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Artigo
A infância e a aquisição de linguagem
Por Maria Fausta Pereira de Castro
10/12/2005

Nada mais próximo do tema da infância do que o fenômeno da aquisição de linguagem. A palavra “infância” vem do latim infantìa,ae que significa tanto ainda não falar como infância, o que é novo, novidade; do latim infans,ántis, que não fala, criança. A aquisição da linguagem é, portanto, a passagem do infans, aquele que não fala, para sujeito falante.

Somos testemunhas dessa mudança e nos admiramos a cada vez que temos o privilégio de acompanhar de perto as primeiras vocalizações do bebê, seus balbucios e fragmentos de enunciados nos quais reconhecemos partes da nossa própria fala. Não deixamos de atribuir sentido à fala infantil, de interpretá-la apesar de toda a diferença que apresenta quando comparada à do adulto. A língua está entre nós, ela antecede o infans na cultura e determina seu percurso na aquisição de linguagem; o destino de toda criança, salvo certos avatares, é se tornar falante. Em poucas palavras, podemos dizer que a aquisição de linguagem é um fenômeno que se repete em cada ser e, de certo modo, é tema de todo mundo: os leigos a vêem como natural, apostando nesse vir-a-ser falante e, por outro lado, investigadores de diversas áreas se perguntam como pode uma criança vir a falar. Tanto a filosofia, quanto a psicologia, a psicanálise e a lingüística formularam e formulam hipóteses sobre a aquisição e a fala da criança.

Ao longo dos séculos se encontram relatos que se referem às primeiras palavras da criança, como também às indagações sobre as condições necessárias para falar. Conta-se, por exemplo, que o rei Psamético do Egito, no século VII A.C, determinou o confinamento de duas crianças desde o nascimento até a idade de dois anos sem qualquer convívio com outras pessoas, para que se observasse como falariam ou se falariam ou ainda que língua falariam no contexto de privação social. Além da crueldade envolvendo o episódio é preciso notar que a hipótese sustentada pelo rei era que, se essas crianças crescessem sem exposição à fala humana e viessem a falar, a primeira palavra emitida espontaneamente pertenceria à língua mais antiga do mundo. Passados dois anos de total isolamento as crianças emitiram uma seqüência fônica que teria sido interpretada como “bekos”, palavra do frígio, língua indo-européia desaparecida, do grupo anatólico, que era falada pelos frígios. Concluiu-se, então, que a língua dos frígios era a língua mais antiga do mundo.

Note o leitor que, além das indagações sobre a infância e a aquisição de linguagem, o rei indagava-se sobre a origem da linguagem através da investigação sobre a sua origem na criança. Este salto do ontogenético, isto é, do desenvolvimento individual, para o filogenético, como evolução de uma espécie, e reciprocamente, é um trajeto que, embora insustentável, ainda se observa em tempos bem mais atuais, quando o problema toca tangencial ou frontalmente a questão da origem e da mudança.

Nesses casos o termo “infância” é às vezes evocado ou usado metaforicamente para falar de estados iniciais sobre os quais nossas hipóteses são, até hoje, bastante especulativas.

Ferdinand de Saussure, fundador da lingüística como ciência, posiciona-se ceticamente a respeito da discussão sobre a origem da linguagem humana e se opõe com veemência aos autores que estabelecem um paralelo entre a língua e o organismo vivo que nasce, cresce e morre. A língua para o autor não é um ser organizado, ela não morre espontaneamente, não se deteriora e não cresce, na medida em que ela não tem nem infância, nem idade madura ou velhice, e não nasce tal como ocorre aos organismos vivos. A língua é um objeto de cultura, mas não entendido como oriundo da necessidade de comunicação e, sim, forjado pelo simbólico.

Os estudos mais sistemáticos sobre a aquisição de linguagem e sobre a particularidade da fala da criança começam a partir do século XIX, através do trabalho dos diaristas. Assim foram chamados aqueles que guiados tanto pela curiosidade intelectual quanto pela condição de pais interessados no desenvolvimento de seus filhos, registravam a fala destes em diários. Nada semelhante aos recursos tecnológicos de hoje, em uma época anterior ao advento do gravador, esses estudiosos contavam apenas com lápis e papel.

Os diaristas realizaram um rico trabalho descritivo e mais ou menos intuitivo, deixando uma fonte preciosa para outros pesquisadores interessados nos fatos relacionados à emergência da linguagem na infância. Os diários não eram, pois, voltados para um debate teórico, seus autores não buscavam, na fala da criança, evidências em favor de uma teoria lingüística ou psicológica, mas podemos reconhecer que esses estudos se inseriam, de um modo ou de outro, nas teorias da época.

