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Artigo
Da natureza à representação cartográfica
Por Márcia Siqueira de Carvalho
10/06/2006

Anos atrás, em 1999, durante o I Encontro de História do Pensamento Geográfico me vi no meio de uma discussão sobre o que seria o viajante. Embora todos os trabalhos tivessem sido aceitos sob o tema Viajantes, a coordenadora das apresentações do grupo afirmou que nenhum dos artigos tratava sobre ele, exceto o da sua tese de doutorado – viajantes naturalistas. Claro que houve muita discussão. Dela resultou a diferença entre o que significava viajante, cartógrafo e naturalista, se nos ativermos a um período histórico determinado. Há também diferenças no seu significado se for um geógrafo ou um historiador que trate do tema. E mais ainda, de que lugar e escala estamos tratando.

Nem todo viajante foi cartógrafo. E nem todo cartógrafo foi viajante. Os cartógrafos Cresques, pai e filho, elaboraram o belíssimo Atlas Catalão, e não consta que viajaram para adquirir o conhecimento contido no mapa além da travessia da ilha de Maiorca até a cidade de Barcelona, ambas na região da Catalunha, hoje comunidade autônoma da Espanha. Suas informações vieram do conhecimento que tinham através de leituras e da boca de homens do mar que aportavam na ilha.


Podemos dizer que o viajante é aquele que escreveu seu livro de viagem relatando o que viu e ouviu dizer. Geralmente visitou povos que falavam uma língua diferente da sua, daí a necessidade de um trugimão (tradutor). Um historiador diante de um livro de viajantes hispânicos medievais1 não terá dúvidas do que irá analisar num exemplar desse gênero de literatura. Fará as perguntas: Por que alguns viajantes fizeram o registro? Qual foi o seu objetivo? A quem ele buscou atingir?

É possível afirmar que a maioria dos viajantes buscou mostrar as diferenças entre povos, lugares, tradições e paisagens a partir de suas observações, se considerarmos que o seu relato se prendeu a uma experiência real. Isso porque um exemplo bastante conhecido, as Viagens de Sir Mandeville nos revelam que nem ele existiu (alguns afirmam que foi escrito por Jean de Brabant) e que nem viajante foi. Entretanto, algumas cópias desse livro de viagens chegaram ao ponto de trazer uma cartografia rudimentar de itinerários e mapas adicionados posteriormente por copistas. Outros relatos são dignos de maior crédito, embora fossem redigidos sob a ótica peculiar do seu autor, com inserções de suas crenças na interpretação do que foi visto ou do que “ouviu dizer”.

Uma outra questão é sobre as formas que o viajante elaborou essa experiência. Os livros de viagens é a mais comum, e dentro deles pode haver alguma representação espacial. Um itinerário não deixa de ser um exemplo, mas os mapas geralmente foram adicionados a partir de iniciativas posteriores. Feitos por cartógrafos (ou não), sem esquecer do estágio da produção cartográfica.

A época do relato também faz uma grande diferença no tema viajantes. Na Idade Média eles inseriam lendas e crenças mitológicas ou religiosas sem qualquer dificuldade. Mais do que isso, elas eram necessárias para dar credibilidade à obra. Marco Pólo, cujo livro de viagens foi esboçado por outrem, recebeu a pecha de mentiroso mais por sua descrição das “pedras que queimavam” (carvão mineral) do que por sua afirmação a respeito do descendente do rei Preste João ou da localização das cidades de Gog e Magog. Os livros de geografia e de cosmografia do período medieval, assim como os livros de viagens, misturavam fantasia e realidade. E essa mistura foi uma das bases na cartografia dos lugares em várias escalas, principalmente na fase de ampliação do mundo conhecido dos séculos XV e XVI.

A cartografia da terra brasileira no século XVI reuniu informações relativas ao litoral brasileiro em viagens de exploração que poderia reservar ao interior um espaço em branco do desconhecimento, propício para esse misto de lendas e desinformação. E o branco do desconhecimento foi preenchido de maneira bastante criativa. O Brasil foi cartografado no Planisfério de Cantino em 1502 a partir de esboço do piloto de Gaspar de Lemos. Pode-se pensar que as informações das expedições exploradoras de 1513 e 1514 foram cartografadas na carta atlântica de Lopo Homem (1519). Assim como podemos afirmar que as informações de Sebastião Caboto, Martim Afonso de Souza e Francisco Orellana foram incorporadas aos mapas portugueses. O interior do Brasil começou a se delinear nos mapas através das bacias hidrográficas do Paraná/Paraguai e Amazônia pelos cartógrafos portugueses Lopo Homem e Gaspar Viegas 2. Maurício de Nassau teve a seu serviço Cornelius Golijath e George Marcgraf (geógrafo, astrônomo e naturalista) resultando em cartas e mapas da região nordestina sob o curto domínio holandês no século XVII. Destaque também deve ser dado ao Atlas Manuscrito do cartógrafo João Teixeira Albernaz (o Velho) formado por 36 pranchas do litoral brasileiro em 16313.

