http://www.comciencia.br/reportagens/2005/09/02.shtml
Autor: Rodrigo Cunha | ||
Segurança alimentar: um conceito em construção O entendimento de segurança alimentar, para o leigo, pode variar do total desconhecimento até a intuição de alguns aspectos que o conceito geral abrange. Mas são tantos os detalhes envolvidos nessa complexa e ampla expressão que nem mesmo as políticas públicas conseguem abarcá-los em sua totalidade. E seja para os governantes, seja para os pesquisadores que fomentam as discussões na área, tanto no Brasil, quanto a nível internacional, trata-se de um conceito que vem sendo construído no decorrer do tempo e consolidado nos debates sobre direitos humanos ao longo das últimas três décadas. Cunhado no início dos anos 70, o conceito de segurança alimentar se referia, originalmente, a países, e não a indivíduos ou famílias, e o foco das atenções eram os problemas globais de abastecimento. Um dos marcos iniciais de disseminação do termo foi a Conferência Mundial de Alimentação, realizada em Roma, em 1974, onde segurança alimentar foi definida como a garantia de adequado suprimento alimentar mundial para sustentar a expansão do consumo e compensar eventuais flutuações na produção e nos preços. “Este conceito original não considera a possibilidade de que o país tenha alimentos e a população não possa ter acesso a eles”, comenta Héctor Maletta, da Universidade Politécnica de Madrid, na Espanha, um dos responsáveis pelo Projeto Regional para a Formação em Economia e Políticas Agrárias e de Desenvolvimento Rural na América Latina. Nos anos seguintes à Conferência de Roma, o reconhecimento do problema crítico de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo e a evidência de que a chamada Revolução Verde – expansão da agricultura pelo avanço tecnológico – não iria reduzir automaticamente os níveis de pobreza e má nutrição no planeta levaram a uma redefinição de segurança alimentar. Em 1983, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês) incluiu no conceito a garantia do acesso físico e econômico das pessoas à alimentação básica que elas necessitavam. Em 1986, um relatório do Banco Mundial introduziu uma distinção entre insegurança alimentar transitória, decorrente de desastres naturais, colapsos econômicos ou conflitos bélicos, e insegurança alimentar crônica, associada a problemas estruturais de pobreza e de baixa renda. Uma semente dessa idéia começou a ser plantada no Brasil, também nos anos 80, por pesquisadores como o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que havia fundado em 1981 o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), organização não governamental sem fins lucrativos dedicada ao estudo das realidades econômicas, políticas e sociais no país. No início dos anos 90, o Ibase e o IBGE divulgaram um estudo intitulado “Mapa da Fome”, que apontava 32 milhões de pessoas no Brasil com renda familiar insuficiente sequer para comprar uma cesta básica por mês. Esse estudo desencadeou a famosa campanha de Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida, encabeçada por Betinho, que conseguiu, em apenas um ano, doações de alimentos não perecíveis de 25 milhões de pessoas em mais de quatro mil comitês espalhados pelo país. Em 1993, o presidente Itamar Franco atendeu ao apelo da sociedade civil gerado pela campanha de Betinho e criou a primeira versão do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) – substituído pelo Conselho de Comunidade Solidária, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e reativado dez anos depois de sua criação pelo presidente Lula. “As políticas públicas no Brasil passaram a incorporar o foco de segurança alimentar e nutricional a partir de trabalhos desenvolvidos por muitos pesquisadores, embora nas políticas você ainda tenha uma incorporação muito parcial do enfoque”, afirma Renato Maluf, pesquisador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e assessor especial e membro do Consea. Segundo ele, no Brasil, a interpretação inicial era diferente do sentido original de food security, devido a um esforço, aqui, para se construir uma visão de segurança alimentar que fosse além da mera disponibilidade de bens alimentares de consumo. Mesmo assim, a questão do acesso aos alimentos sempre esteve no foco tanto das políticas nacionais quanto das internacionais. Em 1994, a FAO, lançou o seu Programa Especial de Segurança Alimentar, centrado na ajuda a vários países para o aumento da produção de alimentos, para conter os índices de fome e subnutrição. Nesse mesmo ano, o Brasil realizou a Primeira Conferência Nacional de Segurança Alimentar, na qual a insegurança alimentar do brasileiro, fortemente