Anos atrás, em 1999, durante o I
Encontro de História do Pensamento Geográfico me vi no
meio de uma discussão sobre o que seria o viajante. Embora
todos os trabalhos tivessem sido aceitos sob o tema Viajantes, a
coordenadora das apresentações do grupo afirmou
que nenhum dos artigos tratava sobre ele, exceto o da sua tese de
doutorado – viajantes naturalistas. Claro que houve muita
discussão. Dela resultou a diferença entre o que
significava viajante, cartógrafo e naturalista, se nos
ativermos a um período histórico determinado.
Há também diferenças no seu
significado se for um geógrafo ou um historiador que trate
do tema. E mais ainda, de que lugar e escala estamos tratando.
Nem todo viajante
foi cartógrafo. E nem todo cartógrafo foi
viajante. Os cartógrafos Cresques, pai e filho, elaboraram o
belíssimo Atlas Catalão, e
não consta que viajaram para adquirir o conhecimento contido
no mapa além da travessia da ilha de Maiorca até
a cidade de Barcelona, ambas na região da Catalunha, hoje
comunidade autônoma da Espanha. Suas
informações vieram do conhecimento que tinham
através de leituras e da boca de homens do mar que aportavam
na ilha.
Podemos dizer que o viajante é
aquele que escreveu seu livro de viagem relatando o que viu e ouviu
dizer. Geralmente visitou povos que falavam uma língua
diferente da sua, daí a necessidade de um
trugimão (tradutor). Um historiador diante de um livro de
viajantes hispânicos medievais
não terá dúvidas do que irá
analisar num exemplar desse gênero de literatura.
Fará as perguntas: Por que alguns viajantes fizeram o
registro? Qual foi o seu objetivo? A quem ele buscou atingir?
É
possível afirmar que a maioria dos viajantes buscou mostrar
as diferenças entre povos, lugares,
tradições e paisagens a partir de suas
observações, se considerarmos que o seu relato se
prendeu a uma experiência real. Isso porque um exemplo
bastante conhecido, as Viagens de Sir Mandeville
nos revelam que nem ele existiu (alguns afirmam que foi escrito por
Jean de Brabant) e que nem viajante foi. Entretanto, algumas
cópias desse livro de viagens chegaram ao ponto de trazer
uma cartografia rudimentar de itinerários e mapas
adicionados posteriormente por copistas. Outros relatos são
dignos de maior crédito, embora fossem redigidos sob a
ótica peculiar do seu autor, com
inserções de suas crenças na
interpretação do que foi visto ou do que
“ouviu dizer”.
Uma outra questão é
sobre as formas que o viajante elaborou essa experiência. Os
livros de viagens é a mais comum, e dentro deles pode haver
alguma representação espacial. Um itinerário
não deixa de ser um exemplo, mas os mapas geralmente foram
adicionados a partir de iniciativas posteriores. Feitos por
cartógrafos (ou não), sem esquecer do
estágio da produção
cartográfica.
A
época do relato também faz uma grande
diferença no tema viajantes. Na Idade Média eles
inseriam lendas e crenças mitológicas ou
religiosas sem qualquer dificuldade. Mais do que isso, elas eram
necessárias para dar credibilidade à obra. Marco
Pólo, cujo livro de viagens foi esboçado por
outrem, recebeu a pecha de mentiroso mais por sua
descrição das “pedras que
queimavam” (carvão mineral) do que por sua
afirmação a respeito do descendente do rei Preste
João ou da localização das cidades de
Gog e Magog. Os livros de geografia e de cosmografia do
período medieval, assim como os livros de viagens,
misturavam fantasia e realidade. E essa mistura foi uma das bases na
cartografia dos lugares em várias escalas, principalmente na
fase de ampliação do mundo conhecido dos
séculos XV e XVI.
A cartografia da terra brasileira no
século XVI reuniu informações
relativas ao litoral brasileiro em viagens de
exploração que poderia reservar ao interior um
espaço em branco do desconhecimento, propício
para esse misto de lendas e desinformação. E o
branco do desconhecimento foi preenchido de maneira bastante criativa.
O Brasil foi cartografado no Planisfério de Cantino
em 1502 a partir de esboço do piloto de Gaspar de Lemos.
