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http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/08.shtml

Data de publicação: 10/10/2004

A ficção científica e a questão da subjetividade homem-máquina

Fátima Régis de Oliveira

O desenvolvimento tecnocientífico a partir da segunda metade do século XX desafia a concepção de homem da Modernidade. A ciência e a filosofia modernas conceberam homens, animais e máquinas como seres de naturezas distintas, que não podiam se misturar. Ao explicar os mecanismos da vida em termos de interações moleculares e programa genético, a biologia molecular elimina a possibilidade de vitalismo, produzindo uma maquinação do humano a nível bioquímico. Por sua vez, as máquinas de última geração são providas de organização, interagem com o ambiente e executam tarefas cognitivas, faculdades até então reservadas ao humano. Além dessa maquinação do humano e humanização das máquinas, a inteligência artificial, as biotecnologias e a engenharia genética produzem próteses, implantes, tecnologias invasivas e biocompatíveis que tornam ambíguas as diferenças entre natural e artificial, pensante e não-pensante, orgânico e maquínico.

A capacidade lógico-matemática necessária para jogar xadrez já é replicada pela inteligência artificial. Basta lembrarmos do supercomputador Deep Blue, que venceu o enxadrista campeão mundial Kasparov. A engenharia genética realiza experiências em que combina partes de órgãos humanos com o corpo de animais, como o rato com uma orelha humana nas costas (figura 1). Já o acadêmico canadense Steve Mann – o cyberman (figura 2) – utiliza a tecnologia para mediar inteiramente a sua percepção da realidade. Desde 1981, Mann utiliza uma câmera de vídeo no olho direito – um eyetap – para amplificar e intensificar as percepções de seu corpo. A percepção visual que Mann tem do mundo é inteiramente mediada pela câmera.

Rato com uma orelha humana nas costas o acadêmico canadense Steve Mann com seu eyetap

Figura 1

Figura 2

Esses seres híbridos e monstruosos parecem saídos das páginas de livros e das telas de filmes de ficção científica, deixando- nos a sensação de que o mundo atual tem seu quotidiano temperado com uma pitada de ficção científica. O gênero cada dia ganha mais espaço no imaginário popular e interesse nas comunidades acadêmicas, suscitando pesquisas em áreas de ciências sociais e humanas e nas teórico-experimentais. Mas como a ficção científica, de sub-gênero da cultura de massa, tornou-se a narrativa por excelência da subjetividade homem-máquina? Para tentarmos compreender esta questão primeiro fazemos uma retrospectiva da árvore genealógica da ficção científica para em seguida entender as condições de seu aparecimento na cultura moderna.

O nascimento da ficção científica

Embora hoje encontremos ficção científica em histórias em quadrinhos, videogames, filmes e RPG, o gênero nasceu como narrativa literária. A ficção científica herdou das narrativas de viagens e das fábulas a tarefa de contar histórias sobre seres maravilhosos ou extraordinários, fascinando assim seus leitores. As viagens fantásticas, como As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, descrevem seres maravilhosos e lugares exóticos e longínquos, acendendo a curiosidade sobre o desconhecido, mas mantendo em suspense a real existência dos ambientes descritos. A ficção fantástica – a ficção científica e seus primos mais próximos, a fantasia e o horror – são produtos da Idade Moderna, e, constituíram-se no campo da literatura. Diferente da fábula, a literatura é ficcional, mas se compromete a produzir efeitos de realidade. A literatura fantástica permanece, no entanto, com o mesmo objetivo da fábula: criar seres e mundos desconhecidos, despertando curiosidade e deslumbramento em seus leitores.

Para o escritor Bráulio Tavares, o que há em comum entre a fábula e a literatura fantástica é a temática do “Outro Eu, ou a justaposição do conhecido (o Eu) e do estranho (o Outro) (Tavares, 1986, p. 13).