O mapeamento do Brasil também esteve ligado à definição mais precisa de fronteiras entre as coroas portuguesa e espanhola, quando o cartógrafo francês Guillaume Delisle em 1720 apontou 200 anos de erros intencionais dos cartógrafos portugueses sobre o limite brasileiro na região do Prata. Coube a D. João V a iniciativa de contratar cartógrafos e enviar ao Brasil os “padres matemáticos” Domenico Capacci e Diogo Soares que produziram, após dez anos de trabalho, uma série de cartas da costa sul brasileira.

Há também para considerarmos a questão da escala do mapa, que variou desde uma planta urbana até o mapa-múndi. De que escala dos mapas estamos tratando?

A transformação do significado de viajante para sinônimo de um naturalista ou alguém com uma visão objetiva da natureza e dos povos aconteceu no século XIX, quando geralmente ele fazia parte de um grupo em que cada integrante tinha funções específicas. E a equipe nem sempre tinha um cartógrafo. E algum mapa resultante da reunião dos elementos colhidos durante a viagem, seria o resultado de uma fase de trabalho de gabinete, posterior ao trabalho em campo.

Alexandre von Humboldt (1769-1859), embora impedido de permanecer no Brasil, deve ser destacado pela variedade de representações nas suas obras: paisagens pintadas, mapas, mapeamento prototemático, gráficos e diagramas. Diferente dos mapas topográficos do cartógrafo, Humboldt se aproximou do que hoje denominamos mapas (ou cartas) temáticos. Isso porque ele se baseava na teoria, na analogia, na generalização e na busca das causas. A sua chave para a compreensão do mundo natural foi a concepção de que o lugar tinha três dimensões: a latitude, a longitude e a altitude. E ele também buscava uma linguagem analítica do espaço capaz de revelar a sua visão de unidade da natureza com o novo rigor das ciências sistemáticas4. A reunião de tudo isso resultou em várias formas de representação: gráficos (Etenue terroriale et population des métropoles et des colonies en 1804), bloco–diagrama (Tableau physique de la Nouvelle-Espagne. Profile du Chemin d’Acapulco à México, et de México à Veracruz 1812), mapas de perfil (Esquisse géognostique des formations entre la Vallée de México, Moran et Totonilco), mapa de fluxos (Cartes des diverses routes par lesquelle les richesses métaliques refluent d’un continent à l’autre 1812. Figura 1) e um gráfico pictórico multidimensional (Tableaux de los Andes et Pays Voisines na obra Géographie des plantes equinoxiales 1805).


Figura 1. Cartes des diverses routes par lesquelle les richesses métaliques refluent d’un continent à l’autre. Fonte: GODLEWSKA, 1999, p. 254.



Outros viajantes naturalistas também contribuíram para a elaboração de cartas temáticas, como Spix (zoólogo) e Martius (botânico). A expedição cruzou o Brasil do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Faziam parte da equipe o pintor de paisagens Thomas Ender e o desenhista de plantas H. Buchberger5. Durante dois anos e 11 meses construíram uma vasta coleção de espécies animais e vegetais. Da expedição resultaram três volumes de sua Viagem publicados em 1823, 1828 e 1831. Entre 1830 e 1850 Martius publicou Historia naturalis palmarum em três volumes6, onde esboçou a classificação moderna das palmeiras e o primeiro mapa de sua geografia7. Ele também organizou um mapa fitogeográfico do Brasil correspondendo às cinco diferentes zonas: a das espécies da flora amazônicas, caatingas, florestas atlânticas, cerrados e área das matas araucárias e campos do Rio Grande do Sul8.

Nos três tomos da obra Viagem pelo Brasil (1817-1820) em anexo ao Atlas os dois mapas que reunidos formavam a Carte générale de L’Amerique Meridionale em deux grandes feulles d’après las observations et les cartes spéciales rapportées du voyage dans l’interieur du Brésil pensant lês anées 1817-1820. Consta neles a informação de que “para a época o mapa original era um dos mais completos, pois constavam nele todas as medições e demais dados geográficos até então conhecidos”9.

A herança da cartografia do século XVI na qual o hinterland estava povoado de leões, canibais e até animais alados começava a ser substituída por uma descrição objetiva com vistas a uma classificação da fauna e da flora. O pau-brasil foi substituído por inúmeras espécies vegetais, e os viajantes eram guiados por caboclos, os conhecedores das estradas e picadas, além dos conhecimentos botânicos e zoológicos.

