um objeto tão
natural quanto as demais doenças do corpo, embora não se tratasse
do corpo, mas da mente. A relação do louco com o mundo passou a se
dar por meio dessa razão científica abstrata, que o coagia e o
obrigava a se enquadrar na ordem. Por outro lado, o homem comum, o
cidadão racional, encarregava o especialista médico de lidar com a
loucura. A troca existente na Idade Média entre loucura e razão se
desfez, restando apenas o monólogo da razão positivista sobre
loucura.
No curso
O poder psiquiátrico, Foucault retoma a discussão da loucura
a partir de uma mudança importante que ocorreu na sua caracterização
pela psiquiatria: a mudança do eixo verdade-erro-consciência, caro
aos alienistas do século XVIII, para o eixo
paixão-vontade-liberdade, característico da psiquiatria do século
XIX. Trata-se de uma mudança de suma importância, na medida em que
o louco deixou de ser o alienado, mergulhado nos seus erros, delírios
e ilusões, para se converter no anormal, ou seja, aquele que desvia
da norma. Foucault parte da tentativa da psiquiatria de se aproximar
da medicina, ao buscar localizar as doenças mentais em um corpo
anatomopatológico e fazer corresponder os comportamentos desviantes
às lesões neurológicas. O fracasso dessa psiquiatria física em
localizar os correspondentes anatômicos das doenças mentais fez com
que ela, mesmo continuando a considerar a loucura um objeto natural,
deixasse de localizá-la nos órgãos e tecidos do corpo e passasse a
descrevê-la a partir de condutas, ações e reações a partir de
uma nova bateria de estímulos-resposta.
Um dos
procedimentos caros a essa psiquiatria para produzir a verdade sobre
a loucura-doença mental foi o interrogatório. Por meio dele,
procurava-se encontrar na história antecedente do paciente ou na de
seus antepassados os indícios de sua loucura antes que ela fosse
desencadeada. O objetivo era mostrar que ela sempre esteve lá,
criando uma identidade entre a doença e o sujeito, mesmo sem
designá-la corporalmente. Com isso, todos os pequenos desvios das
normas disciplinares e/ou biorregulamentadoras foram vistos como
indícios da doença, de tal modo que a transgressão era convertida
em característica psicológica do sujeito. A anomalia se convertia
assim na condição de possibilidade da loucura.
A partir
desse procedimento, o asilo psiquiátrico permitia que a loucura
fosse diagnosticada e classificada, mas também que ela fosse vencida
e submetida. O que estava em jogo nesse espaço era a produção e
terapeutização da doença mental a partir de um conjunto bem
delimitado de estratégias de poder: isolamento, interrogatório
público ou privado, tratamentos punitivos como a ducha, as
obrigações morais, a disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório,
as recompensas, as relações de preferências entre certos médicos
e certos doentes, as relações de posse, de subordinação, de
vassalagem, de domesticação, de servidão do doente ao médico.
Tudo isso tinha por função fazer do personagem do médico o mestre
da loucura: aquele que a fazia aparecer em sua verdade, que
explicitava o que estava escondido e silencioso, mas também aquele
que a dominava, a apaziguava e a absorvia depois de havê-la
sabiamente desencadeado. Esse processo de cura não se dirigia ao
corpo, mas à moral, às paixões e à vontade. Não se tratava de
dissipar enganos de compreensão, percepções enganosas e
julgamentos falsos; tratava-se de confrontar a vontade perturbada, as
condutas indesejadas e as paixões pervertidas com a retidão das
qualidades morais representadas pelo médico, de modo a normalizar e
tornar o louco dócil. Com isso, o asilo reunia as exigências de
cura pelo internamento, mas também de proteção da sociedade contra
a ameaça de desordem.
Em Os
anormais, Foucault explora o modo como a psiquiatria e a justiça
criminal cruzaram seus caminhos. Identificando o criminoso com o seu
próprio crime por meio do interrogatório e do inventário das
anormalidades pregressas, a psiquiatria forense estabelecia uma
conexão entre loucura e criminalidade: onde há crime, há loucura;
onde há loucura, há o perigo do crime. O papel da psiquiatria,
assim, era o de defender a sociedade, prometendo uma ciência que
poderia antecipar o crime, prevenindo-o antes que ele fosse cometido.
Para cumprir esse objetivo, a psiquiatria relacionou as
características físicas exteriores (como as medidas do crânio, por
exemplo) com os comportamentos anormais e criminosos, introduzindo a
loucura e a delinquência no âmbito das raças biológicas e da
causalidade hereditária, dando origem assim às políticas eugênicas
do final do século XIX e início do XX.
Para
concluir, vale observar que, após os movimentos de maio de 1968, a
própria psiquiatria se transformou, deslocando-se parcialmente da
questão da anormalidade e da referência à norma disciplinar. Duas
mudanças foram fundamentais nesse aspecto. Primeiro, a biologia
molecular e as novas tecnologias que fazem imagens do cérebro em
funcionamento permitiram uma nova tentativa de aproximação da
psiquiatria com a medicina, dando um corpo biológico-imagético a
esse saber e identificando as doenças mentais com as doenças
neurológicas. Ainda que nem sempre essa identificação seja
realizada com sucesso, ela é sempre colocada como hipótese a ser
futuramente comprovada. Segundo, a psiquiatria passou por uma
política de redução ou eliminação dos asilos e internamentos,
adotando novas estratégias que se voltam para o controle de toda a
sociedade. Ela procura agora prevenir e gerir os fatores de risco e
incrementar a saúde mental das populações, intervindo sobre os
próprios normais. Isso em larga medida deslocou as preocupações
com a norma, movendo a psiquiatria na direção da melhoria dos
recursos psíquicos, o que a faz convergir com a nova estratégia
econômico-político-social de valorização do capital humano. Por
outro lado, os próprios indivíduos recorrem ao saber psiquiátrico
divulgado na grande mídia ou em sites na internet, tornando-se seus
próprios especialistas e realizando um cuidado biológico de si (não
apenas por meios fármacos, mas também por meio de exercícios,
alimentação, hábitos saudáveis etc.). No âmbito desse cuidado
biológico de si, torna-se cada vez mais indiscernível o que é
tratamento de uma doença auto-diagnosticada e o que é promoção da
melhoria das competências psíquicas através do uso “cosmético”
dos mesmos meios médicos. Essas mudanças criam uma zona de
indefinição na fronteira entre o normal e o patológico, levando a
uma concepção inflacionada do “saudável” que possibilita a
multiplicação de diagnósticos (atendendo por vezes a interesses
econômicos). Inicia-se aí uma nova fase da história da loucura,
correspondente a uma mutação das formas de controle das sociedades
contemporâneas.
Daniel Pereira
Andrade é professor de sociologia da Fundação Getúlio Vargas,
doutorando da FFLCH/USP, autor do livro Nietzsche – a
experiência de si como transgressão (loucura e normalidade) –
Editora Annablume. Pesquisa atualmente as relações entre poder e
emoções nas sociedades contemporâneas.
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