vinculada à idéia de acesso aos alimentos, foi associada à concentração de renda e de terra no país. “A política nacional de segurança alimentar e nutricional vem sendo construída e a incorporação das várias dimensões [que o conceito abrange] vem sendo gradativa”, afirma o assessor especial do Consea. Essa incorporação de outros aspectos ao conceito original também foi gradativa a nível internacional. Em meados dos anos 90, o acesso ao alimento para uma vida ativa e saudável, dentro do conceito de segurança alimentar, passou a abranger questões como preferência individual, balanço nutricional e inocuidade dos alimentos (sua inofensividade à saúde). A exemplo do marco inicial de 1974, foi novamente em Roma que aconteceu a Cúpula Mundial de Alimentação, em 1986, onde se traçou a meta de erradicar a fome em todos os países do mundo e reduzir o número de pessoas subnutridas pela metade até 2015. Esse evento consolidou o seguinte conceito:
A questão do risco à saúde, incorporada desde então, envolve uma palavra em inglês (safety) que a exemplo do conceito geral (security) também se traduz por “segurança”. A ambigüidade desse termo, em português, que pode se referir tanto aos alimentos (seguros) quanto à prática alimentar (segura), pode levar a uma limitação do conceito. “Deve-se distinguir claramente a segurança alimentar (food security) da inocuidade dos alimentos (food safety). Esta última é uma condição necessária para que haja segurança alimentar, mas é apenas um aspecto. De nada valeria ter alimentos inócuos se estes não existem em quantidade suficiente ou se a população não tem acesso a eles”, esclarece Héctor Maletta, da Universidade Politécnica de Madrid. “Da mesma forma, não pode existir segurança alimentar se os alimentos causam dano [à saúde], mesmo quando há acesso a eles em quantidade suficiente”, acrescenta. Além da questão do acesso ao alimento, a idéia de insegurança alimentar envolve ainda desde riscos por má conservação dos alimentos ou grande concentração de substâncias nocivas que eles possam conter, passando por formas de preparo ou processamento que destroem certos nutrientes essenciais, até condições gerais de saúde e saneamento ou possíveis reações alérgicas de algumas pessoas a alimentos específicos. A percepção pública Se para os cientistas e os definidores de políticas públicas o conceito de segurança alimentar é novo e controverso em determinadas situações, que dirá para o público leigo. Robson de Almeida, funcionário da Unicamp diz que nunca ouviu falar em segurança alimentar e não faz idéia do que seja isso. A mestranda em engenharia química Giselle Ferreira da Silva sugere que a expressão “está relacionada à higiene e à conservação dos alimentos”, associando o termo à idéia de risco que os alimentos podem oferecer para a saúde. Entre os que conhecem a expressão, outro aspecto além do risco à saúde predomina na percepção dos leigos sobre segurança alimentar, influenciada pela campanha de Betinho e pelo recente programa Fome Zero do governo federal: a questão do acesso aos alimentos. “É claro que a fome, especialmente a fome crônica e as formas de fome oculta, como a desnutrição, são as dimensões mais evidentes e urgentes da segurança alimentar e nutricional. É uma visão que expressa o direito de que todos devem ter acesso aos alimentos e que ninguém passe fome”, observa Renato Maluf, do Consea. “Temos feito um esforço para construir uma visão em que o próprio combate à fome seja orientado com um enfoque de segurança alimentar e nutricional. Não se trata de distribuir alimentos de qualquer maneira, não é apenas uma questão de dar renda a quem não tem para que possa comprar alimentos. Tem [também] o tema de produção, o tema de hábitos alimentares e a questão de soberania alimentar envolvidos”, avalia. Segundo o assessor especial, a definição de segurança alimentar do Consea prevê que a garantia de acesso regular e permanente a uma alimentação adequada leve em conta as condições econômicas, ambientais e culturais dos povos. Além disso, na questão da produção de alimentos, o Consea também estimula aquilo que tem sido uma das marcas do atual governo: a agricultura familiar. O Conselho atua, ainda, na área de educação alimentar, que envolve não apenas os hábitos alimentares e a alimentação balanceada, mas inclusive a preocupação ambiental para que a produção de alimentos seja sustentável e valorize a biodiversidade. “É um componente fundamental que a política seja construída com muita participação social”, conclui. (RC) | ||
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Atualizado em 10/09/2005 | ||
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