http://www.comciencia.br/reportagens/2004/09/01.shtml
Autor: Carlos Vogt |
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A universidade e seus desafios* Carlos Vogt I Um dos grandes desafios do mundo contemporâneo é, ao lado do chamado desenvolvimento sustentável, o da transformação do conhecimento em riqueza. Como estabelecer padrões de produção e de consumo que atendam às demandas das populações crescentes em todos os cantos da Terra, preservando a qualidade de vida e o equilíbrio do meio ambiente no planeta? Esta é, em resumo, a pergunta que nos põe o assim chamado desafio ecológico. Como transformar conhecimento em valor econômico e social, ou, num dos jargões comuns ao nosso tempo, como agregar valor ao conhecimento? Responder a esta pergunta é aceitar o segundo desafio acima mencionado e que poderíamos chamar de desafio tecnológico. Para enfrentar este desafio, próprio do que também se convencionou chamar economia do conhecimento ou sociedade do conhecimento, deveríamos estar preparados, entre outras coisas, para cumprir todo o ciclo de evoluções e de transformações do conhecimento que vai da pesquisa básica, produzida nas universidades e nas instituições afins, passa pela pesquisa aplicada e resulta em inovação tecnológica capaz de agregar valor comercial, isto é, em produto de mercado. Os atores principais deste momento do processo do conhecimento já não são mais as universidades, mas as empresas. Entretanto, para que a atuação das empresas seja eficaz, é necessário que tenham no seu interior, como parte de sua política de desenvolvimento, centros de pesquisa próprios ou consorciados com outras empresas e com laboratórios de universidades. O importante é que a política de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) seja da empresa e vise suas finalidades comercialmente competitivas sem o que não há o desafio do mercado, não há avanço tecnológico e não há, por fim, inovação no produto. Um dos pressupostos essenciais da chamada sociedade ou economia do conhecimento é, pois, para muito além da capacidade de produção e de reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico e, através dele, inovar constantemente para um mercado ávido de novidades e nervoso nas exigências de consumo. Diz-se que, à diferença da economia tipicamente industrial, cuja lógica de produção era multiplicar o mesmo produto massificando-o para um número cada vez maior de consumidores, na sociedade do conhecimento essa lógica de produção tem o sinal invertido: multiplicar cada vez mais o produto, num processo de constante diferenciação, para o mesmo segmento e o mesmo número de consumidores. Daí, entre outras coisas, a importância para esse mercado, da pesquisa e da inovação tecnológicas. A ser verdade essa troca de sinais, a lógica de produção do mundo contemporâneo seria não só inversa, mas também perversa, já que resultaria num processo sistemático de exclusão social, tanto pelo lado da participação na riqueza produzida, dada a sua concentração – inevitável para uns e insuportável para muitos –, quanto pelo lado do acesso aos bens, serviços e facilidades por ela gerados, isto é, o acesso ao consumo dos produtos do conhecimento tecnológico e inovador. Desse modo, aos desafios enunciados logo no início, é preciso acrescentar um outro, tão urgente de necessidade quanto os outros dois: o de que, no afã do utilitarismo prático de tudo converter em valor econômico, tal qual um Rei Midas que na lenda tudo transformava em ouro pelo simples toque, não percamos de vista os fundamentos éticos, estéticos e sociais sobre os quais se assenta a própria possibilidade do conhecimento e de seus avanços. Verdade, Beleza e Bondade, no mínimo, dão ao homem, como já se escreveu, a ilusão de que, por elas, ele escapa da própria escravidão humana. Dividir a riqueza, fruto do conhecimento, e socializar o acesso aos seus benefícios, frutos da tecnologia e da inovação é, pois, o terceiro grande desafio que devemos enfrentar. Quem sabe, possa ele constituir a utopia indispensável ao tecido do sonho de solidariedade das sociedades contemporâneas. II Alison Wolf, professor de educação na Universidade de Londres, no livro Does education matter? Myths about education and economic growth (A educação importa? Mitos sobre a educação e o crescimento econômico), a propósito do sistema educacional britânico, chama a atenção para o risco de se tratar a questão apenas do ponto de vista quantitativo e dentro de uma lógica de causalidade simplista entre educação e crescimento econômico. Sem propósitos culturais, morais e intelectuais, a educação perde seu caráter civilizatório e reduz-se a mero expediente de oportunidade, e mesmo de oportunismo social na competição desenfreada pelas vagas do mercado. Para diminuir esse aspecto utilitarista da cultura e da educação é preciso aumentar a oferta de trabalho, reduzindo