Informações
genéticas são altamente sensíveis e
potencialmente promotoras da quebra da privacidade e do estabelecimento
de políticas de exclusão. Ao mesmo tempo em que
surgem novos programas voltados à
identificação do perfil genético de
pessoas, surgem também novas
preocupações éticas quanto aos usos
que serão feitos desses dados. No mundo inteiro, aumentam os
casos de discriminação genética no
trabalho e nas operadoras de planos de saúde, bem como a
realização de análises do
patrimônio genético sem o consentimento das
pessoas. No Brasil, no ano passado pesquisadores denunciaram um centro
público de coleta de sangue em Brasília que
realizou, sem consentimento, testes com seus freqüentadores.
Para conter o avanço do poder dos genes sobre a vida das
pessoas, especialistas ressaltam que as novas tecnologias precisam ser
cercadas de garantia legal, depositando esperanças de que um
sistema jurídico eficiente seja capaz de proteger os
cidadãos.
Sandra Rodrigues Braga,
professora de geografia, e Vânia Rúbia Farias
Vlach, do Instituto de Geografia da Universidade Federal de
Uberlândia, discutem no artigo “Os usos
políticos da tecnologia, o biopoder e a sociedade de controle:
considerações preliminares” como
as inovações tecnológicas, ao
prometerem uma nova democracia, “criaram novas desigualdades
e exclusões, debilitaram as resistências dos
trabalhadores e ampliaram o domínio sobre eles”.
Para as pesquisadoras
“os exames genéticos são potencialmente
promotores de uma quebra de privacidade, sujeitando os
indivíduos a um controle que determina padrões de
normalidade a serem seguidos por todos”. Braga e Vlach
explicam que esses padrões, baseados nos testes
genéticos, podem servir para elevar preços de
planos de saúde ou excluir potenciais portadores de
doenças genéticas do mercado de trabalho. Elas
ressaltam o quão preocupante é o potencial de
controle social presente na engenharia genética.
A
discriminação genética no trabalho
não é um fato novo. Há relatos de
casos que antecedem o Projeto Genoma Humano, como o de empresas nos EUA
que, na década de 70, se recusaram a contratar negros com
traços genéticos para anemia falciforme, embora
essas pessoas apresentassem condições adequadas
de saúde para o emprego e ausência de riscos de
desenvolverem a doença.
Lista negra
genética
Demócrito
Reinaldo Filho, juiz de direito em Recife e diretor do Instituto
Brasileiro de Direito da Informática (IBDI),
também concorda que as empresas poderão criar uma
espécie de lista negra genética. “Um
empregador, de posse de informações
genéticas, terá todas as ferramentas para
estabelecer uma política discriminatória. Por
exemplo, não empregar ou demitir pessoas que tenham uma
predisposição a certas doenças, ou que
possam ser consideradas com capacidade laborativa menos
desenvolvida”. O juiz lembra que em outras
ocasiões informações sobre os
trabalhadores já foram utilizadas para estabelecer uma
política discriminatória no emprego. Como quando
as empresas utilizaram dados disponíveis nos sites dos
tribunais de trabalho para elaborar uma lista negra de empregados que
apresentavam mais reclamações trabalhistas, e
não contratá-los. Para evitar que isso
acontecesse, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) baixou uma
resolução estabelecendo regras sobre o acesso aos
processos.
Da mesma maneira, as
seguradoras de planos de saúde também podem se
valer dessas informações para incluir
restrições aos seus segurados, cobrar taxas mais
elevadas ou até se negar a fazer contratos de
saúde com pessoas que tenham
predisposição a doenças que
têm procedimentos médicos mais caros. Como os
testes genéticos fornecem dados de outra natureza para os
empregadores e seguradoras, a política
discriminatória pode atingir não apenas a pessoa,
mas também seus familiares. “Essa é uma
questão muito delicada, muito perigosa. Tudo vai depender do
uso que vai ser feito dessas informações. Esse
tipo de informação requer uma
proteção pelo sistema jurídico diversa
de qualquer outro tipo de proteção já
existente, que deve ser extremamente rigorosa”, alerta
Demócrito Filho.