Para a interpretação dos povos (ou mesmo raças) servia de base uma tradição antiga que remete às clímatas (zonas climáticas do globo) determinadas características aos habitantes de cada zona (latitude) e longitude, geralmente agregada à teoria hipocrática dos humores. Humboldt e Martius preferiram identificar alguma influência à paisagem natural10. Sobre a relação entre o clima e o caráter dos homens ou do que resultaria a miscigenação entre “as raças” nos trópicos, Humboldt se diferencia ao apontar que o meio não exerce um papel potente sobre a atividade humana11, ao afirmar a inexistência de raças superiores e inferiores:


Em maintenant l’unité de l’espèce humaine, nou rejetons, par une conséquence nécessaire, la distinction désolant de races supérieures et des races inferieures. Sans doute il est des familles de peuples plus suscetibles de culture, plus civilisées, plus éclairées; mais il n’es est pas de plus nobles que les autres. Toutes son également faites pour la liberté pour cette liberté qui, dans un état de société peu avancé, n’appartient qu’à l’individu ; mais qui, chez les nations appelées à la jouissance de véritables institutions politiques, est le droit de la communauté tout entière12.



Márcia Siqueira de Carvalho é doutora em geografia humana. Docente do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina. marcar@uel.br

Se você se interessou em ler as obras de Humboldt acesse Gallica (http://gallica.bnf.fr/) no sítio da Biblioteca Nacional Francesa – Clique na obra a seguir (você pode escolher a opção pagination para acessar a obra completa).

1) Cosmos : essai d'une description physique du monde / par Alexandre de Humboldt...

2) Atlas géographique et physique du royaume de la Nouvelle-Espagne : fondé sur des observations astronomiques, des mesures trigonométriques et des nivellements barométriques / par Al. de Humboldt

3) Essai sur la géographie des plantes : accompagné d'un tableau physique des régions équinoxiales, fondé sur des mesures exécutées, depuis le dixième degré de latitude boréale jusqu'au dixième degré de latitude australe, pendant les années 1799, 1800, 1801, 1802 et 1803 / par Al. de Humboldt et A. Bonpland ; préf. réd. Ãpar Al. de Humboldt

4) Tableaux de la Nature. Tome I / Alexandre de Humboldt

5) Plantes équinoxiales : recueillies au Mexique, dans l'île de Cuba, dans les provinces de Caraca, de Cumana et de Barcelone, aux Andes de la Nouvelle-Grenade, de Quito et du Pérou, et sur les bords du Rio-Negro, de l'Orénoque et de la rivière des Amazones. Tome premier / par Al. de Humboldt et A. Bonpland




1 ESTRADA, Francisco López. Libro de viajeros hispânicos medievales. Madrid: Laberinto, 2003.


2 GUEDES, Max Justo. A cartografia portuguesa e o Brasil, 1500-1800. MINISTÉRIO das Relações Exteriores. Os mapas do descobrimento. Rio de Janeiro. 2000. p.5.

3 MINISTÉRIO das Relações Exteriores. Os mapas do descobrimento. Rio de Janeiro: 2000.

4 GODLEWSKA, Anne Marie Claire. From Enlightenment vision to modern science? Humboldt’s visual thinking. Geography and enlightenment . Livinstone, David N. et Withers, Charles W. J. Chicago and London: University of Chicago Press. 1999. p. 236 a 275.

5 GUIMARÃES, M. L. S.: ‘História e natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VII(2), 389-410, jul.-out. 2000.

6 FERRI, Mário Guimarães. Prefácio. Viagem pelo Brasil 1817-1820. SPIX e MARTIUS. Tradução Lúcia Furquim Lahmeyer. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1981. p. 11.

7 KURY, Lorelay. Viajantes naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Vol. 8. Suplemento. Pp. 863-80. 2001. Em http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v8s0/a04v08s0.pdf.

8 FERRI, Mário Guimarães. Prefácio. Viagem pelo Brasil 1817-1820. SPIX e MARTIUS. Tradução Lúcia Furquim Lahmeyer. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1981. p. 11.

9 Viagem pelo Brasil 1817-1820. SPIX e MARTIUS. Tradução Lúcia Furquim Lahmeyer. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1981.

10 KURY, Lorelay. Viajantes naturalistas no Brasil Oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Vol. 8. Suplemento. Pp. 863-80. 2001. Em http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v8s0/a04v08s0.pdf.

11 MINGUET, Charles. Alejandro de Humboldt historiador y geógrafo de la América Española (1799-1804). Em http://www.ccydel.unam.mx/pdf/humboldtcap01.pdf

12 Humboldt, A. von. Cosmos. Tomo I. Capítulo: Vie organique. L’homme. P. 430. Em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k73654q