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Reportagem
Os (des)caminhos da publicação científica
Por Tássia Biazon e Thais Marin
10/05/2016
A Robin Hood da ciência. É como tem sido chamada a jovem estudante de pós-graduação Alexandra Elbakyan, de 27 anos, do Cazaquistão. Ela é a fundadora do Sci-Hub, um repositório online que reúne cerca de 50 milhões de artigos científicos piratas. O site permite o acesso gratuito a artigos pagos, publicados em periódicos acadêmicos de grandes editoras, como Elsevier e Springer Nature. Em entrevista recente para o jornal Washington Post, Elbakyan conta que o site contabiliza cerca de 150 mil downloads de artigos por dia. O jornal estima que as editoras deixam de ganhar $10 bilhões por ano por conta disso. O caso do Sci-Hub traz à tona uma discussão atual e polêmica sobre a produção acadêmica: na era da internet e do acesso livre, qual é o futuro da publicação científica?

As primeiras publicações científicas que se tem registro surgiram em 1665. O francês Journal des Sçavans e o inglês Philosophical Transactions foram criados para disseminar o conhecimento científico em suas comunidades, segundo Ernesto Spinak e Abel Packer. Certamente encontravam desafios para sua impressão e distribuição local. Hoje, 351 anos depois, são diversas as questões que marcam o debate internacional sobre publicações científicas. Todas elas influenciadas diretamente pelo mundo digital.

Acesso aberto, fator de impacto e novas métricas. Onde publicar?

Para além de entretenimento e informação, a internet não só tornou possível a disponibilização de conteúdos científicos, como vem ditando as últimas transformações no cenário internacional da publicação científica. O acesso aberto (AA), open access ou, ainda, acesso livre, é hoje a principal tendência. Oficialmente instituído em 2002 com a Declaração de Budapeste, o movimento já vinha ganhando espaço no final dos anos 1990. Diferindo do modelo tradicional de assinatura de revistas científicas impressas, coloca artigos científicos à disposição na rede gratuitamente e sem restrições. Do leitor é exigido apenas o respeito aos direitos autorais.

Há dois modelos principais de publicação em AA: a “via verde”, quando um artigo publicado em periódico é depositado pelo próprio autor em um repositório, ou a “via dourada”, quando o artigo é publicado em revistas híbridas ou totalmente de acesso aberto.

O Brasil foi pioneiro na adoção do AA para periódicos científicos com o sistema Scientific Electronic Library Online (SciELO) – hoje com 1.249 periódicos de 15 países. Operando desde 1998, vem aumentando seu destaque internacional. De acordo com Abel Packer, diretor do programa, o SciELO e o Brasil ocupam o primeiro lugar no Directory of Open Access Journals (DOAJ), base de dados de periódicos disponíveis em acesso aberto. “Entre os maiores produtores de pesquisa, o Brasil é, de longe, o que mais publica em acesso aberto. Em grande parte, esta liderança é devida ao SciELO”, explica.

Em 2015, o SciELO indexou uma coleção de 280 periódicos de todas as grandes áreas do conhecimento, que publicaram cerca de 20 mil artigos originais e de revisão – mais de um terço da produção científica de qualidade do Brasil. “Estes 20 mil artigos, somados aos publicados nos últimos 18 anos, totalizam mais de 250 mil artigos, que serviram uma média diária de mais de 700 mil acessos e downloads”, contabiliza Packer.

Enquanto na América Latina o impulso para o acesso aberto se justificou pela necessidade de dar visibilidade à produção, em outros países, a redução de custos com impressão e distribuição foi fator primordial. Hoje, periódicos como os publicados pela Public Library of Science (PLoS), criado em 2000, e, mais recentemente, o PeerJ, de 2012, são exemplos de publicações de acesso aberto internacionalmente bem-sucedidos, que cobram taxas ainda menores dos autores em relação àquelas atribuídas pelas maiores editoras comerciais do mundo.

Novos recursos da web 2.0 também têm sido incorporados às publicações de maior prestígio internacional. “Há revistas em que o artigo todo é um vídeo, e a própria Elsevier já chega a convidar alguns autores para produzirem vídeo sobre o artigo aceito. Iniciativas como graphical abstracts, video abstracts, resumos criativos, entrada do leitor no artigo em até três cliques, miniaturas de figuras e tabelas antes da introdução, sistema de referenciamento em círculo fechado dentro do artigo e outras tantas, ainda estão longe de entrar na pauta brasileira, mas já são realidade em boas revistas internacionais”, relata Gilson Volpato, professor da Unesp de Botucatu, que atua há 29 anos nas áreas de metodologia, redação e publicação científica.

