Os olhos se proliferam, expandem, esbugalham. A pele se rasga e surgem antenas, pelos, chifres, garras, penas. Os membros desaparecem ou se multiplicam e espalham desordenados, sem função aparente. Os organismos se colorem de modos nunca imaginados. Órgãos e ossos são expostos e os limites – interior e exterior, dentro e fora – transbordam. O corpo se contrai, distorce, deforma, desfigura e convoca o bem e o mal, o medo e o fascínio, o horror e o humor. Imagens que assustam o susto. Em seu artigo “Sobre corpos e monstros: algumas reflexões contemporâneas a partir da filosofia da diferença”, Carlos Augusto Peixoto Junior fala dessa provocação dos limites que os monstros produzem e seus efeitos vertiginosos: “porque já não nos reflete; entretanto, como, apesar de tudo, ainda se trata de um corpo humano, ele continua a nos refletir – daí a vertigem, o fascínio e o espanto inesgotável suscitado pela visão do monstro em seu devir”.
Monstrinhos desenhados por crianças na instalação “Jogo dos monstrinhos” exposta na Empírika 2010,Salamanca, Espanha.
A instalação “Jogo dos monstrinhos”, criada pelo artista Thiago La Torre, exposta na Feira Iberoamericana de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Salamanca, convidava os visitantes a lidar com a monstruosidade. Uma projeção com um DNA circulante e um caça-níquel de partes corporais, ativado pelo toque na água, propunha uma manipulação de imagens, representações, ideias, conceitos. Na tela de projeção, a partir do movimento da água proporcionado pelo toque das pessoas, eram criados monstrinhos. Esses monstrinhos eram compostos pelo alinhamento de três imagens que se relacionavam às partes do corpo: “cabeça”, “tronco” e “membros inferiores”. Os visitantes que desejavam – e as crianças atenderam ao chamado prontamente – podiam também criar monstrinhos em uma mesa com o material biotecnológico disponível: “modelos” para os monstrinhos, revistas, imagens, palavras, canetas coloridas, cola, tesoura.
A instalação já havia sido montada em “ Num dado e-vento: biotecnologias e culturas em texturas, vãos, cores, sombras, sons...”, que aconteceu no Centro de Inclusão e Integração Social Guanabara da Unicamp (CIS-Guanabara), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no final de março de 2009. O evento era uma extensão dos resultados das pesquisas e criações desenvolvidas nos projetos “Biotecnologias de Rua” (CNPq), “Num dado momento: biotecnologias e culturas em jogo” (Preac-Unicamp), e “Um lance de dados: jogar poemar por entre bios, tecnos e logias” (Proext - MEC e MinC).
A proposta abria brechas para visitantes e expositores interrogarem sobre as relações e interações entre humanos e computadores no futuro; sobre as definições de monstros e humanos – “O homem é um monstro?”. “Sim”. “E o dinossauro?”. “Não, o dinossauro não”; acerca das perspectivas que as biotecnologias lançam com a criação de seres antes inimagináveis e com a possibilidade de alterações e expansões do corpo, da própria noção de corpo.
Que os monstros, essas figuras populares, frequentemente associadas às ciências, são potentes para pensar a divulgação científica, porque colocam em questão o humano, o corpo, o organismo, a vida, essa já era uma aposta nossa e da literatura que nos tem inspirado. Entretanto, a participação na Empírika possibilitou pensar em outro aspecto, de extrema relevância para nossas pesquisas atuais que se inserem no projeto “Escritas, imagens e ciências em ritmos de fabulação: o que pode a divulg-ação científica?” (CNPq 478004/2009-5).
Na interação e produção das imagens, geradas pela instalação, as crianças, os adultos, os monitores e os pesquisadores conversavam sobre como dar forma de expressão aos monstros, colocando em questão a imagem, a invenção da imagem, seus limites, suas potencialidades para a educação e a comunicação científicas, expondo o jogo de forças que as imagens ora organizam e acolhem, ora desorganizam e expulsam. Forças da cultura que se expõem sempre na tensão e no limite da representação.