Bancos de
dados genéticos
A
criação de bancos
de dados genéticos tem sido alvo de intensas
críticas. No artigo “One
million people, one medical gamble”, publicado em janeiro de 2006, Andy
Coghlan, apresenta preocupações e questionamentos
que a comunidade científica tem com
relação a dois grandes projetos
dessa natureza. O Biobank, programa britânico que
terá início em algumas semanas, e outro realizado
pelo National Human Genome Research
Institute, Maryland, EUA, que ainda está em
estágio de planejamento. Ambos os projetos pretendem
revolucionar a pesquisa médica recolhendo
informações para estudar como os genes e o
ambiente interagem no decorrer dos anos para causar doenças.
Segundo Coghlan, os críticos aos programas têm
alertado para os resultados enganadores que tais pesquisas podem gerar,
além dos problemas éticos que podem causar ao
arquivar detalhes médicos de um milhão de pessoas
e seus familiares.
Coghlan
relata o caso do governo da Islândia que permitiu que a
companhia Decode Genetics armazenasse informações
genéticas de toda população do
país. Após várias denúncias
e ações na justiça, o programa foi
considerado inconstitucional porque os indivíduos
não haviam fornecido um consentimento explícito
para uso de suas informações. Além dessa
“falha” no processo, a Decode voltou a coletar
material genético de voluntários na
Islândia e usou as informações para a
produção de medicamentos – como uma
droga para combater o ataque cardíaco que já
está em fase final de experimentação
clínica – sem que os participantes tivessem
conhecimento que seu material genético seria usado para tais
fins.
No Brasil, o programa
“Caminho de volta” se propõe a
apresentar uma “solução
técnica” para o problema de desaparecimento
infanto-juvenil no estado de São Paulo por meio da
criação de um banco de dados genéticos
de crianças, adolescentes e pais. Espera-se que o cruzamento
das informações permita colocar “em
contato as duas pontas do problema: a criança e a
família”, como explicita o projeto.
Pais que apresentam queixas de menores desaparecidos são
encaminhados ao Departamento de Homicídios e
Proteção à Pessoa (DHPP), para
cadastramento no programa.
Para
Pierre Kasper, membro do grupo de pesquisa Conhecimento, tecnologia e
mercado (CTeMe) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
é importante perceber que no caso do programa
“Caminho de volta” é a
angústia dos pais que legitima a coleta e armazenamento de
dados genéticos. “Frente à dor dos pais
cujo filho desapareceu, quem vai se opor ao que pode trazer uma
solução?”, observa. Para ele, esse tipo
de programa enfrenta o risco inerente a qualquer acúmulo de
informação: nunca se sabe exatamente o uso que
será feito dela. “Caso os testes se generalizem
entre meninos de rua, por exemplo, seu aproveitamento para a
constituição de um banco de dados de
‘criminais potenciais’ é
previsível. Isso sem contar as
informações que poderão ser produzidas
a partir da leitura do próprio código
genético”, analisa Kasper.
Consentimento
informado
O direito dos
indivíduos de saberem que seu material genético
está sendo coletado para algum tipo de pesquisa,
monitoramento ou criação de banco de dados, bem
como a necessidade desses indivíduos permitirem a
realização dessas práticas,
são condutas éticas reconhecidas
internacionalmente. Entretanto, além das
denúncias de que essas condutas não
estão sendo realizadas há críticas
quanto à validade do consentimento informado.
Em um caso ocorrido em
Brasília, um centro público de
doação de sangue, realizava, entre os testes
laboratoriais para evitar a propagação de
doenças por transfusões, o exame
genético para traço falciforme. As pessoas que
apresentavam a anemia falciforme, ou a probabilidade de ter a
doença, recebiam em casa uma carta, convocando-as para uma
reapresentação ao centro. Estima-se que no Brasil
cerca de 3% da população apresenta essa
característica genética. A união entre
duas pessoas com o traço falciforme pode gerar uma
criança com anemia falciforme, por isso, esta
doença genética tem sido considerada uma das mais
importantes no cenário epidemiológico brasileiro.
