http://www.comciencia.br/reportagens/2005/06/16.shtml
Autor: Flavia Natércia |
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As múltiplas frentes da batalha contra a malária A primeira vacina contra a malária pode estar disponível no mercado no ano de 2010, e diversas outras vacinas e medicamentos estão sendo investigados. Os remédios existentes enfrentam crescentemente o problema da resistência dos plasmódios, e uma vacina representará uma poderosa arma no combate à infecção. A doença mata anualmente cerca de 1 milhão de indivíduos, e entre 300 e 500 milhões são infectados, segundo a OMS, mas os números podem estar subestimados. Mulheres grávidas, que sofrem uma diminuição da resposta imunológica a substâncias e organismos invasores, e crianças, sobretudo as que têm menos de 5 anos, ainda não foram suficientemente expostas aos parasitas de modo a desenvolver uma defesa. As crianças representam o principal alvo da candidata a vacina mais promissora, atualmente na segunda fase dos testes clínicos, que é produzida pela Glaxo SmithKline (GSK) Biologicals, da Bélgica, e testada em parceria com a Malaria Vaccine Initative Programme for Apropriate Technology in Health (MVI-PATH). Essa organização-não governamental foi criada em 1999, com verba da Fundação Bill & Melinda Gates e objetivo específico de acelerar a pesquisa e desenvolvimento da vacina contra a malária. O alto custo do processo fez a GSK buscar parceria da MVI. Por outro lado, o mercado potencial é grande: em 2010, a equipe estima que 3,5 bilhões de pessoas habitarão áreas em que a doença é transmitida. Os resultados obtidos nos primeiros testes com crianças foram publicados na revista The Lancet, em outubro de 2004. O princípio ativo da vacina consiste no pedaço de uma proteína da superfície celular do esporozoíto, forma do Plasmodium falciparum, o mais letal dos plasmódios, que infecta o organismo humano - denominada proteína do circum-esporozoíto (CSP, sigla em inglês) -. Por meio de engenharia genética, uma parte da receita para a fabricação dessa proteína foi fundida com as instruções para produção de uma proteína de superfície do vírus da hepatite B, e a fusão foi inserida em leveduras (Saccharomyces). A substância formada, nas células das leveduras, a partir dessas instruções, se dobra de modo tal que forma partículas que geram muito mais resposta imune do que provocaria se não assumisse essa conformação. "A fusão é uma das razões, efetivamente, pelas quais obtivemos uma melhor resposta imunológica", diz Jean Stéphenne, presidente da GSK e que trabalha há mais de 20 anos nessa busca e viu muitas possibilidades serem testadas sem sucesso. Mas a vacina tem outro 'segredo': um novo adjuvante (substância que incrementa o efeito farmacológico de um medicamento ou as propriedades imuno-estimulantes de um antígeno), de propriedade da GSK, que contém na fórmula o monofosforil lipídio A (MPL) e o QS-21. "Essas substâncias estimulam diferentes aspectos do sistema imunológico, em particular, respostas humorais - produção de anticorpos -, e respostas celulares, por meio do linfócito T", explica Stéphenne. Recrutado, o linfócito ataca as células que hospedam o parasita, o que, tudo indica, é necessário para que haja, de fato, proteção, com a eliminação dos reservatórios da doença. "Para que uma vacina seja efetiva, deve ser composta de antígenos do protozoário que sejam relativamente invariáveis e essenciais para sua sobrevivência", acrescenta Shirley Longacre, pesquisadora do Instituto Pasteur, na França. Outro requerimento a ser preenchido: os antígenos têm de ser apresentados à defesa humana de modo que sejam reconhecidos como 'estranhos' e 'perigosos', provocando uma resposta imune efetiva que não resulte numa toxicidade inaceitável para o paciente. Longacre e sua equipe acreditam ter encontrado na MSP1p19, ou proteína de superfície 1 do merozoíto - forma do plasmódio que infecta as hemácias -, uma candidata com as características desejadas: para invadir as células vermelhas do sangue, o plasmódio precisa dela, que mostra pouca variação de uma linhagem a outra. Modelos animais Antes de avaliar os efeitos dos antígenos sobre o organismo humano, os cientistas lançam mão de modelos animais. No Centro Médico da Universidade Leiden, na Holanda, Andy P. Waters é membro da equipe que estuda os genes