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Artificial Dolly,
a segunda criação Envie
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Inteligência
Artificial Interessa-me pensar o filme Inteligência Artificial (2001) de Steven Spielberg e Stanley Kubrick numa só perspectiva: como signo de um tempo marcado por um discurso tecnocientífico (Araújo, 1998) cujo funcionamento sustenta a ilusão do homem contemporâneo em arvorar-se Deus e alcançar o impossível, intervindo na criação da vida, ainda que o "ser criado" seja colocado na posição de puro objeto. Assim, não parece sem sentido que, no início do filme, tenhamos a exposição do projeto do cientista Robby (William Hurt), cujo objetivo é a produção de mecas - robôs - programados com a capacidade humana de sentir, e cuja argumentação ressalta a criação de Adão e Eva, "programados" para amar o seu criador. Sustentado por tal analogia, o cientista vai além e idealiza a construção de um meca-filho, com a função de garantir ao outro - pai ou mãe - um amor incondicional e eterno. Na verdade, considero esse filme um efeito sintomático de uma cultura determinada por um discurso social dominante produtor de uma modalidade de laço no qual o outro passa a ser tomado como objeto próprio ao gozo. E essa afirmação supõe a existência de um mal-estar contemporâneo presentificado no discurso da ciência aliada ao capitalismo. (Laurent, 1969; Lebrun, 1997)
Penso ser oportuno esclarecer que, para John McCarthy (apud Folha de S. Paulo, 02/09/2001), criador do termo inteligência artificial, o conceito de inteligência artificial deve ser compreendido como a ciência e a engenharia aplicadas à elaboração de máquinas inteligentes, em especial, programas de computadores inteligentes; e, entre seus objetivos, está atingir o mesmo nível da inteligência humana. Na verdade, no horizonte ficcional dessa ciência, a meta máxima é a transformação desses seres em entes conscientes e com sentimentos. Nesse sentido, Rodney Brooks (apud Folha de S. Paulo, 2001), diretor do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, para a produção do filme A.I., afirma: "Em 20 ou 30 anos, teremos capacidade tecnológica para construir um robô com a mesma quantidade de computação do cérebro humano. Só não sei se nós vamos conseguir decifrar os algoritmos necessários nesse período de tempo". Entretanto, ele esclarece: "A maior parte dos robôs que iremos construir não terá vontade própria." Penso que, nessa afirmação, se, por um lado, está demarcada uma "íntima" relação entre os humanos e os robôs, por outro, tais "seres" caracterizam-se como objetos perfeitos para ocuparem o lugar de objeto de gozo do outro que o possui. Já há algum tempo venho refletindo a respeito da posição sintomática ocupada pela criança como objeto das fantasias mais fundamentais de nossa época, com base nos conceitos de discurso e laço social, teorizados por Lacan no Seminário XVII, O avesso da psicanálise (1969). É especialmente em relação ao "discurso do capitalista" (1972) no qual se explora a estrutura desejante do sujeito fazendo crer que tudo o que lhe falta poderá ser fabricado pela ciência e oferecido no mercado - até mesmo uma criança - que penso a existência de uma criança como objeto-mercadoria com valor de fetiche (Roure, 2001). Com efeito, penso o meca-filho David (Haley Joel Osment) - cópia fiel de uma criança humana programada para servir ao outro "com amor" - como metáfora dessa criança-objeto, presente em nosso tempo das mais diversas formas. Vejamos, por exemplo, o caso da criança que, ao ser "beneficiada" pelo programa bolsa escola - ou similares - pode vir a adquirir para a família, valor de mercadoria a ser negociada, ou mesmo o da criança que, objeto do querer consciente de uma mulher, torna-se "produto" de uma produção "independente", na qual o desejo sexual, ao ser excluído do assunto da procriação, leva-a a um embaralhamento da filiação. Vejamos, ainda, o caso da pequena