Avança
o conhecimento sobre rã comestível
Quando não há o que comer, as famílias brasileiras
de baixa renda têm que improvisar. O gato do vizinho pode
ser um recurso, “mas é meio rançoso”,
conta Célia da Costa, do sertão da Bahia. “Outra
coisa que a gente come bastante á a jia, que aqui [em São
Paulo] se
chama rã-pimenta, e isso sim é muito bom”,
diz ela. Em certos países, como a França, carne
de rã é considerada um alimento refinado por ser
delicada, saborosa e nutritiva. Devido à quase ausência
de colesterol e baixo teor de calorias, essa carne é recomendada
para pessoas com diversos problemas de saúde, como alergias
ou problemas cardiovasculares. Apesar de ocorrer em boa parte
do território brasileiro, a biologia da rã-pimenta
é ainda muito pouco conhecida. Artigo publicado na última
edição da revista especializada Herpetological
Journal (volume 15, número 4) revela particularidades
do ciclo de vida do anfíbio, e ajuda a reduzir essa lacuna
de informação. As descobertas, além de melhorar
o conhecimento de nossa fauna, são essenciais para o desenvolvimento
da criação dessa espécie em cativeiro.
Legenda: Rã-pimenta, cuja carne é
muito apreciada em algumas regiões do Brasil. Foto: Felipe
Toledo
Ranários
brasileiros produzem cerca de 400 toneladas de carne de rã
por ano, da qual boa parte é exportada, sobretudo, para
os Estados Unidos e a França. O comércio interno
é em parte restrito pelo preço, que no atacado varia
entre R$ 20 e 27 por quilo, e no varejo chega a R$ 40. Para reduzir
esse valor, a especialista em técnicas criatórias
de rãs Cláudia Maris Ferreira Mostério, do
Instituto de Pesca/Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios
(APTA), afirma que pesquisadores e produtores têm trabalhado
em parceria para tentar maximizar o processamento de carne e o
aproveitamento de subprodutos, assim como reduzir o preço
das rações utilizadas.
A
espécie cultivada no Brasil é a rã-touro
(Rana catesbeiana), nativa dos Estados Unidos. No entanto, a rã-pimenta
brasileira (Leptodactylus labirinthicus), reconhecidamente, tem
ótimo sabor e é até mais rica em proteína
(veja tabela
com valores nutricionais desta e outras rãs). “É
uma espécie importante, pois é consumida por muita
gente”, diz Célio Haddad, da Universidade Estadual
Paulista (Unesp) de Rio Claro. Seu consumo, porém, é
restrito à caça, pois ela não é produzida
comercialmente.
De acordo com Cláudia Mostério, durante os anos
1980 foram feitas tentativas de cultivo da rã-pimenta em
escala comercial, mas a prática foi abandonada pela produtividade
muito maior da rã-touro. A rã norte-americana produz
cerca de 5 mil ovos por postura, 5 vezes mais do que sua contrapartida
brasileira; além disso, chega ao tamanho de abate mais
depressa e é mais estudada. No entanto, os pesquisadores
defendem que o cultivo da rã-pimenta teria a vantagem de
valorizar produtos nacionais, além de minimizar a introdução
de espécies exóticas, que podem causar importantes
danos ecológicos aos animais nativos. A especialista acredita
a criação da espécie brasileira seria aceita
pelo Ibama, desde que baseada em estudos bem fundamentados.
A
fêmea de rã-pimenta põe seus ovos em ninhos
de espuma que constrói em conjunto com o macho, na lama
próxima a áreas alagadas. A construção
feita pelo casal é novidade, mas a grande particularidade
está nos ovos depositados, dos quais somente 3 a 11% são
fertilizados. Os demais são chamados ovos tróficos,
destinados à alimentação dos girinos e que
foram provavelmente postos pela fêmea após a partida
do macho. A pesquisa realizada por Cynthia Prado e colaboradores,
todos do Laboratório de Herpetologia da Unesp de Rio Claro,
mostra que esses ovos tróficos são importantes no
crescimento e desenvolvimento dos girinos que nascem dos ovos
fertilizados.
Legenda: Girinos de rã-pimenta em ninho
de espuma. Foto: Felipe
Toledo
Prado
explica que quando chove, o ninho é carregado para a lagoa
adjacente, porém, chuvas imprevisíveis podem forçar
os girinos a permanecerem muitos dias sem alimentação
adicional e, portanto, os ovos não fertilizados podem ser
a única fonte de alimento para eles. A pesquisadora comparou,
em experimento, três grupos de girinos que receberam, respectivamente,
ovos tróficos, ração para peixe, e que tiveram
suplemento de ração para peixe após terem
consumido esses ovos. Os resultados indicam que os girinos sem
adição de alimento cresceram pouco após 12
dias, e em sua grande maioria não chegaram a metamorfosear-se
e aqueles que se desenvolveram em ninho com ovos tróficos
tiveram um crescimento significativamente maior em relação
aos que se alimentaram somente de ração. Esses dados
mostram que a oofagia (consumo de ovos) não é imprescindível
para girinos da rã-pimenta, mas contribui muito para o
crescimento e a sobrevivência dos girinos.