No imaginário
popular, o horror no cinema brasileiro se restringe aos longas-metragens de
José Mojica Marins, nos quais o diretor encarna o temível coveiro Zé do Caixão.
E ainda que muito mais diversificadas, as incursões no gênero sempre propuseram
um desafio em sua organização ao longo de nossa historiografia, em que se
apresentou em surtos, como as produções de baixo orçamento da Boca do Lixo(1) e
o terrir(2) de Ivan Cardoso. Atualmente,
contudo, identifica-se uma prolífica produção de filmes nacionais de horror,
algo que pode ser demarcado a partir de 2008, com o lançamento de A encarnação do demônio, longa-metragem
que encerrou a trilogia do cineasta José Mojica Marins, composta por A meia-noite levarei sua alma (1964) e Esta noite encarnarei no teu cadáver
(1967).
Essa espécie de
retomada tem chamado a atenção de diversos críticos e pesquisadores, resultando
em mostras e festivais específicos, encontros científicos e publicações
voltadas ao tema. É o caso da 61ª edição da Filme Cultura, a última da revista,
que, com a capa estampada por Zé do Caixão e o título O cinema de gênero vive!, reuniu em um dossiê textos que abordam,
através de diferentes prismas, o ressurgimento de filmes assumidamente “de
gênero”, cujas hibridizações e deslizamentos diversos tem sido explorados. No
texto “Horrores do Brasil”, Laura Loguercio Cánepa aponta duas frentes nos
filmes de horror produzidos nos últimos anos: produções de guerrilha e produções
que se valem do gênero como metáfora social.
A primeira das
vertentes se refere a produções cujos realizadores reverenciam o estilo dos
filmes de horror americanos da década de 1980, caracterizado essencialmente
pela violência explícita e pela exploração da nudez feminina. Egressos de uma
cena independente de curta-metragistas que ganhou visibilidade a partir da
democratização dos meios de produção e distribuição, proporcionada pela
captação digital e pela internet, esses diretores têm tido suas primeiras
experiências em longas-metragens através de uma dinâmica de colaboração mútua
que garante redução de custos.
Assim acontece
com o paulista Joel Caetano, o capixaba Rodrigo Aragão e o catarinense Peter
Baierstorf, que saíram de seus círculos regionais para colaborarem no
longa-metragem independente As fábulas negras
(2015), no qual cada cineasta dirige individualmente um dos quatro
segmentos centrados em histórias macabras do folclore brasileiro – a quarta
parte, cujo vilão é o Saci Pererê, fica a cargo de José Mojica Marins. Nesses
mesmos moldes e no mesmo ano foi lançado 13
histórias estranhas, longa-metragem dividido em 13 tramas independentes,
sob o comando de diretores dos três estados da região sul do país. Uma
sequência está programada para estrear em 2016, dessa vez com segmentos
oriundos de ainda mais estados, sendo um deles dirigido pela filha de Mojica, Liz
Marins.
Já o segundo
movimento manifesta-se de forma menos organizada, embora também resulte, em
geral, de experiências prévias praticadas em curtas-metragens. É o caso, por
exemplo, da dupla de diretores paulistanos Marco Dutra e Juliana Rojas, cujos flertes
com o horror tiveram início em curtas como O
lençol branco (2004) e Um ramo (2007),
que lhes trouxeram visibilidade internacional, sendo o último selecionado para
o Festival de Cannes. Em 2011, a parceria resultou no longa-metragem Trabalhar cansa, em que elementos
canônicos do gênero ilustram as tensões que se estabelecem a partir das
interações entre empregadores e empregados.
Ainda segundo
Cánepa, nessa categoria, o uso mais ou menos evidente de recursos de estilo do
horror busca a compreensão de aspectos das tensões sociais e individuais de
nosso país. O horror, neste caso, seria menos o conjunto de elementos
iconográficos e temáticos, e mais aquele entendido como representação do que
sentimos diante de ameaças de explosões de violência através da percepção das
personagens de que, a qualquer momento, algo terrível pode acontecer – “porém
não por estar-se necessariamente sob o poder de forças sobrenaturais ou de
psicopatas, e sim em função de mazelas atávicas da sociedade brasileira” (Cánepa,
2013, p.39).