do Plasmodium berghei, que infecta ratos e camundongos de laboratório, e apresenta entre 4500 e 5500 genes equivalentes aos do P. falciparum. "Muitos genes que codificam equivalentes de antígenos candidatos a vacina contra o P. falciparum foram encontrados: CS, LSA-1, MSP-1, Pfs28, Pfs25, a lista é longa", diz. Segundo Waters, o modelo reproduz virtualmente todos os aspectos da biologia dos parasitas humanos, permite estudar as interações com o hospedeiro in vivo e representa um sistema seguro, uma vez que o plasmódio do roedor não infecta o homem. Sobre os alvos que seu grupo investiga, Waters faz segredo e diz apenas que tenta compreender os mecanismos que regem o desenvolvimento do plasmódio e a forma como ele percebe o ambiente. A partir desse conhecimento, devem desenvolver novas terapias. "Quando injetado em macacos, com os imuno-estimulantes adequados, o pedaço do MSP induz a produção por anticorpos que protegem os animais numa subseqüente exposição ao plasmódio", conta. Provavelmente, de acordo com Longacre, os anticorpos atuam de duas maneiras distintas. A primeira, ligando-se ao antígeno de superfície do merozoíto, impedindo-o de funcionar corretamente, o que inibe a invasão da hemácia. A segunda seria uma colaboração com outras células de defesa, os macrófagos; que seriam induzidos a destruir os merozoítos. O Instituto Pasteur planeja iniciar a primeira fase de testes clínicos em 2006. Entretanto, em que medida as reações imunológicas dos animais se assemelham às reações humanas? A resposta a essa questão permanece em aberto, tornando necessário o teste de antígenos candidatos diretamente em voluntários. Em laboratório, sob condições controladas, os indivíduos que se dispõem a tal são submetidos à picada do anófeles e, conseqüentemente, à infecção pelo plasmódio. Assim, os cientistas podem estudar em que consiste exatamente a resposta imunológica do organismo humano e se a imunização contra o plasmódio, de fato, requer o estímulo a respostas celulares. Corrida armamentista É comum aos protozoários se multiplicarem, atingindo a ordem de dezenas de milhares, muito rapidamente. O plasmódio, como outros protozoários que causam doença, passa grande parte de seu ciclo de vida, dividido entre três formas (esporozoíto, merozoíto e gametócito), no interior das células do hospedeiro. No homem, invade as células do fígado e os glóbulos vermelhos do sangue. Além disso, o plasmódio tem mecanismos para mudar constantemente as características que, diante da defesa do organismo, lhes servem como credenciais: os antígenos de superfície. A variação genética existente nas populações selvagens do protozoário é outro fator que dificulta o reconhecimento do 'inimigo'. "Assim, o sistema imunológico tem dificuldades em reconhecer a maioria das linhagens ou todas aquelas com que um indivíduo pode deparar, particularmente numa região de alta transmissão", explica Longacre. Outra conseqüência do polimorfismo genético do plasmódio é que ele pode proporcionar o desenvolvimento rápido de resistência contra remédios. Karen Hayton, do Laboratório de Pesquisa da Malária e Vetor, dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, EUA), estuda as mutações genéticas que conferem resistência à cloroquina, atribuídas ao gene que seria de uma proteína transportadora, a PfCRT. "A identificação dos genes envolvidos na resistência aos medicamentos é importante para compreender e prever como a resistência a um certo remédio aparece, abrindo caminho para que os inibidores serem redesenhados", diz Hayton. Para lidar com a resistência, no Brasil, pesquisadores do Centro de Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas e Biológicas (CPQBA), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aclimataram às condições locais o arbusto Artemisia annua. Essa planta é usada na China há milhares de anos contra a febre e representa um recurso importante contra as linhagens resistentes do plasmódio. De acordo com Adilson Sartoratto, pesquisador do CPQBA-Unicamp, um convênio deve ser assinado com a empresa Labogen, e o remédio com base na artemisinina e seus derivados pode estar disponível dentro de um ano, mas somente para campanhas de saúde pública - não será vendido em farmácias. Outro grupo que trabalha contra a resistência do plasmódio é coordenado por Luiz Hildebrando Pereira