prostituta, cuja posição de objeto permite que desejos incestuosos sejam satisfeitos sem nenhum interdito, pois, afinal de contas, a filha é do outro. Essas são situações em que, alienadas ao desejo do outro, crianças são impedidas de se constituir em sujeito desejante. Mas, retornemos à história de David, o pequeno robô, que ao ser ativado para amar, passa a sonhar - como Pinóquio - em se tornar humano para ganhar o amor da mãe. O filme encontra-se localizado em um tempo futuro indeterminado, em que o efeito estufa derreteu a calota polar, matou bilhões de pessoas e afundou cidades costeiras como Nova Iorque e Amsterdã. Quanto à sociedade, esta se divide em orgas - os orgânicos - e os mecas - os mecânicos -, sendo que os primeiros encontram-se sob severa restrição para procriar. Conforme afirmei anteriormente, na cena inicial do filme temos a exposição do projeto do cientista Robby (William Hurt) de produzir um meca capaz de amar e sonhar, e nesse sentido, ressalta a criação de um meca-filho que possa vir a amar seus pais para "todo o sempre". "Amor perverso", penso eu, que não implica "dar ao outro o que não se tem" (Lacan, 1960), mas em oferecer, justamente, o que se tem, isto é, um corpo - máquina - cujo funcionamento permite ao pai a eternização de um gozo sem interdito (Castel, 1997). Nesse sentido, vale lembrar que tal projeto encontra-se atravessado pelo desejo do cientista, perseguido pela morte do filho, de reencontrá-lo, ainda que seja no corpo de uma máquina. Penso que projetos dessa natureza - efeito de um discurso tecnocientífico - demarcam a existência de um laço perverso, visto que, "sem vontade própria", o meca-filho coloca-se à mercê de seu dono como objeto de um gozo sem fim, pois seu corpo – máquina – não oferece nenhuma resistência aos desejos e fantasias daquele que o possui como proprietário. Gozo garantido por fatura. Quanto ao casal escolhido para acolher o pequeno meca, Mônica e Henry Swinton (Frances O’Connor e Sam Robards), penso não ser sem sentido o fato de que o filho Martin (Jack Thomas) - vítima de uma doença terminal - encontra-se congelado pelo método criogênico. Neste momento, pergunto-me sobre a relação mortífera que o casal mantém com o filho, e cujo pronto restabelecimento só ocorre subitamente com a chegada do meca-filho.
Uma questão que me parece importante na trama do filme é a forma como David é acionado para "amar". Ou seja, para produzir amor em David é preciso que Mônica repita uma lista de sete palavras, previamente planejadas pela Cybertronics Manufacturing, fábrica responsável por sua construção. São elas: cirro, Sócrates, partícula, decibel, furacão, tulipa e golfinho. É logo após a escuta de tais palavras que David nomeia Mônica mãe. E, é bom lembrar, a nomeação parte de David e não de Mônica. Ora, se a transformação de um indivíduo em sujeito se dá por palavras que o enlaçam a um mundo simbólico, como fica se a introdução a este mundo ocorre por meio de palavras que apesar de serem ditas, ou melhor, repetidas pela mãe, não trazem consigo uma linhagem, uma história a partir da qual ele possa se inscrever? Tudo parece correr bem, até que o filho verdadeiro se recupera e retorna para casa, estabelecendo com David – deslocado de meca-filho para meca-brinquedo - uma relação de competição pelo amor da mãe. Depois de inúmeros incidentes, Mônica decide devolver David à Cybertronics, o que significa sua imediata destruição. Entretanto, tomada pela dúvida e angustiada com sua decisão, opta por abandoná-lo na floresta com o urso de pelúcia Teddy. Não estranhamente, nesse momento, a história toma um outro rumo. Se a grande questão, inicialmente destacada pelo cientista, era a capacidade de um meca amar um orga, agora a situação se inverte: será um humano capaz de amar um meca? Nesse ponto, pergunto-me sobre o tipo de laço possível de ser instaurado por projetos dessa natureza, pois um meca-filho - ainda que um robô - é programado para "amar" sem nenhuma