Em nosso projeto de pesquisa atual, desejamos a invasão nas imagens, nos pensamentos – muitas vezes estranhos, e(s)(n)tranhados e propomo-nos a pensar na fabulação, com os filósofos Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault, como formas de experimentar possibilidades das pessoas saírem do jogo das imagens representacionais, fixadoras de conhecimento e pensamento, além de também saírem do jogo preso ao tempo cronológico da linearidade temporal. Tendo a fabulação como escolha política e estética e poética, nos interrogamos se poderíamos tornar o pensamento monstruoso e caotizar o conhecimento e o entendimento das ciências e divulgações, tensionando as oposições.
Temos apostado que as imagens, as palavras e os sons não são apenas meios de comunicação das ciências e tecnologias, mas se constituem em verdadeiros laboratórios de experimentação do possível nas ciências, na divulgação, na educação e na comunicação. Por isso, investimos em pensamentos e criações com imagens, palavras e sons, na interface entre arte, ciência e filosofia, que sustem o susto da divulgação científica, o susto da ausência de explicação, interpretação, correspondência. E se proponham a tirar a sombra do assombro de ações de divulgação científica que atentam para o humor, para as sensações, para as questões éticas e estéticas, não somente se atendo à difusão do conhecimento científico na lógica do esclarecimento.
Na Empírika, expusemos também o jogo de cartas bios-tecnos-dados – disponível no blog Calçadão –, em que as imagens criadas pela aluna e designer Fernanda Pestana, junto com propostas de jogos, trechos de obras literárias, músicas e conexões pelo blog, criam um tempo de re/combinações que sugerem possibilidades de palavras, imagens e sons confrontarem, resistirem, dialogarem com a insistência na determinação, no controle, na substância, sugerida pelas biotecnologias que se espalham pelos laboratórios, cinemas, quadrinhos, rádios, jogos, feiras, novelas, propagandas, livros didáticos etc. Imagens, palavras e sons que, muitas vezes, insistem em delimitar ações, medidas, tempos dos corpos. Como já ressaltei em outro artigo – “Divulgação monstra: pulsações por entre vida, caos e política” (2009) –, temos considerado relevante pensar, ao tratar de divulgação das biotecnologias, em como escapar à autoridade do tempo presente dos corpos, do que se dá a ver e ouvir, das misturas de corpos, (pessoas, imagens, ruas, biotecnologias, sons), das qualidades físicas, das singularidades individuais, do barulho dos corpos. Numa busca incessante por pensar se haveria um tempo liberto capaz de ser expresso nas imagens, sons palavras.
São essas potencialidades políticas que têm nos interessado ao pensar que a divulgação científica configura-se, muitas vezes, como uma monstruosidade. Mas não são as análises de uma monstruosidade pelo erro, distorção, em oposição ou desvio dos padrões de normalidade que seriam ditados pelas ciências, que nos mobilizam. São antes as violações e subversões de regras e modelos que se dão (poderiam se dar) desde dentro das próprias ciências, tendo em vista que nos interessa pensar a divulgação e a comunicação das ciências como produções culturais, por isso, parte do fazer científico.
Esse modo de pensar desloca o ato de divulgar de um tempo posterior, consequente ou decorrente da produção científica, tornando-o um tempo de criação das ciências e de efetuação do seu poder político na contemporaneidade. Ao explorar a monstruosidade e a divulgação científica junto aos públicos, buscamos potencializá-los não como o que deve seguir ou contradizer as regras das ciências, mas como o que precisa diferir. Partilhamos com Peixoto Júnior (2010) de uma compreensão da potência política da monstruosidade – “É justamente nesse mundo dos monstros que a humanidade tem que se apropriar do seu futuro” – já que o monstro sempre desestabiliza a representação e a identidade em suas diversas formas de expressão.
Susana Oliveira Dias é bióloga e pesquisadora do Labjor/Unicamp, coordenadora do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor e Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e líder do grupo de pesquisa do CNPq multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências e educações.
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