A imagem do urbano como desmedida e espetáculo do excesso, da exceção e da catástrofe é parte dos esquemas e mapas de leitura de que dispomos para pensar a cidade na atualidade. Atordoados pela profusão de informações, signos, símbolos, publicidade e objetos necessários para uma adequada participação no modo de vida cotidiano, somos rapidamente capturados para pensar a cidade através das metáforas da segunda modernidade, ou seja, as do “mundo líquido”, as da “sociedade de risco”.
Os processos temporais do mundo antigo, com a repetição da produção e do saque sobre os valores de uso, como ocorreu até o colonialismo ibérico e o imperialismo europeu, foram atravessados pelas cadeias globais de mercadorias com seus impulsos ampliados pelas várias revoluções industriais, pela ciência e pela tecnologia, até o capitalismo tardio e a globalização.
As cidades e as regiões metropolitanas resultam desse espaço de centralização de processos e populações, com a concentração do poder pela circulação das ondas de modernização. No espaço urbano, são articulados pelas relações de produção a multiplicação sem fim dos vetores da acumulação de capital e da sua reprodução impulsionada pela forma monetária, pelo consumo e pelos estilos de vida fetichistas da sociedade do espetáculo.
Nas periferias e semi-periferias do sistema mundo, como as latino-americanas, em particular para países como a Colômbia, a Venezuela, o México e o Brasil, essa urbanização constitui fenômenos de velocidade, impacto e magnitude que nos exigem um olhar crítico sobre a modernização acelerada, autoritária e excludente. Modernização excludente que converge para os contextos de precarização e violência que alcançaram o ápice na década de noventa do século passado.
No século XXI, entramos numa disputa pelos circuitos e os lugares em que habitam as classes populares através da construção de muros, de remoções, de valorização e especulação, complementadas pelos jogos de guerra e controle dos territórios das “comunidades”. As ações estratégicas do novo regime de dominação e segurança nas cidades são alimentadas por leituras estreitas e restritas, quer pelo viés da sociologia da marginalidade, quer pela ótica da estratégia de exclusão baseada nos “choques de ordem”, na “tolerância zero” e no “controle social”. As ações estratégicas de disciplinação e de contenção das “classes perigosas”, implementadas pelo novo regime de controle do Estado policial de segurança, adotam dois pesos e duas medidas no trato da cidadania, e são legitimadas pela criminalização seletiva de populações e territórios.
Se, no curto prazo, o medo e a emergência alimentam as operações e os programas de emergência, no médio e longo prazo, já se manifestam os efeitos ampliados e as explosões de violência de classe num ritmo que vai para além dos ciclos eleitorais e dos eventos mediáticos. A superação da lógica baseada no binômio mercado e medo só pode ser superada por outro modo de ver, ler e agir, numa visão alternativa que reconheça “a centralidade do social” de que nos fala a professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ana Clara Torres, coordenadora do Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território (Lastro) ou, do reconhecimento das potencialidades da resistência e do poder de transformação sustentado pelos “homens lentos” de que nos falava o grande geógrafo brasileiro, professor Milton Santos.
No mundo urbano, entram em choque as dimensões contraditórias e desiguais do desenvolvimento. O urbano articula as tensões e contradições entre vetores verticais e horizontais de poder e de cooperação nas configurações dos modos de produção e consumo, assim como na estruturação das condições de existência que dividem os sistemas de objetos e os sistemas de ação que constituem a articulação entre os lugares.
Nas cidades, nossos modos de vida aparecem como a vasta composição de camadas de experiências, onde se multiplicam as interações entre os grupos de origem distinta, onde as formas de transmissão dos saberes, os modos de agir, os modos de falar e de pensar são constituintes do mosaico que forma a cultura popular urbana. As relações sociais são mediadas pelos diferentes subsistemas de distribuição, de representação e de trocas, cujos ritmos e impactos produzem as diferentes velocidades e as diferentes táticas dos sujeitos na luta pela apropriação e uso dos espaços da cidade, na construção de suas trajetórias e estratégias de vida.
A questão urbana remete para os mecanismos de distribuição e segregação, nascidos da divisão e da reprodução social que fazem da nova natureza social transformada das megacidades, das regiões metropolitanas, das metrópoles um espaço urbano privilegiado para definir a produção social do habitat da espécie no planeta. Mas, nesse processo de urbanização, seria nostálgico e arriscado pretender confundir a defesa do meio-ambiente e a busca de formas de desenvolvimento humano sustentável como um mero retorno ao quadro de vida idealizado de uma suposta “comunidade” anterior ao processo de revolução urbana.
As novas formas comunitárias nascidas dos territórios e populações tradicionais buscam adaptações e composições com o ambiente construído, se articulam de forma prática com processos em permanente mudança, para enfrentar e modificar os modos de usar dados pela dominância do paradigma técnico-científico. Uma novidade potencial da luta das periferias está no direito de acesso às novas tecnologias de informação e comunicação pelos mecanismos das redes sociais horizontais, através de novas abordagens e lutas pelo direito à cidade, visando adequar e mesmo transformar o uso das diferentes tecnologias. O direito ao lugar, o direito a morar, o direito à cidadania se traduziram nas lutas e na poética, “daqui do morro eu não saio não”. Direito e reconhecimento da favela, “do lugar onde eu nasci”, que marca as viradas e as lutas e a memória de construção desse patrimônio que se expõe nos novos museus das favelas, que se traduz em imagem e som nos centros e associações e pontos de cultura.
O mundo contemporâneo já é marcado pela noção da cidade como território produtivo, como espaço de circulação, distribuição e consumo, que articula e difunde os padrões de interação com o agrário e com os ambientes preservados e ou conservados, face ao poder de destruição humano. Para pensar uma cidade que saia da dinâmica reprodutiva perversa da economia política do medo, da fragmentação social e do abuso de poder em todas as esferas de ação, com toda a sequência de danos e violações socioambientais e discriminações étnicas e raciais insustentáveis no longo prazo, é preciso dar conta e repensar o lugar das questões hoje englobadas em torno do informal, do precário e do popular.
Durante o Fórum Urbano Mundial no Rio de Janeiro ( 22 a 26 de março de 2010), mais particularmente no evento paralelo dos movimentos sociais (Fórum Social Urbano), foi apresentada ao longo de alguns debates a necessidade da construção de um novo urbanismo que nasça da confluência entre as múltiplas plataformas que compõem a referência para constituir uma nova urbanidade, rearticulando as agendas da mobilidade democrática e produtiva do território com a afirmação da centralidade da periferia no contexto emergente de um novo direito à cidade.
O mundo urbano demasiadamente marcado pela desigualdade e segregação pode ser objeto de uma transformação com base na rearticulação de saberes e práticas com apoio nas ciências espaciais e nas tecnociências, desde que a voz e a iniciativa política das multidões da periferia esteja no centro das formulações para um enfoque político e tecnológico de planejamento democrático apoiado na dimensão crítica dos sujeitos coletivos populares que participam da construção da cidade como espaço de direitos, colocando a periferia como centro.
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisador do Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território (Lastro), do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ.
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