O contraste
entre essas vertentes pode ser exemplificado a partir da comparação entre Mate-me por favor (2016) e Condado macabro (2015), dois filmes que
se apropriam de forma radicalmente opostas do slasher, subgênero do horror cuja figura central é um assassino em
série, geralmente mascarado e de identidade misteriosa, que persegue
adolescentes com o intuito de causar-lhes mortes violentas.
Ainda que
assassinos em série não sejam raros em nossa historiografia (o próprio Zé do
Caixão), poucos foram os filmes que se aproximaram do slasher estruturalmente. Talvez a experiência mais bem-sucedida,
nesse aspecto, seja Shock!, de Jair
Correia, lançado em 1982. Porém, trata-se de um caso isolado, que não
desencadeou continuações.
Em Mate-me por favor, a diretora Anita
Rocha da Silveira foca o cotidiano de quatro amigas adolescentes fascinadas
tanto pela descoberta sexual quanto por uma sinistra onda de assassinatos,
cujas vítimas são majoritariamente jovens mulheres. A partir desse mote, se
instala uma atmosfera de tensão com a qual a realizadora nitidamente busca
discutir questões como a disputa pela sexualidade e pela emancipação feminina,
a violência contra as mulheres e até mesmo o descaso da sociedade para com a
juventude.
Já Condado macabro transpõe fielmente
estilo e estrutura narrativa canônicos do subgênero. Na trama, um grupo de
jovens aluga uma casa isolada em uma pequena cidade do interior. Enquanto os
rapazes tentam de todas as formas seduzir as moças, um grupo de assassinos mascarados
se prepara para cometer todo o tipo de barbárie com eles. Dirigido por Marcos
DeBritto e André Campos Mello, a produção independente de baixíssimo orçamento
presta assumidas homenagens aos filmes considerados inaugurais do slasher como O massacre da serra-elétrica (The
Texas chainsaw massacre, EUA, 1974) e Sexta-feira
13 (Friday the 13th, EUA, 1980),
inclusive emulando a textura de película desgastada através de efeitos digitais
inseridos na pós-produção.
Outro aspecto
que torna a comparação entre os filmes citados mais pertinente é o retrato que
cada um faz de suas personagens femininas. Enquanto Condado macabro reproduz a mesma visão dos filmes que reverencia,
Anita Rocha da Silveira subverte essa mesma lógica em seu longa-metragem.
Como descreve a
autora Carol Clover em seu artigo “Her body, himself”, o subgênero do slasher é essencialmente um terreno de
disputas sexuais, no qual o assassino, com raras exceções, é do sexo masculino.
Suas vítimas são predominantemente mulheres, jovens, belas, e que expressam sua
sexualidade livremente. Frequentemente nesses filmes, esse psicopata só é
detido após o embate com a final girl,
expressão em inglês que designa a protagonista feminina que sobrevive ao
massacre. Apresentada no início da trama, essa é a única personagem com maior e
mais detalhado desenvolvimento psicológico. Ela é inteligente, atenta,
equilibrada, e é a primeira dentre todos os personagens a notar a presença de
algo errado. É a única cuja perspectiva aborda a compreensão privilegiada do
espectador acerca dos eventos. Quando ela derruba o assassino, o espectador
sente-se triunfante, pois ela é indubitavelmente o “herói” dos filmes slasher, e somente uma mulher poderia
incorporar pavor e o heroísmo sem demonstrar fraqueza, o que aconteceria caso o
protagonista fosse masculino, cujas demonstrações de medo seriam interpretadas
como feminilizantes pelos espectadores desse tipo de filme, majoritariamente
composto por homens.