Na era da internet, o processo de revisão por pares, fundamental para a validação da qualidade dos artigos submetidos à publicação, também ganha novos contornos. Uma das possibilidades é o pré-print, um rascunho, ou texto preliminar dos resultados da pesquisa, para ser disponibilizado em repositórios antes da submissão aos periódicos. Os comentários feitos pelos demais pesquisadores podem ajudar o autor a melhorar o artigo em sua versão final. Plataformas como o arXiv oferecem esse tipo de serviço.

José Roberto Arruda, professor da Unicamp e coordenador-adjunto da área de ciências exatas e engenharias da Fapesp, explica que a instituição ainda não exige esse tipo de publicação em acesso aberto porque as universidades públicas paulistas estavam implantando seus repositórios. “Há anos a Fapesp começou a elaborar uma política de acesso aberto. Agora que os repositórios da USP, Unesp e Unicamp foram criados, vamos retomar esse assunto para que possamos ter uma política mais afirmativa de exigir a divulgação nessas bases”.

Ele representou a Fapesp, recentemente, em evento internacional que reuniu universidades, editoras, agências de fomento, bibliotecas e demais atores do mundo da publicação científica de 12 países, a fim de discutir os rumos das iniciativas de acesso aberto. Arruda indica que os próximos passos dizem respeito ao investimento em repositórios de melhor qualidade, na integração destes repositórios e na possibilidade de criação de um instituto internacional que defina padrões e regule o processo de acesso à informação científica.

Mais radicais ainda são as plataformas que desconstroem a necessidade de revisão por pares. A publicação dos trabalhos é validada por todos os cientistas da rede interessados na temática. O ResearchGate é a mais popular das plataformas que representam esse novo modelo de comunicar a ciência. Apelidado de rede social para cientistas, ele reúne mais de 8 milhões de usuários e oferece serviços como publicar artigos e bancos de dados, colocar em contato pesquisadores, avaliadores e especialistas da mesma área, fazer e responder perguntas sobre pesquisas e gerar estatísticas sobre quem leu e citou os trabalhos. Para Arruda, esse formato é o que pode vir a ser o futuro da publicação científica. “Nós vamos migrar para um sistema de acesso aberto em que o próprio pesquisador vai disponibilizar tudo o que ele faz em pesquisa, a comunidade terá acesso e o reconhecimento virá de outras formas”, arrisca.

Somada à avaliação aberta, essas plataformas têm possibilitado a integração de novas métricas para garantir legitimidade aos artigos, denominadas altmétricas. Número de visualizações, downloads, comentários e compartilhamento em redes sociais acabam por complementar – ou até questionar – o fator de impacto das publicações. Fator este que mensura o número médio de citações dos artigos de cada periódico e serve para ranquear periódicos, instituições e pesquisadores. “O fator de impacto é uma informação para as revistas, bibliotecas, mas não deveria ser para o autor. O autor deveria procurar publicar nas revistas que são lidas pela sua comunidade”, entende Arruda.

Em 2014, o SciELO lançou o SciELO Citation Index (SciELO CI), em parceria com a Thomson Reuters, integrando seu repositório à Web of Science (WoS), uma das mais reconhecidas bases de dados bibliográficos para a avaliação do artigo pela contagem de citações. “É a possibilidade de acompanhar o desempenho dos periódicos por citações recebidas do conjunto dos periódicos SciELO e da WoS, o que vai permitir avaliar a evolução da internacionalização dos periódicos e da coleção como um todo”, ressalta Packer.

Embora desempenhe importante papel na indexação de periódicos de diversos países, o fator de impacto dos periódicos do SciELO está abaixo da média internacional. Packer menciona que isso ocorre, essencialmente, devido à pouca colaboração internacional das pesquisas comunicadas, à publicação de mais de 40% dos artigos em português ou espanhol, e à publicação dos melhores manuscritos em periódicos de alto impacto. Nesse sentido, o SciELO CI se insere em uma política maior de progressiva internacionalização dos periódicos da biblioteca. A participação de pesquisadores estrangeiros no corpo editorial, a publicação em inglês e o aumento de autores de fora são as três dimensões dessa política, segundo o diretor.

Quanto às novas métricas, a expectativa é que, no futuro, os periódicos da base possam contar com uma composição delas para avaliar sua relevância. “Atualmente, a fonte de informação mais importante para acompanhar nosso desempenho é o Google Scholar. A seguir, temos como referência o SciELO CI. Entre os indicadores altmétricos, a contabilidade dos acessos e downloads é um indicador-chave para avaliação da evolução do SciELO. Já nas redes sociais, vamos necessitar de 18 a 24 meses para que todos os periódicos tenham presença nelas”, projeta Packer.