da Silva, no Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (Porto Velho, RO), desenvolvendo pesquisas em colaboração com outros centros como a USP, a Fiocruz e o Pasteur. "Neste momento, desenvolvemos estudos e projetos ligados à resistência de antimaláricos (in vivo e in vitro) dentro de um grupo multicêntrico, ligado ao Ministério da Saúde e a OPAS", conta o pesquisador Mauro Shugiro. Outras frentes de pesquisa envolvem a busca de inseticidas ou repelentes mais eficazes, ou, por meio de engenharia genética, a criação de mosquitos incapazes de transmitir a doença. Essa última abordagem encontra um empecilho nos riscos associados à introdução deliberada de um organismo transgênico no ambiente. Diversos laboratórios no mundo se dedicam ao trabalho de prospecção de alvos potenciais, por meio da genômica e da proteômica - estudos, respectivamente, de genes e proteínas em larga escala -. "A seqüência genômica fornece informações que ajudam a identificar vias bioquímicas que não existem em humanos e poderiam, portanto, servir de alvo para drogas", afirma Malcolm Gardner, biólogo molecular do Instituto para Pesquisa Genômica (TIGR), nos Estados Unidos. Seqüências completas ou incompletas foram obtidas para os parasitas de: humanos - Plasmodium falciparum e P. vivax; roedores - P. yoelii, P. chabaudi, P. berghei; e macaco (P. knowlesi). Em 2001, foi concluído o seqüenciamento do genoma humano e, no ano seguinte, foi a vez do mosquito Anopheles gambiae. De acordo com Gardner, são diversas as aplicações potenciais. "Acreditamos poder utilizar os dados do genoma para acelerar a pesquisa e alcançar uma compreensão melhor e mais detalhada das interações hospedeiro-parasita-vetor", conta. Em relação ao mosquito, novos repelentes serão desenhados com o entendimento molecular sobre como ele encontra as vítimas a serem picadas. Quanto ao parasita, novas drogas e vacinas terão como alvo moléculas essenciais de seu metabolismo. Para os humanos, testes diagnósticos ajudarão a identificar os pacientes sob maior risco de desenvolver as formas severas da doença, como a malária cerebral. A análise das proteínas tem indicado outros alvos. "Nenhum pode, a essa altura, ser descartado", afirma H. Stunnenberg, do Centro Molecular de Ciências da Vida da Radboud University Nijmegen, Holanda. "Os estudos que realizamos vão colocar no cenário as deacetilases (HDACs, que removem grupamentos acetil) de histonas (proteínas que fazem parte da estrutura do DNA) e outras enzimas que fazem modificações epigenéticas". A epigenética é uma área florescente que investiga alterações na expressão dos genes que não estão codificadas nas quatro letras (A, T, G e C) do código genético: metilação do DNA, interferência de RNA e acetilação de histonas, por exemplo. No Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, de acordo com a pesquisadora Maria de Fátima Ferreira da Cruz, do Laboratório de Pesquisa em Malária, sua equipe tem usado os dados da proteômica e também os relativos à variação genética (polimorfismo) do plasmódio para desenvolver candidatas a vacinas. Na busca de novos medicamentos, merecem destaque os projetos que a fundação Medicines for Malaria Venture (MMV) e a MVI realizam em colaboração com empresas (não somente do setor farmacêutico), laboratórios militares, universidades e instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os parceiros da MMV vêm investigando o potencial terapêutico de diversas substâncias: falcipaína, piridonas, peróxidos sintéticos, derivados do antibiótico tetraciclina, terapias que combinam diversos derivados da artemisinina e a DB289, que atualmente passa pela primeira fase dos testes clínicos. No portfólio da MVI, entre os antígenos, encontram-se: LSA-1, MSP-1, AMA-1, MSP-2, MSP-4, MSP-5, RAP-2, FMP-1 ? os dois primeiros estão em desenvolvimento pré-clínico. A lista é grande e promissora. No entanto, da identificação de moléculas potencialmente úteis ao mercado, o caminho é longo e, muitas vezes, tem de ser interrompido porque a promessa não se realiza. Como há diversas frentes de investigação, segundo os cientistas, é preciso haver também uma combinação de estratégias para haver um combate efetivo da malária.
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Atualizado em 10/06/2005 |
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