http://www.comciencia.br/reportagens/2005/06/10.shtml
Autor: Mariza Velloso Fernandez Conde |
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Políticas de C&T e Saúde Pública Mariza Velloso Fernandez Conde Os avanços científicos na área biomédica da primeira metade do século passado, representados pelo desenvolvimento de antibióticos, de vacinas e de modernas tecnologias de saneamento, trouxeram como resultado o controle ou prevenção de diversas doenças infecciosas. Os esforços de vacinação coordenados em nível mundial levaram à eliminação ou drástica redução da incidência de doenças como a poliomielite, coqueluche, difteria e varíola. Os antibióticos permitiram o combate de infecções bacterianas, como meningite e pneumonia, que anteriormente eram quase sempre fatais. E pesticidas químicos auxiliaram na redução da incidência de doenças transmitidas por vetores como a malária, a doença de Chagas e a dengue. No entanto, as últimas décadas do século XX assistiram à emergência de novas doenças como a aids, hepatite C, ebola, encefalopatia espongiforme (“vaca louca”), a gripe do frango, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), entre outras, e à reemergência ou recrudescimento de doenças que pareciam sob controle, como a dengue, cólera, malária, difteria, febre amarela e tuberculose. A crescente resistência bacteriana aos antibióticos também veio se somar às dificuldades para o controle dessas doenças e as ações e ameaças de bioterrorismo complicaram este quadro ainda mais. Diante deste panorama, o otimismo inicial do século passado teve que ser revisto, e a década de 1990 foi marcada por intensa mobilização internacional no sentido de estruturar e fortalecer a capacidade dos países para responder à "ameaça microbiana". Essa capacidade de reposta requer um sistema efetivo de vigilância e controle das doenças transmissíveis que depende essencialmente de uma infra-estrutura de pesquisa forte e estável. Estudos científicos dos agentes infecciosos e das doenças comporiam uma base de conhecimentos para o desenvolvimento ou aperfeiçoamento de testes diagnósticos para identificar as doenças, de medicamentos para tratá-las e vacinas para preveni-las. No entanto, os investimentos públicos e privados em pesquisa e desenvolvimento na área da saúde não estão direcionados para esses problemas. A maior parte desses investimentos – em torno de 90% – é utilizada para a pesquisa dos problemas de saúde de 10% da população mundial. Conseqüentemente, os restantes 10% são utilizados para pesquisar problemas que afetam 90% da população mundial. Essa disparidade tem sido designada de Desequilíbrio 10/90. Vale relembrar que as doenças infecciosas e parasitárias ainda permanecem hoje como a maior causa mundial de morbidade e mortalidade, e em muitos países concorrem como principal causa de sofrimento e morte prematura. Elas afetam desproporcionalmente os países em desenvolvimento e os segmentos populacionais mais pobres e, na maioria dos casos, as desigualdades econômicas e sociais são centrais para sua persistência e disseminação. Diante dessas constatações, iniciativas de políticas de C&T para enfrentamento desses problemas tiveram início naquela década [1990]. No plano internacional, a Organização Mundial da Saúde constituiu, em 1994, um Comitê ad hoc sobre a Pesquisa em Saúde para estudar as opções futuras da pesquisa, cujo relatório de 1996 recomendou a criação de um Fórum Global para a Pesquisa em Saúde, que teria como objetivo mobilizar forças para auxiliar na correção do Desequilíbrio 10/90. O Programa Especial para a Pesquisa e Capacitação em Doenças Tropicais – TDR, co-patrocinado pelo Banco Mundial, Organização Mundial de Saúde e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, foi reestruturado para acompanhar as mudanças e avanços da pesquisa das doenças infecciosas e, a partir de 1998, passou a dar mais ênfase ao componente do programa que visava ao fortalecimento da capacidade de pesquisa, especialmente nos países em desenvolvimento. O Fórum Global para a Pesquisa em Saúde, criado em 1997 como uma entidade independente, elegeu o Desequilíbrio 10/90 como principal problema da pesquisa em saúde enfatizando a necessidade de fortalecer a capacidade de pesquisa nos países em desenvolvimento como uma das estratégias mais efetivas para a reversão do Desequilíbrio. Nesta nova perspectiva, formular políticas de pesquisa em saúde com o intuito de estruturar agendas de pesquisa, ou seja, de estabelecer mecanismos de priorização de áreas e temas a serem pesquisados, tornou-se imprescindível. Os processos de priorização foram considerados negligenciados até aquele momento e essa falha contribuiria para a perpetuação daquele desequilíbrio. Nesse sentido, o estabelecimento de prioridades da pesquisa em saúde em nível global, nacional e local seria o mecanismo mais fundamental para direcionar o fortalecimento da capacidade de pesquisa em saúde e para reverter o Desequilíbrio 10/90. As repercussões dessas diretrizes, no plano nacional, deram início a um amplo processo de discussão para prover o setor saúde de uma retaguarda científica e tecnológica sintonizada com as especificidades regionais e necessidades de saúde locais. O fortalecimento da articulação entre o sistema de saúde e o sistema de ciência e tecnologia seria central para esse propósito. Considerando a importância estratégica da pesquisa em saúde, processos de construção de agenda liderados pelo