Chega de saudade, com João Gilberto, ofereceu, pela primeira vez, um espelho aos jovens narcisos da zona sul do Rio de Janeiro. A avaliação é de Ruy Castro, autor do livro que tem o mesmo nome de uma das bossas mais famosas: Chega de saudade - a história e as histórias da bossa nova, editado pela Cia. das Letras e financiado pelo projeto Artista Residente da Unicamp. Muito mais que Copacabana, com Dick Farney, aquele novo jeito de cantar e tocar “ensolarava tudo”, segundo Castro. Não se desejava mais cantar o sangue e a dor. Ao invés de “Não, eu não posso lembrar que te amei” (Caminhemos, de Herivelto Martins), preferia-se a afirmativa de Vinícius: “Eu sei que vou te amar/ Por toda a minha vida eu vou te amar”.
O que se pensa quando se fala no Rio de Janeiro dos anos 1950? Um cenário natural e exuberante emoldurando tempos felizes? Segundo afirma, em uma crônica da época, Antônio Maria, jornalista e compositor de Ninguém me ama, ninguém me quer..., a noite de Copacabana era bem diferente disso. “Uma passarela de mulheres sem dono, pederastas, lésbicas, traficantes de maconha, cocainômanos e desordeiros da pior espécie”. E essa “passarela” dividia espaço com boates onde canções melancólicas, marchas tristes e boleros eram bastante apreciados.
Com Ninguém me ama Antônio Maria
ditava o gosto dos anos 1950
Durante o dia, pelo contrário, grupos de jovens tomavam refresco e só se interessavam por Dick Farney (que, na verdade, foi registrado como Farnésio Dutra) e pelas novidades da música americana, principalmente os lançamentos de Frank Sinatra. Freqüentavam a famosa Murray, uma loja de discos e eletrodomésticos localizada na esquina das ruas Rodrigo Silva e Assembléia, no centro da cidade, para se encontrar e discutir música. Diferentes fã-clubes disputavam preferências.
Essa juventude não se identificava com os sambas-canção abolerados que se escutava na Rádio Nacional. As letras, os arranjos e as interpretações vocais eram vistos como excessivos. A temática recorrente, a da dor-de-cotovelo, não fazia sentido para eles. Na visão dos jovens universitários de classe média, que queriam se livrar do ensino de música tradicional (baseado no método de Mário Mascarenhas), o momento em que viviam pedia mais modernidade: menos acordeão, instrumento que era hegemônico na época, menos floreios vocais, menos brilhos e paetês.
Voz, banquinho e violão
Muitos implicaram com o movimento. O compositor de baião Humberto Teixeira chamou-a de “música para tapete”, em referência às reuniões no apartamento de Nara Leão.
Antônio Maria, que não gostou de ser identificado como músico do passado (tinha apenas 39 anos em 1960), também comprou briga. Sílvio Caldas, chamado a opinar, disse: “É uma manifestação passageira, própria dos moços que retratam o espírito de desobediência e má educação da época atual. Vai passar, porque carece da categoria que somente a autenticidade confere às coisas”.
José Estevam Gava, professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS) explica: “Aos nossos ouvidos hoje, expostos a uma vasta gama de estilos e tendências os mais disparatados, a bossa nova é coisa trivial e já assimilada como manifestação possível. Em 1958, não era”.
Entre 1958 e 1962, a bossa nova congregou procedimentos que formaram uma proposta original. Controlou a expressão do canto, reduziu o conjunto instrumental, enriqueceu a harmonia pela inclusão de notas estranhas aos acordes (as dissonâncias), negou o estrelismo solista do cantor, criou a estética “voz, banquinho e violão”, conjugando requinte com simplicidade e criando um novo nicho musical, intelectualizado, de “classe média” e de “bom gosto”.
Apenas em dois anos depois de lançada, Garota de Ipanema teve mais de quarenta gravações no Brasil e nos Estados Unidos. A inspiração para Tom e Vinícius foi Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto, mais conhecida por Helô, uma menina de dezenove anos, de um metro e sessenta e nove, olhos verdes, cabelos lisos e longos que ia ao bar Veloso comprar cigarros para sua mãe.
Mistura
A beleza, reverenciada na música, era tema constante. Não somente a beleza feminina ou natural (o céu, o mar, o Corcovado etc) eram tratadas. A discussão estética era recorrente.
Santuza Naves, professora do Departamento de Sociologia da PUC do Rio de Janeiro, aponta que em Desafinado, por exemplo, “a pretexto de uma arenga sentimental, discute-se, na realidade, uma questão estética”.