garantia de que possa vir a ser ser amado. Na verdade, a ressalva que faço não tem relação com o fato de David merecer ou não ser amado - visto que é apenas uma máquina - mas penso sobre o tipo de vínculo estabelecido. De fato, ainda que um robô, David foi, durante algum tempo, utilizado pelo outro - especialmente por Mônica - como objeto, na posição de filho. E, nesse ponto, afasto-me do filme para refletir sobre algumas das novas formas de subjetividade presentes na sociedade contemporânea e sua relação com o discurso tecnocientífico. Se no campo da inteligência artificial persegue-se a fabricação de máquinas criadas à imagem e semelhança do ser humano, com capacidade de sonhar e amar, guardadas as devidas diferenças, penso que o mesmo acontece com a engenharia genética quando por meio das fertilizações in vitro e, de forma mais radical, dos projetos de clonagem humana, se propõe a criação de um ser feito "à imagem e semelhança" de um humano que se queira "reproduzir". Com efeito, a técnica da clonagem traz a idéia da continuidade de um indivíduo por meio de uma cópia geneticamente idêntica, o que permite que o fenôneno da reprodução determinado pela união de um homem e uma mulher seja deslocado para o processo de "replicação" de uma só pessoa (Luna apud Ciência Hoje) Mesmo considerando as "imensas" diferenças entre os dois processos, um elemento que suponho ser importante ressaltar é o fato de que, tanto em um quanto em outro, o saber dito científico coloca-se como capaz de substituir o desejo sexual na produção de um ser. Nesse sentido, se a clonagem implica uma reprodução assexuada, derivada apenas do progenitor feminino, pois dispensa o gameta masculino, o meca David - "clone" de uma criança humana - produto de uma experiência não uterina, e portanto, não sexual, satisfaz o desejo particular do cientista e ocupa, de uma só vez, tanto o lugar do filho doente do casal, como do próprio filho já falecido do cientista. Conforme se pode ver, tanto em um campo quanto em outro, manifesta-se o desejo da produção de uma vida fora do sexo, à mercê dos desejos, dos fantasmas e do gozo de seu criador. Como se pode perceber, com base no discurso tecnocientífico, produz-se a possibilidade não só de pensar, mas de interferir no real e fazer uma criança fora do sexo, fora do corpo, em desafio às leis do desejo e do sexo, com toda legitimidade. Como efeito lógico, o homem é cortado de suas conseqüências na transmissão simbólica de uma filiação. Não tenho dúvida de que o funcionamento desse discurso aponta a existência de um enfraquecimento simbólico na sociedade contemporânea nomeado por Lacan como declínio da "imago paterna" ou declínio do "Nome-do-Pai" e que age sobre as relações entre os sujeitos na nossa cultura provocando as mais diversas formas de subjetivação (Birman, 1999). Assim sendo, indago acerca da fantasia que sustenta tal discurso e cujos efeitos possibilita que homens e mulheres reivindiquem para si a reprodução - ou replicação - dos filhos como fruto de sua vontade, produzidos a sua imagem e semelhança, elidindo aí o aspecto desejante, o aspecto simbólico de uma relação com o outro. Indago ainda acerca da posição destinada a essa criança - clonada ou robotizada - aprisionada a uma relação dual de natureza especular, sem a presença de um terceiro que possa fazer valer uma função de corte. E aqui cabe dizer o quanto a relação David-Mônica aponta para a inexistência de Henry como pai simbólico. De fato, nesses casos, parece-me que a criança – humana ou máquina - será para a mãe - ou equivalente - um objeto sem desejo próprio, um assujeito, cujo único papel será preencher o vazio materno - no sentido daquele que pretende aí ocupar tal posição. Impossibilitada de ser reconhecida em sua diferença, essa criança é colocada perversamente na posição de falo imaginário da mãe. Submetida à onipotência materna, é capturada pelo fantasma materno e não é sequer reconhecida como sujeito do desejo.
