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Reportagem
Superação do analfabetismo permanece como meta não alcançada
Por Aline Naoe
10/10/2011

A erradicação do analfabetismo é a primeira das dez diretrizes que orientam o Plano Nacional de Educação (PNE) 2011-2020, no qual duas metas tentam atacar diretamente esse problema. Já presente em planos anteriores, o objetivo de combater o analfabetismo absoluto no país caminha a passos lentos, com quedas muito pequenas nos índices a cada ano. Segundo dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009, o Brasil tem ainda 14,1 milhões de analfabetos e mais de 20% da população é considerada analfabeta funcional. Questões como a formação de educadores, as estratégias para manter adultos nos programas de alfabetização e o próprio conceito de analfabetismo encontram lugar na discussão sobre como evitar que a meta tenha que se estender para o decênio seguinte.

O plano é resultado de um conjunto de ações que envolve a Conferência Nacional de Educação (Conae), movimentos internacionais, fóruns, diversas instâncias educacionais e a sociedade civil, como lembra a educadora Nima Imaculada Spigolon, do Grupo de Políticas Públicas e Educação e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “É difícil se chegar a um consenso de pensamentos tão diferentes, mas eles não são antagônicos. Embora se tenha vários segmentos da educação se digladiando, o plano é um avanço como processo democrático. Ainda não é o ideal, tem lacunas, falhas e pontos de tensionamento, mas é da discussão desses pontos que vão surgir possibilidades. É importante reconhecer esse processo”, afirma a pesquisadora.

Para a educadora Cláudia Maria Mendes Gontijo, pesquisadora do Departamento de Fundamentos da Educação e Orientação Educacional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a própria diretriz indicada pelo plano já pode ser considerada inadequada. “A diretriz parte da visão equivocada de que o analfabetismo é uma doença, um câncer, uma peste que precisa ser erradicada, curada de maneira radical. O termo ‘erradicação’ só serve para situar o analfabetismo na ordem do biológico, do psicológico, do individual, obscurecendo a sua natureza social, ou seja, que é resultado das desigualdades e dos processos de marginalização social que sustentam o desenvolvimento das sociedades capitalistas”, afirma. Para Gontijo, a diretriz deveria ser alterada para “universalização da alfabetização”.

A meta número 5 do novo PNE prevê a alfabetização de todas as crianças até, no máximo, os oito anos de idade. Uma das estratégias apresentadas é a ampliação do ensino fundamental para nove anos, já implementado em todo o país. O objetivo, segundo o texto do PNE, é “garantir a alfabetização plena de todas as crianças, no máximo, até o final do terceiro ano”, como recomendado pelo Conae. Hoje, as crianças de seis anos devem estar matriculadas no 1º ano, encerrando aos oito anos o chamado ciclo de alfabetização, de forma que o último ano da pré-escola configura agora o primeiro ano do ensino fundamental. “Em minha opinião, a estratégia ainda parte da ideia de que aumentar o tempo dedicado à alfabetização é a solução para o problema do fracasso escolar”, afirma Gontijo. Segundo a educadora, medidas como essa já foram aplicadas anteriormente, no entanto sem resultados expressivos.

Outra estratégia apontada para atingir a meta número 5 é a aplicação de exames para avalição da alfabetização das crianças. Em 2008, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) aplicou a primeira Provinha Brasil, cujo objetivo é avaliar a alfabetização das crianças matriculadas no segundo ano de escolarização das escolas públicas do país. Os resultados da Provinha são de uso exclusivo dos professores e gestores das escolas, que interpretam os resultados a partir das orientações contidas no material distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) às escolas.

Brasil ainda não alfabetizado

A meta número 9 do novo PNE propõe “elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional”. A meta tem relação com o compromisso firmado no Fórum Mundial de Educação de Dakar, em 2000, mas enfrenta um grande desafio: a evasão de adultos dos programas de alfabetização.

Em 2003, o governo instituiu o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), que em 2009 já contabilizava investimentos de R$ 2 bilhões. O PBA é voltado para a educação de jovens e adultos (EJA), por meio de apoio a estudantes e aos e professores da rede pública. Segundo dados da página do programa na internet, relativos ao ano de 2010, mais de um milhão e meio de pessoas estão sendo alfabetizadas por meio do PBA. Os resultados, no entanto, ainda estão longe do esperado. Entre 2000 e 2010, a taxa de analfabetismo entre a população a partir dos 15 anos caiu de 13,63% para 9,63%, segundo o IBGE.

“Acho que é um programa bonito, assim como outros governos fizeram também. Não é novidade a sociedade brasileira querer alfabetizar as pessoas que não tiveram acesso à educação regular. Mas nós temos muitas dificuldades para implementar isso”, aponta a pesquisadora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Cecilia de Magalhães Mollica. Há alguns anos a linguista vem desenvolvendo pesquisas voltadas à EJA e aponta que os motivos para a evasão são vários e devem ser considerados nas políticas de Estado. “Há muitas razões, o próprio governo sabe por quê. Ele entende que tem que oferecer a EJA, mas não pode obrigar, propriamente, as pessoas a fazer. É possível, no entanto, criar mecanismos de estímulo para que a meta seja alcançada”, aponta. Para Mollica, um desses mecanismos seria criar classes por faixa etária, pois as turmas são muito heterogêneas. Esse mecanismo poderia ajudar, por exemplo, a reduzir a evasão dos mais jovens, que foram alunos problemáticos, geralmente envolvidos com álcool e drogas e com quem a escola e a sociedade não conseguiram lidar.