as conseqüências perversamente sistemáticas das economias globalizadas no que diz respeito à distribuição de renda e à justiça social. Para países como o Brasil, ainda em passo de emergência, o problema se agrava, entre outras coisas, pelo baixo índice de produção tecnológica e de inovação competitiva nos mercados internacionais, por falta de agregação de valor à maioria de nossos produtos de exportação. Desse modo, cumpre-nos, mais do que nunca, a todos os atores sociais ligados à educação e à produção científica e tecnológica, governos, instituições de ensino e de pesquisa, agências de fomento, a sociedade civil, como um todo, trabalharmos pela universalização do acesso ao conhecimento, com propostas eficazes para solucionar, em número e em qualidade, esta que é a expressão mais grave da alta concentração da riqueza, de um lado, e da disseminação globalizada da pobreza material e do desespero espiritual, de outro: a exclusão social. III Quanto ao sistema de ensino superior, no Brasil, este tem pela frente desafios que não podem ser adiados sob pena de que ele venha a ser fragilizado e perca conquistas importantes que ao longo dos anos foram sendo incorporadas ao seu funcionamento. O primeiro desses desafios diz respeito à urgente necessidade de se ampliar o mercado de trabalho, tanto acadêmico, quanto empresarial, no Brasil, para que possam ser absorvidos os mestres e doutores que, a cada ano se formam em número cada vez maior pelas nossas universidades ou por programas no exterior. No ano de 2000 foram 5.335 doutores e 18.132 mestres. Em 2001, 6.042 doutores e 19.630 mestres. Em 2002, foram 6.843 doutores e 22.735 mestres e em 2003, 25.978 mestres e 8.094 doutores. Dos 5.335 doutores formados em 2000, menos da metade tem vínculo de trabalho. Esses números tendem a aumentar, tanto pelo lado dos que se formam quanto pelos que, titulados, não encontram trabalho formal em universidades ou em centros de pesquisa acadêmicos ou empresariais. A apreensão entre os que estudam fora do país é também crescente pois não vêem, com a perspectiva da volta, possibilidade de encontro de trabalho nas áreas de sua formação e de sua competência. O assunto é, pois, urgente e é com urgência que é preciso motivar o nosso mercado empresarial para o problema: sem pesquisadores nas empresas não há inovação tecnológica, nem inovação de produtos e, em conseqüência, não há competitividade e o país fica a ver navios, não os que exportam o que produzimos, mas os que chegam para trazer o que importamos. Enquanto, é claro, pudermos pagar. O segundo desafio, que se liga ao desafio anterior, pelo menos no que diz respeito à expansão do mercado acadêmico, é a da qualidade do ensino oferecido pelo sistema privado de universidades no Brasil. Como se sabe, além do baixo índice populacional na faixa de 18 a 24 anos com matrícula em cursos superiores (cerca de 11% apenas), 65% do total dessas matrículas estão em instituições privadas. Quando considerado apenas o estado de São Paulo este número sobe para algo em torno de 84%. Se tomarmos, por exemplo, o ano de 2000 e considerarmos o número de doutores nas instituições usuárias e, o número de projetos na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), tem-se, contudo, um quadro aproximativo em que se sobressai, de modo espetacular, o sistema público de ensino superior, conforme se pode verificar pelos dados abaixo: Instituições superiores de ensino e de pesquisa no estado de São Paulo Número de doutores e de projetos Fapesp
Algo disso tem, sem dúvida, a ver com a estrutura jurídico-institucional do sistema privado de ensino superior, profundamente comprometido, de um modo geral, com os aspectos comerciais da educação como negócio e, conseqüentemente, com os fins lucrativos do empreendimento. É preciso dar definitivamente um sentido público ao sistema de ensino superior, como um todo, que é, por definição, um bem público. Transformar a estrutura jurídico-institucional do ensino superior privado no país e dar-lhe um caráter eminentemente fundacional, sem fins lucrativos, é, pois, desafio premente e tarefa inadiável. E é claro, para que não haja solução de continuidade, por resistências e lobbies corporativos e por vazios de financiamento, pode-se legislar para frente, o que já seria uma mudança de qualidade enorme no quadro institucional de nossas universidades e uma condição de qualidade sem precedentes aos requisitos de funcionamento de nossas escolas superiores. E para que não se invoquem argumentos privatistas baseados na experiência de outros países, é bom que se diga, desde logo, que na Inglaterra 99% dos alunos estão em universidades públicas, na França, 92,2% e nos Estados Unidos, avocado sempre como campeão do privativismo, 78%, como se pode ver pelo quadro abaixo:
No âmbito das condições estruturais de funcionamento das universidades públicas federais, é sempre oportuno lembrar a necessidade, até agora reconhecida mas de solução sempre postergada, de constituir-se a sua autonomia de gestão financeira, experiência que por mais de uma década vem sendo levada a efeito pelas universidades estaduais paulistas com resultados que, podendo ser continuamente melhorados nos ajustes finos, têm-se mostrado, contudo, conceitual, metodológica e operacionalmente eficientes, eficazes e de alta relevância para a qualidade do ensino da pesquisa e dos serviços prestados pela USP, pela Unicamp e pela Unesp. Ligado à essa falta de autonomia de gestão financeira, apresenta-se o problema crônico da total falta de uma política de recursos humanos para as universidades federais que se reflete de forma poderosamente negativa na política salarial dessas instituições que, padecendo ainda de um outro mal endêmico – o da carência de políticas regulares e sistemáticas de fomento –, correm o sério risco de não só terem comprometidas suas atividades fim, como o de, por isso, comprometerem, sem volta, qualquer iniciativa de planejamento programático do setor de ciência, tecnologia e inovação. A imprensa, de um modo geral, tem dedicado atenção particular ao momento delicado por que passa o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) no Brasil. E mais delicado ainda, quando se considera que, sem dúvida alguma, se trata do melhor e mais bem montado sistema da América Latina, o que colabora para pôr em evidência os problemas por que estamos passando. As universidades federais espalhadas pelos estados brasileiros continuam a viver momentos críticos e de apreensão em virtude do atraso de repasses, e das indefinições quanto às prioridades do Ministério da Educação para o ensino no país, quanto à sua situação jurídico-institucional no que diz respeito à autonomia de gestão financeira, quanto ao valor dos salários que permanece praticamente o mesmo há vários anos e quanto à própria situação de instabilidade criada pelas novas formas de aposentadoria propostas na reforma previdenciária. Os fundos setoriais, que são parte importante desse desenho original e criativo do sistema de C,T&I brasileiro, em 2002, não conseguiram executar, no geral, mais do que 20% dos recursos que se anunciavam quando de sua criação. O fato é que a irregularidade econômico-financeira constante acaba por gerar a assistematicidade técnica do sistema, de modo que o que era ótimo virtualmente acaba por ser menos que sofrível na realidade. O outro efeito perverso, decorrente do mesmo fenômeno, é a total falta de possibilidade de qualquer planejamento, efeito esse que perpassa, como uma corrente de alta voltagem, negativa, toda a espinha dorsal do sistema, desde a sua arquitetura organizatória, no centro, até a execução, pelos usuários dos programas financeiros, nas pontas. Embora não seja condição suficiente para solucionar esses problemas, a autonomia de gestão financeira dessas instituições é, contudo, condição necessária para deles tratar de forma adequada e eficaz. A experiência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), criada, no estado, em 1962, e das universidades estaduais paulistas, desde 1989, mostram o acerto e a justeza das decisões que instituíram a sua plena e total autonomia de gestão financeira. No caso da Fapesp, que recebe, por lei constitucional, 1% da receita tributária do estado ao longo de seus 40 anos de existência, a possibilidade de seu bom funcionamento está diretamente ligada à sua autonomia e, conseqüentemente, à sua capacidade de planejamento e de provisionamento dos projetos concedidos e das despesas contratadas. Com autonomia e planejamento a Fapesp tem conseguido, juntamente com a comunidade científica paulista, responsável por mais de 50% da produção brasileira no setor, singrar o mar revolto das adversidades conjunturais e estruturais da nossa economia e navegar, com expectativa confiante, para mares mais propícios de estabilidade nos cenários futuros do país. Nesse sentido, não é demais lembrar que, embora não seja panacéia, adotar a autonomia de gestão financeira das instituições federais de fomento à pesquisa, como o CNPq, e também das universidades públicas federais, seria uma boa iniciativa em qualquer governo e uma boa forma de iniciar, na prática, um bom diálogo com a comunidade científica nacional que há muitos anos luta, reclama e propugna por ela. * Este artigo é uma refundição de pequenos artigos produzidos para diferentes veículos de comunicação e foi, assim refundido, apresentado no seminário “Universidade: por que e como reformar?”, realizado em Brasília, dias 06 e 07 de agosto de 2003, e publicado In: Morhy, Lauro (org). Universidade em questão, Brasília: editora UnB, 2003. |
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Atualizado em 10/09/2004 |
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