Para o pesquisador José Estevam Gava, fica difícil falar de uma estética por trás de tudo, a não ser que se aprecie cada composição. “De fato, a estética da bossa nova vem sendo descrita ao longo do tempo, a partir de seus produtos e dos depoimentos de vários de seus integrantes. Percebe-se, entretanto, que não há muito consenso entre tais depoimentos, de modo que seria preciso analisar caso a caso. Talvez não haja uma estética, mas várias. Ainda que traços comuns sejam utilizados por todas”, diz Gava.
Segundo o professor, é difícil fixar uma estética muito definida, pois, como solução formal, a bossa nova durou pouco, logo sendo reelaborada por outros músicos que se aproveitaram dos “avanços” do estilo.
Influências
Para a professora Santuza Naves procedeu-se à uma estilização do samba, a partir da batida criada por João Gilberto e da harmonia minimalista de Tom Jobim. Sob seu ponto de vista, houve um processo de hibridização, “com a incorporação de elementos do cool jazz desenvolvido nos Estados Unidos e de experiências musicais consideradas inovadoras, como o bolero criado pelo mexicano Lucho Gatica que, como o cool jazz, era mais camerístico”.
Tom e a estrela francesa Mylène Démongeot
De acordo com José Estevam Gava, não há como ser muito categórico quanto ao grau de rompimento que a bossa nova efetuou no âmbito musical, porém, na sua avaliação, os bossanovistas mativeram o samba como matriz, dando-lhe uma roupagem nova. “Com a Bossa Nova o samba ficou mais “moderno”, menos batucado, menos exótico, mais palatável aos ouvidos europeus e norte-americanos. Houve importação de elementos e exportação de um produto novo”, diz.
Para ele, muito mais que do jazz, os elementos “impressionistas” que dão o toque especial, sutil e vago às composições, vieram da música erudita francesa do fim do século XIX e início do século XX.
Isso é bossa nova
O termo bossa nova não se limitou à música, também influenciou comportamentos. Passou a ser utilizado na rotulação de tudo o que era moderno: de aparelhos eletrônicos a roupas de banho.
José Estevam Gava, ao analisar a bossa nova nas artes gráficas, cita as capas dos discos da gravadora Elenco e algumas experiências inovadoras da revista O Cruzeiro como exemplos disso. “Em ambos os casos tanto nas capas da Elenco quanto na “bossa nova no jornalismo”, lançada pelo O Cruzeiro em 1960, a matriz construtivista ficou evidente na simplificação, na geometrização, no alto-contraste, na idéia de se comunicar com o menor número de elementos e recursos”, afirma Gava. “Vejo a bossa nova como expressão musical de nossos últimos suspiros modernistas, embalados que foram pelos poetas e pintores construtivistas e pelo sonho de uma sociedade planificada e harmônica, mais justa e solidária, livre dos recalques e amarguras do passado colonial retrógrado. Infelizmente, acabou sendo uma brevíssima época, talvez a única em que decidimos e pudemos ser absolutamente modernos”, declara o professor, que não esconde sua simpatia pelos clássicos da bossa nova.
Discussões estéticas
Depois de 1962, o “movimento” – entre aspas pois nunca houve um manifesto – aos poucos se desfez. O curto período de duração da bossa nova fez surgir rapidamente novas formas musicais que, como explica Gava, se apropriaram do estilo.
Nara Leão, em 1963, decidira trocar a bossa pelo morro, juntando-se a Zé Kéti e Nelson Cavaquinho. Carlos Lyra, separando-se de Ronaldo Bôscoli, já tinha se voltado à músicas de cunho político, envolvido que estava no Centro Popular de Cultura (CPC). O retorno aos sambistas “autênticos”, que ambos pregavam, dava sinais de que a “turminha do apartamento” era coisa do passado. Para eles, a música deveria tratar de assuntos considerados mais importantes, com mais realismo social. De outro lado, Menescal dizia que “música não foi feita para alertar coisa nenhuma”, pois, segundo ele, quem alertava era corneta de regimento.
Outros estilos derivaram da bossa nova. O que se desenvolveu no Beco das Garrafas, na rua Duvivier, em Copacabana, no início dos anos 1960, é um deles. Segundo Santuza Naves, a maneira intimista de interpretação (tanto vocal quanto instrumental) foi abandonada, vozes mais possantes foram privilegiadas no Beco, a percussão tornou-se mais viva e abandonou-se a vassourinha, que era um recurso típico dos bossanovistas usado para suavizar o som. Elis Regina surgiu ali, em meio ao hard bossa nova de Tamba Trio, Bossa Três, Quinteto Bottle’s etc.
No futuro, a Tropicália iria também reverenciar a estética criada por João Gilberto. Paradoxalmente, porque, ao mesmo tempo, incorporava o estilo excessivo rejeitado pelos bossanovistas – o “fino” e o “grosso”, como argumentou Augusto de Campos em O balanço da bossa –, explica Naves.
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