As justaposições entre conhecido e estranho, eu e outro, revelam que o tema comum à fábula e à narrativa fantástica é a interrogação de nossa humanidade e de nosso mundo a partir da presença de um outro ser e de um outro mundo. Como exemplos de outros seres podemos citar anões e gigantes (fábulas), ogros e duendes (fantasia), robôs e alienígenas (ficção científica). Os outros mundos podem ser representados por culturas orientais (fábulas), reinos mágicos (fantasia), planetas longínquos (ficção científica). As viagens realizadas e os seres visitados (ou criados) dependem do potencial de saber (mágico, religioso ou científico) de cada cultura. A partir de uma ou mais mudanças nas esferas de subjetividade, saber e espaço-tempo, a fábula e a ficção fantástica exercitam a curiosidade e o deslumbramento sobre seres e mundos desconhecidos como estratégia de problematização de nossa própria humanidade, realidade e potencial de exploração no mundo.

A Odisséia, – a primeira grande obra de ficção fantástica do Ocidente – é uma narrativa de viagem que demarca a identidade do homem grego e a geografia das viagens possíveis em contraposição aos povos bárbaros e aos troianos. Hoje descrita como fábula, talvez a Odisséia tenha sido uma “ficção científica” em sua época. O título de primeira obra de FC - quase um consenso entre autores, pesquisadores e leitores do gênero – cabe a Frankenstein (1817), de Mary Shelley. É a primeira história em que matéria inerte é animada por meio de procedimentos científicos. Envoltos em um campo de fronteiras esmaecidas só é possível delinear uma diferença muito sutil entre ficção científica, fantasia e horror. Na ficção científica as interrogações do humano e das configurações espaço-tempo são feitas a partir de mudanças fictícias no saber tecnocientífico, enquanto na fantasia e no horror os elementos dominantes são o saber mágico, religioso ou sobrenatural. Uma ressalva é importante: várias obras de ficção científica utilizam elementos mágicos, religiosos ou sobrenaturais – um dos motivos pelos quais o gênero é considerado impuro. No entanto, na ficção científica há sempre pelo menos um elemento (enredo, personagem, contexto, entre outros) que se apóia no imaginário tecnocientífico. Não é casual que a data e o local de nascimento da ficção científica seja o alvorecer da Revolução Industrial, na Inglaterra.

As condições de aparecimento da ficção científica na Modernidade

Na virada do século XVIII para o XIX, a Europa vive mudanças acentuadas nas esferas sociais, políticas e econômicas engendradas pelas Revoluções Francesa e Industrial. Estas mudanças tiveram como base a racionalidade científica e as invenções tecnológicas aplicadas à produção, ao comércio e à economia no decorrer do século XVIII. Os consistentes sucessos do conhecimento objetivo legitimaram a razão e a capacidade intelectual do homem como indivíduo autônomo e secular. O pensamento político e social abandonava os dogmatismos religiosos e monárquicos e se voltava para os ideais progressistas de liberdade e igualdade. Ao empunhar a bandeira dos ideais iluministas de liberdade e igualdade, a Revolução Francesa glorificou o poder do indivíduo na transformação e progresso da sociedade. Ao consolidar a força do indivíduo e a confiança na razão, o ensinamento proposto pela Revolução Francesa foi: nós (indivíduos, cidadãos) podemos mudar a sociedade, nós podemos construir um futuro melhor. O explícito nas revoluções e no pensamento que inauguram este período é o entrelaçamento inextricável entre o surgimento de um sujeito autônomo e singular, legitimado pelo desenvolvimento de um saber tecnocientífico comprovadamente eficaz, e uma nova relação com o tempo que concebe o futuro como produto das mudanças realizadas no presente. Estes três acontecimentos inseparáveis – o desenvolvimento tecnocientífico como desencadeador de mudanças, o sujeito como modo de ser do homem, e a mudança como possibilidade de sonhar com o futuro – forneceram o terreno fértil para a narrativa de ficção científica.

A ficção científica permanece fiel ao evento que lhe deu origem e suas obras atualizam e afirmam o modo de interrogação da cultura moderna. Entretanto, enquanto a Modernidade adotou a “flecha do tempo” e fronteiras que distinguiam entre natural e artificial, pensante e não-pensante, real e ficção, a ficção científica optou pela dissolução das fronteiras entre homens, animais e máquinas e esmaecimento dos limites entre ciências humanas, sociais e naturais, doando a suas narrativas o caráter múltiplo da experiência.