Foram os diaristas que iniciaram uma metodologia de trabalho hoje chamada “longitudinal”, porque acompanha a fala da criança ao longo do tempo.

Os estudos longitudinais dão visibilidade à mudança, isto é, a um fenômeno que caracteriza tanto a aquisição de linguagem quanto a própria infância. Cabe às hipóteses ou teorias sobre a aquisição determinar o modo como concebem a mudança quando enfrentam a sua questão maior: “como pode um infans vir a falar?”

Se a língua, como foi dito acima, no seu funcionamento simbólico antecede o sujeito, está lá, ou melhor, é falada pela comunidade em que ele nasce, a pergunta acima pode ser traduzida em uma outra, o que põe em cena o papel do adulto: “qual o efeito da incidência da fala do outro sobre o corpo prematuro do infans?”

As perguntas acima não deixam de evocar um debate há muito formulado, mas sempre vigente, entre hipóteses que partem do ponto de vista de uma dotação da natureza, do inato, do biológico e aquelas que incluem o problema da aquisição de linguagem na ordem da cultura.

Não traremos para o leitor esse debate, embora ele esteja no centro das discussões sobre a aquisição de linguagem e não se configure simplesmente pela oposição entre os termos “natural x social”. Optamos aqui por deixá-lo ecoar como uma questão que circula entre as formulações sobre as relações estruturais entre o outro como falante (a mãe ou outro adulto), a própria língua em funcionamento e a criança.

Como sabemos o infans nasce em um estado de prematuridade específica da espécie e nesse sentido, o diálogo entre mãe e bebê deve ser tomado pela radical assimetria que o caracteriza, a começar pelo fato de que inicialmente só o adulto fala, e fala pela criança transmitindo-lhe sua “vocação humana”, bela expressão do psicanalista Didier Weil ao qualificar essa voz que, ao passar a fala, passa também à criança a sua música, transmitindo-lhe uma dupla vocação: “está ouvindo a continuidade musical de minhas vogais e a descontinuidade significante das minhas consoantes?”

Poeticamente definido e condensado na transmissão da “vocação humana”, esse fato dá visibilidade tanto ao efeito da presença do bebê no adulto, quanto ao efeito que a fala deste promove no corpo prematuro.

A tese da prematuridade requer que se explicite o que ela acarreta: o ser humano imaturo não sobrevive sem o adulto da espécie. Entretanto, não é sobre a necessidade que falamos aqui. A mãe interpreta a presença da criança como uma demanda. O grito do bebê é tomado como a voz de um chamado pelo adulto, abrindo caminho para a aquisição de linguagem, para uma relação da criança com a língua, porque nada nesse diálogo miúdo entre mãe e criança escapa à língua, o que dá todo o alcance da afirmação de Saussure: é a língua que faz a unidade da linguagem.

Estas observações de cunho mais geral ganham no trabalho de Cláudia Lemos – lingüista e agora também psicanalista – uma teorização a partir do que Saussure nomeou “ordem própria da língua”, para dar conta da alteridade desta relativamente ao humano. Para manter a coerência com essa perspectiva, a autora passa a atribuir à lingua a função de “captura”, entendida como uma abreviatura para os processos de subjetivação que caracterizam a aquisição de linguagem. O termo dá vigor à hipótese saussuriana de que a língua não constitui uma função do falante; ela é o produto que a criança “registra passivamente”, o que impede que a aquisição de linguagem seja tomada como um processo de desenvolvimento em que a língua se constrói como um objeto de conhecimento. Nesta linha de reflexão, a perspectiva de Lemos de certo modo inverte a relação sujeito-objeto ao conceber a criança como capturada por um funcionamento lingüístico-discursivo que a significa como sujeito falante. As mudanças na aquisição de linguagem passam a ser identificadas a partir das diferentes posições da criança em uma estrutura, ou melhor, a partir das suas diferentes relações com a língua, em que o pólo dominante pode ser o outro, a língua ou o próprio sujeito.

Lembro ao leitor que ao se abandonar a perspectiva de desenvolvimento não se abandona por esse fato, o compromisso com a mudança, ao contrário, ela passa a ser redimensionada pela ausência de um estado final, em que culminaria o desenvolvimento. Embora se possa dizer que a fala da criança se aproxima daquela do adulto, não se podem excluir mudanças de posição deste último na sua relação com a língua. Quanto à infância, esta sim é datada, e se dilui no passado do falante.

Maria Fausta Pereira de Castro é professora no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.