Pode-se pensar que as informações das
expedições exploradoras de 1513 e 1514 foram
cartografadas na carta atlântica de Lopo Homem (1519). Assim
como podemos afirmar que as informações de
Sebastião Caboto, Martim Afonso de Souza e Francisco
Orellana foram incorporadas aos mapas portugueses. O interior
do Brasil começou a se delinear nos mapas através
das bacias hidrográficas do Paraná/Paraguai e
Amazônia pelos cartógrafos portugueses Lopo Homem
e Gaspar Viegas .
Maurício de Nassau teve a seu serviço Cornelius
Golijath e George Marcgraf (geógrafo, astrônomo e
naturalista) resultando em cartas e mapas da região
nordestina sob o curto domínio holandês no
século XVII. Destaque também deve ser dado ao Atlas
Manuscrito do cartógrafo João Teixeira
Albernaz (o Velho) formado por 36 pranchas do litoral brasileiro em 1631.
O mapeamento do
Brasil também esteve ligado à
definição mais precisa de fronteiras entre as
coroas portuguesa e espanhola, quando o cartógrafo
francês Guillaume Delisle em 1720 apontou 200 anos de erros
intencionais dos cartógrafos portugueses sobre o limite
brasileiro na região do Prata. Coube a D. João V
a iniciativa de contratar cartógrafos e enviar ao Brasil os
“padres matemáticos” Domenico Capacci e
Diogo Soares que produziram, após dez anos de trabalho, uma
série de cartas da costa sul brasileira.
Há
também para considerarmos a questão da escala do
mapa, que variou desde uma planta urbana até o
mapa-múndi. De que escala dos mapas estamos tratando?
A
transformação do significado de viajante para
sinônimo de um naturalista ou alguém com uma
visão objetiva da natureza e dos povos aconteceu no
século XIX, quando geralmente ele fazia parte de um grupo em
que cada integrante tinha funções
específicas. E a equipe nem sempre tinha um
cartógrafo. E algum mapa resultante da reunião
dos elementos colhidos durante a viagem, seria o resultado de uma fase
de trabalho de gabinete, posterior ao trabalho em campo.
Alexandre von Humboldt (1769-1859), embora
impedido de permanecer no Brasil, deve ser destacado pela variedade de
representações nas suas obras: paisagens
pintadas, mapas, mapeamento prototemático,
gráficos e diagramas. Diferente dos mapas
topográficos do cartógrafo, Humboldt se aproximou
do que hoje denominamos mapas (ou cartas) temáticos. Isso
porque ele se baseava na teoria, na analogia, na
generalização e na busca das causas. A sua chave
para a compreensão do mundo natural foi a
concepção de que o lugar tinha três
dimensões: a latitude, a longitude e a altitude. E ele
também buscava uma linguagem analítica do
espaço capaz de revelar a sua visão de unidade da
natureza com o novo rigor das ciências sistemáticas. A
reunião de tudo isso resultou em várias formas de
representação: gráficos (Etenue
terroriale et population des métropoles et des colonies en
1804), bloco–diagrama (Tableau physique de
la Nouvelle-Espagne. Profile du Chemin d’Acapulco
à México, et de México à
Veracruz 1812), mapas de perfil (Esquisse
géognostique des formations entre la Vallée de
México, Moran et Totonilco), mapa de fluxos (Cartes
des diverses routes par lesquelle les richesses métaliques
refluent d’un continent à l’autre
1812. Figura 1) e um gráfico pictórico
multidimensional (Tableaux de los Andes et Pays Voisines na
obra Géographie des plantes equinoxiales
1805).
Figura 1. Cartes des diverses routes
par lesquelle les richesses métaliques refluent
d’un continent à l’autre.
Fonte: GODLEWSKA, 1999,
p. 254.
Outros viajantes naturalistas
também contribuíram para a
elaboração de cartas temáticas, como
Spix (zoólogo) e Martius (botânico). A
expedição cruzou o Brasil do Rio de Janeiro,
São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí,
Maranhão, Pará e Amazonas. Faziam parte da equipe
o pintor de paisagens Thomas Ender e o desenhista de plantas H.