Para Volpato, o investimento do Brasil no acesso aberto é uma questão “mais ideológica do que operacional”. “Esse acesso aberto é importante para o leitor e aumenta a visibilidade de nossas revistas. Mas não podemos confundir visibilidade com qualidade. O que fica na ciência ao longo do tempo é aquilo que foi aceito e incorporado ao mundo dos principais cientistas. O restante desaparece e pode significar um avanço não compreendido na época (o que é raro) ou um desperdício de tempo e dinheiro devido à baixa qualidade científica”.

Editoras predatórias: pagou, publicou

A produção científica também pode ser comercializada – e gerar muito lucro. Essa é a mensagem deixada pelos publishers predatórios, aqueles com pouco rigor nos processos de análise de artigos. Explorando o modelo de acesso aberto e cobrando taxas dos autores para as publicações, eles simplificam o processo de revisão por pares e publicam dentro de horas artigos a eles submetidos. O resultado é que podem acabar dando uma suposta chancela de seriedade científica a trabalhos ruins. Casos como os de falsos professores na comissão editorial e de periódicos que aceitam artigos com conteúdo duvidoso mostram o quão problemática é essa realidade.

E a lista de periódicos predatórios aumenta a cada dia. Segundo Jeffrey Beall, bibliotecário da Universidade de Colorado, em 2011, eram 18; em 2013, 225, e em 2015, já contava com 693. Beall é autor da polêmica lista de editoras de periódicos de acesso aberto que ele identifica como predatórios. Ele mantém a lista atualizada em seu blog Scholarly Open Access. No ano passado, Beall ficou conhecido na comunidade acadêmica brasileira por publicar um post em que considerava o SciELO uma “favela de publicações”. Crítico do modelo de acesso aberto, ele acredita que, apesar de serem públicos, os artigos indexados no SciELO estariam “escondidos do resto do mundo”, não teriam visibilidade. Daí a importância de plataformas de editoras comerciais que, para ele, seriam mais exitosas na distribuição da produção acadêmica. À época, editores de revistas científicas brasileiras se manifestaram contrariamente à posição de Beall e defenderam o êxito desse modelo de publicação.

O crescimento do mercado de editoras predatórias traz um desafio particular ao Brasil. Não são incomuns notícias que denunciam o número de periódicos dessa categoria inseridos no Qualis. O Qualis é o sistema utilizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para avaliar a qualidade da produção dos programas de pós-graduação do país. Como resultado dessa avaliação, torna pública uma lista com a classificação dos periódicos em que os programas publicaram. A nota dada aos periódicos é a que é levada em conta para pontuar a produção do pesquisador. Como cada área do conhecimento faz uma avaliação separada dos periódicos de acordo com suas temáticas, a mesma revista recebe mais de uma nota. O resultado é que um periódico predatório pode ser bem classificado por uma área e mal classificado por outra.

Romualdo Portela, coordenador da área de educação da Capes, diz que quando identificados, os periódicos predatórios não são considerados na avaliação dos programas. “Isso é um processo ininterrupto, mas nem sempre bem-sucedido, pois essas publicações surgem por todos os lados”, lembra o coordenador.

Para Maurício Tuffani, ex-editor chefe da Scientific American Brasil e atual editor do site Direto da Ciência, maior que o problema da proliferação de periódicos de editoras predatórias é a tolerância acadêmica com essas publicações e seus publishers. “Bons trabalhos acadêmicos publicados nessas revistas são prejudicados porque existem grupos de pesquisadores de alto nível que dificilmente usarão como referência, em seus próprios trabalhos, artigos que tenham sido aceitos por meio de procedimentos suspeitos de editoração acadêmica”. Para o jornalista, que cobriu o debate sobre a temática no ano passado para seu antigo blog na Folha de S. Paulo, além de prejudicar o bom trabalho de pesquisa, essa tolerância corrompe os preceitos de rigor e relevância na publicação acadêmica e mina os esforços em prol da melhoria da qualidade da produção científica brasileira.

Quantidade versus qualidade: ainda o produtivismo

O Brasil ocupava a 24º posição, em 2015, no Nature Index, ranking que classifica os países de acordo com o número de publicações científicas em periódicos de alto prestígio internacional. Os líderes são Estados Unidos, China e Alemanha. Se levada em conta a eficiência financeira, isso é, a relação entre o investimento em pesquisa e desenvolvimento e o número de publicações, o cenário piora: dos 53 países avaliados, o Brasil fica com o 50º lugar, considerando os dados de 2013.

