Diálogo
entre ciência e religião pode minimizar oposição
histórica
Em nossa cultura, até hoje é comum pensar que religião
e ciência não podem dialogar e ainda predomina a
contraposição entre crença e saber. Na avaliação
da filósofa e historiadora da ciência, Celina Lértora,
do Conselho Nacional de Investigações Científicas
e Técnicas da Argentina (Conicet), no entanto, trata-se
de um erro de perspectiva e esta idéia deve ser superada:
"Até hoje muitos cientistas ainda acreditam que a
religião é autoritária e contrária
aos escritos científicos, e por outro lado os religiosos
vêem a ciência como algo perigoso para a religião".
A pesquisadora proferiu a palestra A crença da racionalidade
e a racionalidade nas crenças, organizada pelo Centro
Cardeal Arns de Estudos Interdisciplinares (Cecrei),
na PUC de São Paulo, no final de outubro, na qual também
defendeu o diálogo da ciência com outros campos do
conhecimento, como a filosofia, para a superação
de polêmicas em torno de temas atuais (como eutanásia,
clonagem e uso de células-tronco).
Autora do livro Dialética medieval ou a arte de discutir
cientificamente, a filósofa tem participado de vários
congressos mundiais sobre a relação entre filosofia,
ciência e teologia ao longo da história, e propõe
que a ciência deve relacionar-se com outras disciplinas
do conhecimento por meio de novas perspectivas de estudo. "A
interdisciplinaridade é um campo difícil, mas traz
importantes motivações e desafios a todos os que
aspiram trabalhar por um mundo melhor, no qual a ciência
tenha o seu lugar, mas também seja capaz de elaborar algumas
vias originais para superar suas limitações",
diz. Neste sentido, ela propõe também uma aproximação
da ciência com formas de conhecimento ligadas à cultura
popular. "Existem alguns saberes intimamente ligados às
nossas necessidades de compreensão do mundo, mas desvalorizados,
porque são difíceis de serem caracterizados como
científicos", afirma.
Todos os aspectos do ser humano, de acordo com Celina Lértora,
precisam ser estudados, sem que razão e afetividade precisem
se separar. "A paixão, a confiança e a crença
em melhorar o mundo podem, por exemplo, estar presentes tanto
no cientista motivado por uma grande pesquisa, quanto no religioso
que acredita na melhora do ser humano por meio de sua doutrina",
compara.
Retomando alguns autores da Antiguidade, a pesquisadora explica
que, ao longo da história, algumas teorias tentaram justificar
a racionalidade das crenças humanas. "O filósofo
Platão, por exemplo, interpreta a crença como um
resto de irracionalidade que ainda permanece no ser humano",
conta. Já o filósofos cristão São
Tomás de Aquino (1227-1274) pensava não ser possível
existir o saber e o crer numa mesma consciência pessoal.
Para ele, não se pode acreditar em algo que já se
sabe.
Na avaliação da filósofa, o cientificismo
do século XIX definiu a razão de forma muito estreita
e apenas no século XX, começaram a surgir novas
idéias que superaram a concepção de dicotomia
entre crença e razão. Neste sentido, a concepção
intimista, surgida da psicologia, da antropologia histórica
e cultural, começou a modificar esse ponto de vista, levando
à conclusão de que as crenças são
importantes componentes da vida. "Nesse período, a
subjetividade começa a ser vista como fundação
do conhecimento, ou seja, o ser humano atua no mundo porque acredita
que assim é possível fazer", diz Lértora.
Somente no século XX, alguns cientistas sociais passaram
a entender que quando se atua em função de uma crença,
mesmo que não seja real, se produz uma realidade.
No imaginário coletivo, no entanto, ainda predomina a oposição
entre ciência e religião. "É natural
que um certo conflito sempre exista neste campo e não vai
ser eliminado de forma absoluta, porque é produto da complexidade
humana", prevê a pesquisadora que lamenta o fato das
diferenças não serem respeitadas ou serem mesmo
reduzidas a mera irracionalidade, como no caso da religião.
Para saber mais:
- Reportagem
da ComCiência sobre ciência e religião