Buchberger. Durante
dois anos e 11 meses construíram uma vasta
coleção de espécies animais e
vegetais. Da expedição resultaram três
volumes de sua Viagem publicados em 1823, 1828 e
1831. Entre 1830 e 1850 Martius publicou Historia naturalis
palmarum em três volumes, onde
esboçou a classificação moderna das
palmeiras e o primeiro mapa de sua geografia. Ele
também organizou um mapa fitogeográfico do Brasil
correspondendo às cinco diferentes zonas: a das
espécies da flora amazônicas, caatingas, florestas
atlânticas, cerrados e área das matas
araucárias e campos do Rio Grande do Sul.
Nos três tomos da obra Viagem
pelo Brasil (1817-1820) em anexo ao Atlas os dois mapas que
reunidos formavam a Carte générale de
L’Amerique Meridionale em deux grandes
feulles d’après las observations et les cartes
spéciales rapportées du voyage dans
l’interieur du Brésil pensant lês
anées 1817-1820. Consta neles a
informação de que “para a
época o mapa original era um dos mais completos, pois
constavam nele todas as medições e demais dados
geográficos até então
conhecidos”.
A
herança da cartografia do século XVI na qual o hinterland
estava povoado de leões, canibais e até animais
alados começava a ser substituída por uma
descrição objetiva com vistas a uma
classificação da fauna e da flora. O pau-brasil
foi substituído por inúmeras espécies
vegetais, e os viajantes eram guiados por caboclos, os conhecedores das
estradas e picadas, além dos conhecimentos
botânicos e zoológicos.
Para a interpretação
dos povos (ou mesmo raças) servia de base uma
tradição antiga que remete às clímatas
(zonas climáticas do globo) determinadas
características aos habitantes de cada zona (latitude) e
longitude, geralmente agregada à teoria
hipocrática dos humores. Humboldt e Martius preferiram
identificar alguma influência à paisagem natural. Sobre a
relação entre o clima e o caráter dos
homens ou do que resultaria a miscigenação entre
“as raças” nos trópicos,
Humboldt se diferencia ao apontar que o meio não exerce um
papel potente sobre a atividade humana, ao
afirmar a inexistência de raças superiores e
inferiores:
Em maintenant l’unité
de l’espèce humaine, nou rejetons, par une
conséquence nécessaire, la distinction
désolant de races supérieures et des races
inferieures. Sans doute il est des familles de peuples plus suscetibles
de culture, plus civilisées, plus
éclairées; mais il n’es est pas de plus
nobles que les autres. Toutes son également faites pour la
liberté pour cette liberté qui, dans un
état de société peu avancé,
n’appartient qu’à l’individu ;
mais qui, chez les nations appelées à la
jouissance de véritables institutions politiques, est le
droit de la communauté tout entière.
Márcia
Siqueira de Carvalho é doutora em geografia humana. Docente
do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de
Londrina. marcar@uel.br
Se você
se interessou em ler as obras de Humboldt acesse Gallica
(http://gallica.bnf.fr/) no sítio da Biblioteca Nacional
Francesa – Clique na obra a seguir (você pode
escolher a opção pagination para acessar a obra
completa).
1) Cosmos : essai d'une description physique du
monde / par Alexandre de Humboldt...
2) Atlas géographique et physique du
royaume de la Nouvelle-Espagne : fondé sur des observations
astronomiques, des mesures trigonométriques et des
nivellements barométriques / par Al. de Humboldt
3) Essai sur la géographie des
plantes : accompagné d'un tableau physique des
régions équinoxiales, fondé sur des
mesures exécutées, depuis le dixième
degré de latitude boréale jusqu'au
dixième degré de latitude australe, pendant les
années 1799, 1800, 1801, 1802 et 1803 / par Al. de Humboldt
et A. Bonpland ; préf. réd. Ãpar Al.
de Humboldt
4) Tableaux de la Nature. Tome I / Alexandre de
Humboldt
5) Plantes équinoxiales : recueillies
au Mexique, dans l'île de Cuba, dans les provinces de Caraca,
de Cumana et de Barcelone, aux Andes de la Nouvelle-Grenade, de Quito
et du Pérou, et sur les bords du Rio-Negro, de
l'Orénoque et de la rivière des Amazones. Tome
premier / par Al. de Humboldt et A. Bonpland
|