Embora a final girl esteja presente nos dois
filmes analisados, é curioso notar a diferença em ambas as abordagens, não só
delas, mas também das personagens coadjuvantes. Em Condado macabro, além da protagonista Lena (interpretada por Bia
Gallo), duas outras personagens femininas têm destaque na trama. Mari (Larissa
Queiroz), constantemente assediada por um dos rapazes com quem viaja, e Vanessa
(Olivia de Brito), que recebe o ofensivo apelido de “Vanessão”, referente a seu
corpo acima do peso. O destino de ambas culmina, obviamente, em mortes
violentas – Mari recebe um golpe de machado na cabeça, e Vanessa é amarrada em
um tronco de árvore com uma maçã presa na boca, antes de ser degolada.
A autora Linda
Williams descreve essa tendência em seu texto “Film bodies: gender, genre and excess”.
Segundo ela, nesses filmes há uma lógica de prazer sadomasoquista, em que as
garotas “más” e sexualmente ativas são mortas, permitindo apenas que as garotas
“boas” e não-sexuais sobrevivam e possam obter o poder fálico, representado
pelas armas com as quais o assassino penetra os corpos de suas vítimas. Talvez
por conta disso, mesmo que Lena se enquadre na descrição canônica de final girl proposta por Clover, tendo
maior destaque e derrotando o grupo de assassinos, ela ainda se torna alvo de
fetiche e violência sexual por parte dos personagens masculinos. Afinal, a
protagonista também expressa ativamente seus desejos sexuais, ao comprar
preservativos e encorajar o rapaz em quem está interessada a usá-los.
Em Mate-me por favor, essa lógica não é
seguida estritamente, e os atos de violência contra as vítimas jamais são
mostrados, mas sim narrados. O quarteto de amigas central especula ao longo de
toda a trama acerca dos requintes de crueldade, especialmente Michelle (Julia
Roliz), que narra os crimes com precisão e riqueza de detalhes. O fascínio que
as mortes exercem nas amigas é ainda mais intenso para Bia (Valentina
Herszage), obcecada em encontrar semelhanças físicas com as vítimas, ao passo
que desencadeia um nítido desejo por elas, chegando a beijar um dos corpos. Esse
fascínio não está ligado à brutalidade dos atos cometidos contra essas garotas,
mas sim à sua identificação com elas: há uma percepção de vulnerabilidade
compartilhada, a noção coletiva de vigilância que Bia desafia ao longo do
filme.
Ao contrário de Condado macabro e de outros filmes dessa
corrente militante que, independentemente do subgênero que reverencia, o faz
seguindo suas convenções de forma literal, Mate-me
por favor se mostra arredio à fórmulas. Apesar de haver claramente
elementos próprios do horror, tanto este quanto outros longas-metragens dessa
mesma vertente, não obedecem às estruturas clássicas, e empregam esses elementos
para subvertê-los em maior ou menor grau.
Nota-se nesses filmes
(e em diversos outros lançados nos últimos dez anos) um apego ao passado, que
duela com propostas notadamente subversivas, que não necessariamente dialogam
fluentemente entre si, mas expõe de maneira clara as dicotomias entre passado e
presente. E, mesmo que prever os caminhos que o gênero trilhará dentro do
espectro do cinema brasileiro seja uma tarefa árdua devido às nossas
experiências historicamente descontinuadas, é possível afirmar, talvez pela
primeira vez em muito tempo, que o caminho está sendo percorrido.
Lucas
Procópio Caetano é formado em imagem e som pela UFSCar,
e mestrando em multimeios pela Unicamp.
Notas
2. Junção de terror com o verbo rir, gênero
autoproclamado pelo diretor Ivan Cardoso que resultou em filmes paródicos que
mesclavam elementos horríficos com o tipo de comédia das chanchadas.
Referências
Cánepa, L. L. “Horrores do Brasil”. Revista Filme
Cultura,
Rio de Janeiro, p. 33 - 37, 01 jan. 2014.
Clover, C. Men, women, and chainsaws: gender in the modern
horror film. Princeton: Princeton University Press. 1993.
Williams, L. “Film bodies:
gender, genre, and excess”. In: R. Stam; T. Miller (Orgs.). Film and theory:
an anthology. Oxford: Blackwell, 2000, p. 207-221.
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