Já se
disse que o que diferencia o homem de outros animais é
não
apenas o fato de que ele vive em sociedade -
o que também é próprio do
comportamento de
outras espécies -
mas
que, além disso e sobretudo, precisa da sociedade para
viver.
Em outras palavras, é a
intensidade e a própria
qualidade da cultura daí decorrente que fazem a
diferença
entre o ser humano e outros animais.
Num sentido
amplo, cultura não é patrimônio
exclusivo do
homem, já que pode ser observada em outras
espécies, se
entendida, segundo propõe Luigi Luca Cavalli-Sforza no livro
Genes, povos e línguas (Companhia das
Letras, São
Paulo, 2003, p. 226), como “o conjunto de costumes e
tecnologias que desempenharam e continuam a desempenhar papel
essencial na evolução do nosso
comportamento.”
Essa definição, que
inclui as culturas
animais, supõe uma diferença fundamental entre
estes e
os seres humanos baseada na capacidade de uns e de outros.
As espécies animais, pelo que
sabe até
hoje, mesmo as mais evoluídas do ponto de vista
comunicacional, têm limitações que, ao
contrário,
a espécie humana não tem, graças
à
faculdade da linguagem de que é dotada de forma muito
particular, com alta sofisticação de
funcionamento e de
desempenho.
Por essa capacidade de linguagem e de
comunicação
desenvolve-se uma outra característica da cultura que
é
a da sua estreita relação com os processos de
aprendizagem e de educação, na forma em que essa
relação se consagrou, por exemplo, na
tradição
humanista produzindo, entre outras, a distinção,
que
sempre lhe foi tão cara, entre cultura e
civilização.
A cultura tem, pois,
características de poder ser
ensinada e transmitida por atos estruturados de vontade social,
além,
é claro, de entrar na dinâmica da
transmissão,
expansão, consolidação e
transformação
por contato, quer do ponto de vista da horizontalidade das
relações
numa dada sincronia, quer pelo legado vertical das
gerações
que se sucedem, em diacronia.
Em todo esse processo a linguagem tem um
papel
fundamental e o ato de comunicação que ela
permite
constitui a condição da diferença
entre a
cultura humana e a cultura animal.
Essa diferença deve ser
entendida como uma
diferença de categorias e não necessariamente
como uma
distinção valorativa, ao menos na forma em que eu
a
entendo e a apresento.
Segundo Karl
Bühler, autor do livro Sprachtheorie (Teoria
da
linguagem), de 1934, todo ato de
comunicação pode
ser visto como um drama com pelo menos três personagens: o
mundo, que traz o conteúdo objetivo de
que se fala, o
locutor e o destinatário;
alguém fala a
alguém de alguma coisa. O que o lingüista
francês
Emile Benveniste, num artigo famoso sobre os pronomes pessoais
publicado no livro Problèmes de linguistique
gènérale
(Problemas de lingüística geral),
de 1966,
representou na forma de uma encenação triangular,
na
qual, na base da figura, encontram-se, em cada vértice, os
pronomes pessoais, propriamente ditos -
eu e você -,
e no vértice superior, em oposição de
contrariedade neutra e mediana, o pronome da não-pessoa ele.
Nesse teatro,
os personagens se opõem, se complementam e se integram na
unidade complexa do signo lingüístico que, desse
modo, se
desdobra em três direções: para o
mundo, isto é,
para o conteúdo comunicado, para o locutor e para o
destinatário. É assim que ele é símbolo
no primeiro caso, é sintoma, no segundo,
e é
sinal, no terceiro. Enquanto símbolo,
o signo
lingüístico tem como função
principal a
representação (Darstellung);
como sintoma,
sua função é a de expressão
(Ausdruck) da atividade psicológica ou moral do locutor;
como
sinal, sua função é
de apelo
(Appel) ao destinatário que ele apresenta como concernido e
interessado pelo conteúdo comunicado.
Roman Jakobson,
num outro texto também famoso -
“Linguistique et poétique”
(Lingüística
e poética) -
publicado no livro Essais de linguistique
générale
(Ensaios de lingüística geral),
de 1963, adota
essa dramaturgia, multiplicando-a por 2 e elencando para a linguagem,
além das três funções
anteriores, agora
chamadas, respectivamente, referencial, expressiva
e
conativa, as funções metalingüística,
poética e fática.