“Ainda somos pouco considerados. ‘Vistos’ é uma coisa, ‘citados’ e ‘participantes’ do grande debate é outra coisa", diz Volpato quanto à ciência brasileira na comunidade científica internacional. “O que tenho enfatizado há cerca de duas décadas é que miramos demais na visibilidade, mas nos esquecemos bastante da qualidade”, fala o professor, citando que o investimento do país em ciência é desproporcionalmente maior do que sua qualidade internacional.

Estamos fazendo ciência de maneira errada? Há quem diga que sim. Na comunidade acadêmica brasileira, ainda muito se ouve falar do “produtivismo”. Estimulado por agências de avaliação e fomento e pelas próprias instituições de pesquisa, ele representaria a lógica por trás da publicação científica: quanto mais, melhor. Nas palavras de Volpato, o sistema pede: “produza bastante que alguma coisa de boa restará”.

Portela prefere falar em “quantitativismo”. “Quem pontua mais é quem produz maior número de artigos, livros e capítulos de livro e não quem produz melhor”. As mudanças na avaliação em sua área, segundo ele, vêm justamente na contramão dessa cultura. “Na área de educação, neste quadriênio, limitaremos o número de produtos bibliográficos por docente que serão considerados na avaliação dos programas. A ideia é estimular a produção mais qualificada e não o maior número de produtos”.

Para alguns, a lógica produtivista é também um reflexo da própria organização do sistema brasileiro de pós-graduação. “A ênfase continua a ser no número de diplomas e documentos produzidos, mais que na formação do aluno”, explica o professor da USP Lewis Greene, no texto “É hora de rever o sistema de pós-graduação brasileiro”. Em vez de doutores, estaríamos formando técnicos.

Ao lado da cultura produtivista, está o que Volpato chama de “a diarreia das revistas científicas”, expressa em seu artigo “Ciência brasileira: a reforma necessária”. “O avanço brutal das revistas brasileiras não foi uma consequência de um aumento de nossa capacidade científica. Em alguns casos, criamos veículos para publicar o impublicável, quando deveríamos publicar nos veículos já existentes”, explica. A proliferação de revistas nacionais, que hoje chegariam a um universo de 7 mil, segundo o professor, também seria justificada pela preocupação com a visibilidade de nossa produção no cenário internacional. “O erro também foi achar que, tendo revistas, estaríamos nos inserindo na ciência internacional de bom nível”, complementa.

Publique ou pereça

“Os pesquisadores têm que tentar fazer o melhor possível e, na medida do possível, não se nortear pelas métricas, não escolher o periódico pelo fator de impacto, não publicar porque tem que ter publicação para conseguir promoção. Não é assim que a ciência deve funcionar”, afirma Arruda. Mas, segundo ele, a cultura do “publique ou pereça” (publish or perish, em inglês) faz com que o pesquisador de hoje queira atingir resultados, metas numéricas muito imediatas.

Para Volpato, quando um artigo está sendo avaliado a fim de ser publicado em uma revista de prestígio, se atenta em primeiro lugar para qual ganho se sucederá com sua publicação, ou seja, “qual o avanço no conhecimento ou solução de problemas práticos”, diz. E para que uma publicação dê ganhos, ela deve ser reflexo de uma ciência vitoriosa. Pensando no caso brasileiro, ele acredita que não faltam revistas para publicação. “O que falta é ciência para se publicar nos bons veículos já existentes”.

Embora o país possua destaques em pesquisas de qualidade em várias áreas de conhecimento, o atual cenário, com cortes de financiamentos à pesquisa, insatisfação de pesquisadores e mesmo a recente queda de 40 posições da única universidade brasileira dentre as 100 melhores do mundo, a USP, no ranking da Times Higher Education, são um sinal de alerta.

A internet e as novas tecnologias abriram diversos caminhos para aquilo que representa a materialização dos resultados, das descobertas do fazer científico, o artigo. Mais do que “onde” ou “como” publicar, “o quê” publicar deve ser questão central na reflexão sobre o rumo das publicações. Se os novos formatos que vêm ganhando cada vez mais espaço, sobretudo com a participação aberta na avaliação da produção, possibilitarem uma reconfiguração do significado do fazer científico e contribuírem para a produção de uma ciência de melhor qualidade, não há o que temer. Cabe aos pesquisadores, universidades, agências de fomento e avaliação, editoras e periódicos se adaptarem a essa nova realidade.