Ministério da Saúde e pelo CNPq, e apoiados pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), tiveram início em 1991, com a realização do seminário Ciência e Tecnologia em Saúde: Definição de Políticas, Necessidades e Possibilidades. A reunião promovida pela Academia Brasileira de Ciências em 1994, em que foram definidas as macrodiretrizes para uma política brasileira de ciência e tecnologia em saúde e a realização, nesse mesmo ano, da I Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde marcaram a participação da comunidade científica e de usuários nesses processos. Como conclusão desses processos, considerados pelo CNPq como no âmbito do planejamento estratégico, foi instituído, em 1997, o Programa de Indução Estratégica à Pesquisa em Saúde (PIE/Saúde) como um instrumento de indução de pesquisas no setor. E, para sua implementação, optou-se por atender à temática das Doenças Infecciosas e Parasitárias Novas, Emergentes e Reemergentes. A criação de um departamento no Ministério da Saúde com a missão de desenvolvimento e apoio às políticas de C&T na área de saúde, as diversas reuniões promovidas pelo Ministério com a comunidade científica em 2003, a publicação da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde em 2004, e a realização da II Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, nesse mesmo ano, deram prosseguimento ao ordenamento dos esforços nacionais de C&T em saúde. Desse modo, o período introduziu uma política de indução de desenvolvimento de pesquisas em áreas estratégicas e as doenças transmissíveis compareceram como uma das áreas prioritárias desses esforços. Paralelamente, considerando a importância crescente da geração de inovações tecnológicas para o desenvolvimento econômico e a fragilidade das empresas nacionais neste quesito, as políticas de C&T formuladas no país ao final da década de 90 e nos anos 2000 apresentam o estímulo à inovação no setor privado como ponto central. Um conjunto de iniciativas que tinham como meta a promoção da inovação foi desenvolvido e/ou implementado nesse período. A criação dos Fundos Setoriais para financiamento da P&D, a realização da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e novas leis de Informática, de Acesso à Biodiversidade e de Biossegurança, além da Lei da Inovação, são exemplos dessas iniciativas, que introduziriam mudanças tão significativas no arcabouço institucional e legislativo que chegaram inclusive a ser caracterizadas como uma reforma do setor de C&T. Com isso, algumas propostas mais recentes no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia sinalizam uma reorientação da política de C&T em Saúde que expressa a perspectiva predominante na política nacional de C&T, ou seja, a constituição ou fortalecimento de um sistema nacional de inovação em saúde. Embora essa reorientação indique duas vertentes, forjar parcerias que visem ao fortalecimento da indústria nacional e realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento dirigidas aos problemas de saúde do país, a ênfase tem recaído na primeira vertente, de promoção da articulação dos atores públicos e privados relevantes para a constituição de um sistema de inovação em saúde no país, com aproximação entre as atividades de pesquisa e a produção industrial. Os achados de investigação sobre as atividades e resultados da pesquisa biomédica, que conduzimos recentemente, evidenciaram que, além de produzir novos conhecimentos científicos acrescidos ao estoque de conhecimento, os laboratórios de pesquisa biomédica geram conhecimentos que são transferidos, sob diversas formas, a diversos usuários: a empresas e indústrias, a universidades, a outros institutos de pesquisa, a museus e escolas e, principalmente, ao Sistema Único de Saúde. Neste último caso, atividades de base científico-tecnológica secundárias à pesquisa biomédica são essenciais para o controle das doenças endêmicas, epidemias e para a vigilância das doenças emergentes e reemergentes, inclusive aquelas relacionadas com o bioterrorismo. A participação dos laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz na resposta imediata aos problemas emergentes como a SARS e o antraz fornecem a dimensão da importância das capacidades e competências técnico-científicas acumuladas pelos laboratórios de pesquisa biomédica no país para as estratégias de enfrentamento, não somente das doenças transmissíveis endêmicas, mas também de patógenos emergentes e ainda desconhecidos. Para finalizar, gostaríamos então de alertar que, a despeito da necessidade de incrementar pesquisa e desenvolvimento em saúde que produzam maiores aportes de conhecimentos ao setor industrial para a geração de novas tecnologias úteis ao setor, também é fundamental manter ou mesmo ampliar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento que servem de retaguarda ao SUS e, particularmente, ao sistema de vigilância epidemiológica. Deste modo, a tensão entre as vertentes de aproximação do empreendimento científico da saúde ao setor industrial e/ou ao sistema de saúde será resolvida em perspectivas integradoras de políticas de C&T em saúde, minimizando possíveis efeitos adversos para a saúde pública. Mariza Velloso Fernandez Conde é analista de C&T do Instituto Oswaldo Cruz / Fiocruz e doutora em Política Científica e Tecnológica (IG / Unicamp). |
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Atualizado em 10/06/2005 |
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