A Modernidade forneceu as condições de nascimento da ficção científica, mas não conseguiu pensá-la. Ao erigir fronteiras entre homens, animais e máquinas, o pensamento moderno tratou a tecnologia como instrumento de alienação ou libertação do indivíduo, mas nunca como algo que se imbrica com os modos de subjetivação e faz repensar os limites entre o humano e a técnica. A Modernidade não apenas propicia as condições de aparecimento da ficção científica quanto ela mesma é uma narrativa: uma metanarrativa. O pensamento esclarecido também sonhou com um outro ser – o sujeito civilizado e emancipado – e um outro mundo – a sociedade democrática no futuro. As mudanças sonhadas pela Modernidade – a emancipação do homem pela razão, a construção de organizações sociais democráticas e o controle da natureza pela ciência – eram a narrativa única e linear pretendida pelos modernos. Enquanto pensadores e cientistas buscam as condições de concretização da Utopia Moderna por meio da antecipação do futuro, os escritores de ficção científica narram as outras utopias, distopias e heterotopias possibilitadas pelas mudanças de perspectivas nos campos da subjetividade, da tecnociência ou por outras configurações de espaço e tempo. Já no século XIX surgem histórias sobre viagens no tempo, aventuras em planetas distantes, novas tecnologias de transporte (balões e submarinos) e de comunicação (rádio), máquinas inteligentes, experimentos biológicos com animais e homens, entre outros temas.

Podemos compreender o desajuste teórico entre a ficção científica e o pensamento moderno. A FC só poderia surgir em uma cultura cujas mudanças eram em grande parte impulsionadas pelo aparato tecnocientífico. Mas, como Bruno Latour esclarece em Jamais fomos modernos (1994), os pensadores modernos, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que criaram as condições de produção de seres híbridos, abstiveram-se de analisá-los, uma vez que haviam separado a ciência da cultura. Narrar as novas possibilidades de existência na sociedade científica foi precisamente a tarefa que a ficção científica tomou para si. Uma segunda inadequação refere-se à própria proposta da FC. A Modernidade condenou toda a ficção ao campo do falso e do não-factual. Para a nomenclatura moderna, a literatura não sendo verdadeira pode apenas produzir efeitos de verdade. Uma ficção que se pretende “científica” parece não compreender a contradição implícita nos dois termos: a liberdade proporcionada pela ficção e o rigor exigido pela ciência.

As obras de FC narram a dissolução de fronteiras entre humano e não-humano, factual e ficcional, visível e invisível, ciências humanas e teórico-experimentais, o que confere o caráter múltiplo de suas histórias e temas. A ficção científica herdou das narrativas de viagens extraordinárias a interrogação, de caráter filosófico, sobre “o que é o humano?”. Desde então dedica-se a indagar sobre o lugar do homem no mundo a partir da tríade – subjetividade, desenvolvimento tecnocientífico e futuro – cujas condições foram forjadas em seu nascimento, na Modernidade.

O momento atual caracteriza-se pela expansão mundial da tecnologia e pelo esmaecimento de fronteiras que tem propiciado novas condições de possibilidade de subjetividade e novos espaços (ciberespaço e realidade virtual) para a experiência humana. Por reconfigurar as possibilidades de experiência dos homens e do mundo, a sociedade atual gera uma abertura para as multiplicidades, permitindo hibridismos e sombreamentos nas fronteiras modernas. A ficção científica, como o gênero que investiga os modos de produção de subjetividade em uma sociedade tecnocientífica, parece tornar-se a ficção da atualidade, ganhando respeitabilidade no mundo acadêmico.

Fátima Régis de Oliveira é professora adjunta e coordenadora da linha de pesquisa Novas Tecnologias e Cultura do Mestrado em Comunicação da Faculdade de Comunicação Social/UERJ.

* Este artigo se baseia em idéias desenvolvidas na tese de doutorado Nós, ciborgues: a ficção científica como narrativa da subjetividade homem-máquina, defendida em maio de 2002 na ECO/UFRJ.

Referências bibliográficas

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

TAVARES, Bráulio. O que é ficção científica. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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Atualizado em 10/10/2004

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