Retornando ao filme, David, abandonado na floresta pela mãe, encontra-se com o robô-gigolô Joe (Jude Law) - criado para satisfazer as mulheres solitárias - e com ele, permanece até seu encontro definitivo com a Fada Azul a quem passa a se endereçar, para que o torne uma criança de verdade. Capturados por orgas, ambos são levados à "Feira da Pele", evento em que os mecas são destruídos em grandes espetáculos. Contudo, graças a sua forma humana, David consegue fugir. A partir daí, dirige-se em direção à terra perdida - Manhattan - em busca de uma resposta que o torne humano. No último e terceiro ato do filme, David depara-se com seu criador, que observa o fato de que, se seu filho havia ocupado a posição de o "único de uma espécie", caberia a David ocupar a posição do "primeiro de uma série". Atordoado, ele percorre a sala ao lado, deparando-se com os inúmeros mecas já construídos, todos com variações de seu rosto: "o primeiro de um série." Como em um grande supermercado, os pequenos mecas encontram-se em grandes "caixas", sendo que, na parte de cima, é possível observar uma inscrição: A love of your own.
Segundo o dicionário The New Lexicon Webster’s Dictionary of the English Language, own significa: "ter, possuir, ser o proprietário que pertence a alguém" e of .. own, é uma expressão que denota uma possessão particular ou exclusiva. Assim sendo, como possíveis significações de A love of your own temos: "Um amor que é seu; Um amor só seu; Um amor só para você; Um amor do qual você é proprietário; Um amor que você tem; Um amor exclusivo." É, portanto, uma expressão cujas significações permitem pensar em um amor - de filho - a ser comprado e, nesse contexto, com certificado de garantia. E aqui penso no quanto o discurso da ciência, aliado ao discurso do capitalismo, produz efeitos de forma a operar uma mudança nos ideais que orientam nossa sociedade, nossa cultura, sendo possível observar a existência de uma instrumentalização da condição humana. Discurso cujo funcionamento "não cria somente um objeto para o sujeito mas um sujeito para o objeto" (Chemama, 1997). Não dá para esquecer que, no início do filme, o cientista - determinado por tal discurso – idealiza um filho, ainda que máquina, que implique em um amor sem falta.
No fundo do oceano, perante a Fada Azul, David repete reiteradamente o desejo de se tornar humano e aí permanece por 2000 anos. Essa cena me permite pensar em uma criança-objeto que, ao encontrar-se alienada ao desejo da mãe, repete não o seu próprio desejo, mas o da mãe, como David repetiu o desejo, um dia formulado por Mônica, de que ocupasse a posição de um filho "só seu", sem permitir, no entanto, sua inscrição em uma cadeia simbólica de filiação - mesmo porque esta seria da ordem do impossível. Questões polêmicas, penso eu. Mas elas colocam em pauta a urgência de uma ética capaz de rediscutir a relação ciência e mercado na sociedade contemporânea, tendo em vista as novas formas de subjetividade produzidas e que implicam uma determinada relação do sujeito e o outro, seja ele robô, clone ou apenas "semelhante". Referências ARAÜJO, Hermete Reis (org). Tecnociência e cultura. Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. CASTEL, Pierre-Henri. Amor. In: Dicionário de psicanálise: Freud e Lacan. Salvador, BA: Ágalma, 1997. CIÊNCIA HOJE. Clonagem humana: os limites entre o necessário e o possível. São Paulo: SBPC, v. 30, n. 176, out. 2001. CHEMAMA. Roland. Um sujeito para o objeto. In: Goza! Capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador, BA: Ágalma, 1997. BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. FOLHA DE S. PAULO. Mentes que brilham. São Paulo, 02/ set., 2001. Mais! LACAN, Jacques. (1960-1961) O Seminário. Livro VIII. A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. ___. (1969-70) O Seminário. Livro XVII. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. LAURENT, Éric. Lacan y los discursos. In: LAURENT, Eric. Lacan y los discursos. Buenos Aires: Ediciones Manantial, 1992. LEBRUN, Jean-Pierre. Un monde sans limite: essai pour une clinique psychanalytique du social. Ramonville Saint-Agne: Editions Erès, 1997. ROURE, Glacy Q. de. Criança-objeto: entre o desejo e o gozo. 2001. Tese (Doutorado em Lingüística – Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas.[Versão preliminar apresentada para Qualificação]) |
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