Débora
Diniz, professora de Sociologia da Universidade de Brasília
(UnB) e diretora do Instituto de Bioética Direitos Humanos e
Gênero (Anis), autora das denúncias sobre o caso,
defende a confidencialidade no tratamento das
informações genéticas de cada paciente
e a informação prévia sobre os testes
que serão feitos com o sangue coletado. “A
questão levantada ali era a seguinte: as pessoas iam doar
sangue e muitas vezes sequer sabiam que estavam sendo testadas para
outras doenças”. Após a
denúncia de Diniz, o centro de saúde mudou seu
protocolo, que agora traz a informação sobre os
exames que serão realizados.
Diniz destaca que esse
é um dos grandes problemas que surgiram com o
desenvolvimento da genética. Para ela, a mudança
no protocolo de doação de sangue levou a uma
outra discussão a de que, ao autorizar esses exames, os
usuários não têm a completa
noção do que significa ser testado para uma
informação genética.
“Há ainda dois condicionantes: a
educação e a informação em
saúde pública”, segundo a professora, e
que não têm sido respaldados pelas
instituições de saúde
pública.
O consentimento
informado não é suficiente também em
situações que envolvem patrões e
empregados. Mesmo quando o empregado voluntariamente participa de
programas de monitoramento genético, a sua
situação de subordinação
diante do patrão pode influenciar em sua decisão.
“Ele pode consentir por medo de perder o emprego, ou ainda
por receio de perder benefícios trabalhistas”,
avalia Demócrito Filho. Para o juiz um programa de coleta de
informações genéticas no ambiente de
trabalho não apenas deve ter o consentimento informado do
empregado, mas a participação efetiva de
sindicatos e órgãos do governo, para cercar os
trabalhadores de todas as garantias legais e jurídicas
quanto aos usos dessas informações.
Falta de
regulamentação abre brechas
O surgimento das novas
tecnologias genéticas tem promovido conflitos e
dúvidas no âmbito jurídico que
não encontram respaldo no aparato legislativo para sua
resolução. Enquanto a genética
avança rapidamente, o sistema judiciário em todo
mundo anda a passos lentos. Nos EUA, por exemplo, embora as
denúncias sejam antigas, somente em 2005 o senado aprovou um
projeto de lei proibindo a discriminação com base
em informações sobre o patrimônio
genético.
O Brasil ainda
não possui uma legislação
específica para proteção de dados
pessoais. O juiz Demócrito Filho explica que, nos casos que
ocorrerem hoje no país – de acesso e uso de
informações do patrimônio
genético indevidos – a discussão
jurídica será baseada nos princípios
gerais estabelecidos na Constituição brasileira e
em algumas leis esparsas (como a lei de sigilo bancário e a
lei sobre o repasse de informações
médicas aos planos de saúde).
Atualmente existem dois
modelos de sistema jurídico de
proteção de dados pessoais: um praticado pela
Comunidade Européia, Canadá e Argentina,
considerado juridicamente mais desenvolvido porque possui uma lei
básica geral e uma série de diretivas
específicas; e o modelo vigente nos EUA, que não
possui uma lei geral de proteção de dados
pessoais, mas inúmeras leis isoladas, semelhante ao que
acontece no Brasil, só que em maior número e mais
segmentadas. Para Demócrito Filho a
utilização das tecnologias genéticas
deve ser cercada de todas as garantias de
proteção. Segundo o juiz já
há um esforço no Brasil, junto ao
Ministério da Justiça, para criar um projeto de
lei geral de proteção aos dados pessoais, como
existe na Europa.
Segundo ele, a
existência de uma lei geral irá favorecer o
estabelecimento de regras mais claras para
proteção de dados pessoais. “Se por um
lado a constituição enuncia a
proteção à intimidade e privacidade
das pessoas, por outro lado estabelece a possibilidade da
divulgação de informações
– como os dados sobre criminosos – que
são consideradas necessárias à
segurança da sociedade. O indivíduo tem o direito
a ter sua privacidade protegida, mas a sociedade tem o direito
à segurança pública. Nesse conflito, o
interesse público prevalece, embora haja uma ampla
discussão sobre o tema”, observa o juiz.
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