A função
metalingüística diz que todo
enunciado contém,
implícita ou explicitamente, uma referência ao seu
próprio código; a função poéticafática
permite que a comunicação se mantenha entre os
interlocutores através dos recursos recorrentes de contato
entre eles.
aponta o signo lingüístico para a materialidade de
sua
estrutura, enfatizando as suas motivações de
sentido e
de significação; a função
Por aí vê-se o grau de
sofisticação
e de complexidade da linguagem e de seu funcionamento na
organização
da cultura e na ordenação dos processos sociais
que
caracterizam o comportamento do homem na sua historicidade.
Esse poder da linguagem poderia ser
sintetizado
dizendo-se que o que é próprio da
comunicação
humana é o seu caráter eminentemente
simbólico e
em níveis crescentes de abstração, o
que
permite, por sua vez, formas também cada vez mais
sofisticadas
de conhecimento do mundo, de nós mesmos, da vida e de seus
semelhantes.
Há
alguns anos atrás, a título de
“Introdução”
ao livro Caminhos cruzados (Editora Brasiliense,
São
Paulo, 1982), que traz como subtítulo Linguagem,
antropologia e ciências naturais e para o qual
colaboraram
com artigos Alexandre Eulálio, Berta Waldman, Edward MacRae,
Gilberto Velho, Marcio D’Olne Campos, Marisa
Corrêa,
Peter Fry e eu próprio, escrevi um pequeno texto -
“Caminhos cruzando-se” -
que aqui reproduzo e que me parece condensar, em parte, as
glórias
e as atribulações disso que basicamente distingue
a
espécie humana das outras espécies animais, vale
dizer,
o seu comportamento simbólico.
***
Linguagem e mundo não se
confundem. Palavras e
coisas desgarraram-se umas das outras há muito tempo. Desde
o
século XVI, segundo o livro famoso de Michel Foucault. A
prodigalidade recíproca das palavras e das coisas
reforça
o papel de representação da linguagem e
privilegia o
seu caráter simbólico. O símbolo, tal
como o
entendemos hoje, nasce dessa distância. Nela, elaboram-se as
linguagens artificiais das lógicas matemáticas e
formulam-se os modelos abstratos de simulação do
mundo
fenomenológico. Dela, projetam-se os cálculos
demonstrativos das ciências em recortes de
especialização
cada vez mais sofisticados tecnicamente. Nela, a singularidade das
relações entre os homens é quase
sempre um
detalhe que não encontra espaço onde se
representar.
Separados linguagem e mundo, o
símbolo deveria
poder recompor a unidade rompida entre o homem e a natureza. O
problema é que o símbolo opera no vazio dessa
relação.
Ao preenchê-la abstratamente, o resultado é que o
homem
aparece fantasiado de sujeito do conhecimento e o mundo travestido em
seu objeto.
O símbolo
é a consciência infeliz dessa
separação.
Ou a inconsciência feliz da união convencional que
através dele se estabelece entre o homem e a natureza. O
cotidiano desse casamento e os conflitos que engendra -
nem sempre solucionados nos modelos teóricos de suas
representações -
é esta filha de muitas faces e muitas identidades a que
indistintamente chamamos cultura. Nela e por ela somos cruzados:
missionários e loucos, normais e espúrios,
sinceros e
irônicos, alternativos e sistemáticos,
sábios e
ignorantes, prepotentes e humildes, irreversíveis e
subversivos, adultos e menores, heterossexuais e homossexuais, cultos
e populares, interpretados e interpretativos.
Quando os conflitos recrudescem,
não há
teoria econômica, política, religiosa,
lingüística,
semiótica, filosófica, física ou
metafísica
capaz de, por si só, resgatar o residual das
ruínas de
singularidades que o progresso dessa relação
abandona
em sua marcha para o futuro. Não há centro que
generalize a periferia, não há pureza que domine
o
perigo, não há norma que classifique o desvio.
Insatisfeitos com a unidade convencional
que o símbolo
opera, passamos a viver criticamente as grandes
generalizações.
Nesses momentos, mais do que nunca, somos plurais. Importa,
então,
ouvir o outro, fazer do próprio texto a região de
confluência de outros textos, de outras vozes. Transformar o
texto próprio no confluente de múltiplos riscos
cruzando-se no centro vazio do pensamento simbólico.
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