“A questão é até que ponto e que tipo de motivação o aluno tem para buscar a EJA. Existe um imaginário coletivo de que através da escolaridade formal você chega a patamares melhores na sociedade. Porém, colhi relatos de pessoas para quem os saberes acumulados até então já bastam, são suficientes no seu modo de vida”, afirma. Para a pesquisadora da UFRJ, é necessário levar em conta as diversas variáveis que envolvem o interesse e a frequência aos programas de EJA e aplicá-los de acordo com a demanda de cada local.

Para Nima Spigolon, da Unicamp, “é importante discutir a evasão não somente em relação ao aluno que sai, mas sobre os motivos da não permanência desse aluno. É uma questão muito mais sociológica desse sujeito, das condições pedagógicas que estão sendo oferecidas a ele, e não jogar a culpa no aluno”. E questiona: “Como se dá a permanência desse adulto no espaço educativo?”. Segundo a educadora, é preciso olhar para a formação de professores, as condições estruturais de atendimento dos alunos, da pedagogia de ensino e aprendizagem e em como a escola está recebendo esses alunos.

A população rural é apontada como um público de difícil alcance pelos programas de alfabetização. Em declarações à imprensa, o ministro da Educação Fernando Haddad apontou essa população, em especial a rural idosa, como o maior desafio no combate ao analfabetismo. Tal constatação é atenuada na visão do sociólogo Alceu Ravanello Ferraro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-membro do Comitê de Pesquisa do Inep. Para ele, o analfabetismo esteve sempre fortemente associado ao campo. “Em termos relativos, isso permanece verdadeiro: as taxas de analfabetismo continuam mais elevadas no campo do que na cidade. Mas, em termos absolutos, o número de analfabetos é bem mais elevado hoje no meio urbano do que no meio rural. Sob este segundo aspecto, o analfabetismo está tornando-se um fenômeno crescentemente urbano. Fenômeno que, a meu ver, não tem merecido a devida atenção, nem da pesquisa nem da política educacional”, afirma Ferraro.

Alfabetismo funcional: a questão que foge às estatísticas

Os dados sobre analfabetismo funcional coletados pelo IBGE seguem as recomendações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que considera analfabeto funcional aquele que teve menos de quatro anos de estudos completos. A partir desse critério, é possível afirmar que mais de 20% da população é analfabeta funcional. Mas os números podem não refletir a realidade da população brasileira quando se fala em habilidades de leitura e escrita e no conceito de letramento, ou seja, o uso social dessas habilidades.

O Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), criado pelo Instituto Paulo Montenegro (ligado ao Ibope) em parceria com a ONG Ação Educativa, visa avaliar os níveis de alfabetismo da população adulta, a partir de levantamentos sobre a capacidade de leitura, escrita e cálculo de pessoas entre 15 e 64 anos. São estabelecidos quatro níveis de avaliação: analfabetismo, alfabetismo de nível rudimentar, alfabetismo de nível básico e alfabetismo de nível pleno. Se considerados apenas como “analfabetos funcionais”, as pessoas que se encontram no nível de analfabetismo e alfabetismo rudimentar, somam 28% da população na pesquisa realizada em 2009.

Segundo os dados do último Inaf, é possível afirmar que a escolarização é um fator preponderante para atingir bons níveis de alfabetismo, mas nem sempre garante as habilidades esperadas. Um dado que chamou a atenção dos pesquisadores é que 24% dos que completaram entre cinco e oito séries do ensino fundamental ainda permaneciam no nível rudimentar. “Não é só a EJA que está criando analfabetos funcionais. A escola brasileira está criando”, acredita Mollica, da UFRJ.

Embora as metas estabelecidas pelo novo PNE sejam consideradas difíceis de se atingir, alcançá-las pode não significar o avanço que se espera na educação brasileira. “Que tipo de educação estamos buscando? Apenas de números ou realmente uma educação que busque o desenvolvimento pleno, crítico, cidadão desse sujeito?”, reflete Spigolon, da Unicamp. Para a educadora, a questão do analfabetismo é uma questão de justiça social, portanto, exige uma atuação conjunta que leve em consideração as condições estruturais de exclusão política, socioeconômica, pedagógica e cultural.

A importância da alfabetização, como se pode inferir não só dos PNEs elaborados até hoje, mas da própria Constituição brasileira, das discussões nas diversas instâncias da educação no país, governamentais ou não, é questão unânime, mas ainda repleta de incongruências. Não basta afirmar que a alfabetização e a escolarização constituem objetivos prioritários. É preciso muito mais que isso. Há que traduzir tal discurso em fatos concretos: em dotação orçamentária adequada, em prédios escolares que mereçam o nome de escolas, com a devida infraestrutura e equipamentos; em docentes em número suficiente, qualificados e devidamente remunerados”, conclui Ferraro, da UFRGS.