10/09/2006
O
macaco caminha a
lentos passos em direção ao homem, em uma linha
evolutiva que foi popularizada pela teoria da evolução de
Charles Darwin e que revelou as humanas raízes animais.
Quão
evoluídos somos? Todos os homens são iguais
perante a
evolução? O que é preciso fazer para
conquistar espaço e status na sociedade contemporânea?
Franz
Kafka (1883-1924), no início do século XX,
expôs
com simplicidade uma complexa questão que encontra
significados até os dias atuais.
Em
seu conto “Um
relatório para uma academia”, de 1919, um macaco
narra
as transformações que ocorreram em seu processo
de
humanização, a única saída
para uma vida
condenada à jaula. Se a academia observa os comportamentos e
o
funcionamento da natureza para dela extrair conhecimentos em
seu benefício, aqui o objeto de estudo
é
o homem, que por vezes é o próprio animal,
colocado do
lado oposto da jaula. Cada detalhe de seu comportamento, por vezes
incompreensível, é imitado pelo
ex-símio, cujo
maior desafio está em beber uma forte aguardente de uma
garrafa. Assim como tantos outros costumes, o homem se acostuma a
sabores, comportamentos e atitudes, em princípio
indesejadas,
em prol de um espaço na sociedade.
“Sua
origem de
macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de
si algo
dessa natureza, não pode estar tão distante dos
senhores como a minha está distante de mim”.
Homem-macaco
ou
macaco-homem, não importa a
interpretação, mas
sim as variáveis que a ficção
possibilita.
Aquele que está de fora e abre mão de sua
liberdade
para encontrar um caminho possível de ser vivido, para ser
aceito na sociedade; a crueldade que se impõe ao
próximo
quando o poder está colocado, o desejo comum de estabelecer
relações sociais que valorizem a
distinção
social. Nesse cenário, é possível
identificar
tanto o mundo dos que perderam a liberdade e foram postos em jaulas,
como o daqueles que vivem em aparente liberdade. “Aprende-se o que é preciso
que se
aprenda; aprende-se quando se quer uma saída”,
relata o
personagem à platéia de acadêmicos.
Kafka
poderia ter
escrito o conto pensando nos escravos capturados no continente
africano, nos prisioneiros de campos de
concentração e
de guerra, nos trabalhadores, nos povos do terceiro mundo ou mesmo
nos chamados macacos da América Latina. Vozes do homem
comum,
oprimido, injustiçado e fragilizado, que marcam a obra desse
autor tcheco e judeu.
Do
livro ao palco
É
pela
universalidade e contemporaneidade do tema abordado que o conto
continua atual e tem sido utilizado como importante
exercício
de encenação de atores, como o faz o grupo Boa
Companhia, desde 1999. O espetáculo
Primus,
baseado no conto de Kafka, tem sido apresentado com
freqüência
por demanda do público e este mês
estará em cena
em Brasília. Verônica Fabrini, diretora de Primus
e
professora do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp,
lembra
que a motivação para encenar “O
relatório”
veio da identificação do mundo dos artistas com o
do
protagonista. “Achamos que o conto traduz essa dificuldade
que
o artista tem em se comunicar com uma academia; desde a
difícil
relação com a ciência, até
à
polêmica relação com a
sociedade”, lembra
Fabrini.
Comportamento animal como exercício
do
trabalho do ator. Foto: Gil Grossi.
Ao
macaco humanizado
restavam duas possibilidades: ir para o zoológico ou para o
teatro de variedades. Optou pela segunda, já que a primeira
lhe soava mais como uma nova jaula. “Para nós
atores é
bem parecido, pois sendo ator ou você se interna e vira
aquele
ser estranho ou vai para os palcos”, ironiza a diretora.
Se
no conto de Kafka o
macaco imita o homem, na encenação os homens
é
que precisaram imitar os animais para então o humanizarem. O
grupo, que costuma trabalhar com experimentações
cênicas, viu na história uma rica oportunidade de
pensar
o trabalho do ator. Um dos primeiros exercícios dos atores
é
a imitação animal Inicialmente foram feitos
exercícios
de observação no zoológico de
São Paulo -
que não se limitaram aos macacos, mas também ao
público
que os observava. “As pessoas têm brincadeiras
muito
maldosas em relação ao bicho, provocando o animal
que
se encontra nessa situação humilhante que
é o
enjaulamento”.
O
trabalho cênico
contou ainda com a colaboração da irmã
da
diretora, psicóloga que trabalha com comportamento animal, e
que contribuiu com informações sobre o instinto
animal
e sua ritualização. O grupo também fez
leituras
sobre comportamento animal que provocaram reflexões sobre os
instintos básicos, as posturas e a tonicidade do corpo.
No
palco, a opção
foi pela participação de quatro atores, o que
permitiu
a colocação de vários planos
simultâneos
em cena, que mesclam imagens tiradas do fotojornalismo. Segundo
Fabrini, as fotos retratam os desastres da
civilização,
como as guerras, as chacinas e experimentos com animais,
“tentando
pensar o que é esse tal processo
civilizatório”.
Ao longo dos anos, as imagens são atualizadas e a diretora
do
espetáculo lamenta que a experiência lhes permita
dimensionar o quão freqüentes esses desastres
estão
se tornando.
“O
relatório”
ironiza a teoria de evolução de Darwin, colocando
em
cheque o sentido de evolução enquanto melhoria ou
superioridade humana. Evoluir para onde?
Um
relatório para uma academia
Franz
Kafka (conto do
livro Um médico rural)
Companhia das
Letras, 1999
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