Eleitorado
terá participação direta na legislação sobre comércio de armas
A partir do dia 8 de setembro, o Tribunal Superior Eleitoral pode
requisitar 15 minutos de emissoras de rádio e televisão
para divulgar comunicados, boletins e instruções
ao eleitorado sobre o referendo que irá decidir pela proibição
ou não do comércio de armas no Brasil. Enquanto
as frentes pró e contra a proibição se preparam
para defender seus argumentos nas propagandas gratuitas, que começam
no dia 23 de setembro, o eleitor pode estar se perguntando: “O
que faz com que uma questão de interesse nacional seja
levada a consulta popular? Por que o voto é obrigatório?
E quanto custa essa campanha?”.
A
Constituição de 1988 prevê em seu artigo 14
três formas de participação direta da população
no processo legislativo: o plebiscito, o referendo e o projeto
de lei de iniciativa popular. Este último requer um número
mínimo de assinaturas correspondente a um por cento do
eleitorado nacional, distribuídos por pelo menos cinco
estados, para ser apresentado à Câmara dos Deputados
(aproximadamente 1,2 milhão de assinaturas). Foi uma iniciativa
como essa, liderada pela ONG Viva Rio, que desencadeou a discussão
sobre o Estatuto
do Desarmamento (lei 10.826), aprovado pelo Congresso Nacional
e sancionado pelo presidente Lula em dezembro de 2003.
“O
Viva Rio conseguiu uma proeza muito grande, que é recolher
mais de um milhão de assinaturas em favor do desarmamento
e, além disso, ainda promover uma série de outras
campanhas menores para manter o tema na mídia”, afirma
a antropóloga Ana Paula Moraes, que estudou em seu mestrado,
no Museu Nacional da UFRJ, a campanha “Rio Abaixe essa Arma”,
promovida pelo Viva Rio. Segundo Moraes, o que leva uma ação
popular a tamanha adesão é o que os pesquisadores
chamam de “mito da virtude pura” associado às
ONGs. “Elas são uma forma muito popular de participação
da sociedade
civil organizada. A elas são atribuídas características
como legitimidade, representatividade e honestidade, por isso
as pessoas estão dispostas a participar de atividades que
envolvam ONGs”, observa a pesquisadora.
Apesar
do respaldo popular conferido pelas assinaturas obtidas pelo Viva
Rio, o Estatuto do Desarmamento passou por diversas alterações,
antes de ser aprovado – como o item que prevê a liberação
do porte de arma para guardas municipais de cidades com menos
de 500 mil habitantes –, e alguns pontos da lei não
tiveram consenso entre os parlamentares, especialmente o que trata
da proibição do comércio de armas no país.
A deputada federal Denise Frossard (PPS-RJ), por exemplo, que
é juíza aposentada, não é contra o
desarmamento mas acredita que a mera proibição pode
aumentar o comércio clandestino de armas. Entre os que
contribuíram para a campanha que a elegeu deputada está
a empresa de munições Companhia Brasileira de Cartuchos.
Somando o desempenho de outra grande empresa do setor, a Taurus-Rossi,
elas faturaram juntas cerca de R$ 400 milhões em 2004.
A
conjugação da falta de consenso parlamentar com
o apelo popular da questão levou os congressistas a estipularem
nas disposições finais da lei 10.826 que o dispositivo
que proíbe a comercialização de arma de fogo
e munição em território nacional depende
de aprovação em referendo popular a ser realizado
em outubro de 2005. Trata-se de uma consulta à população,
convocada por decreto, para referendar ou não algum ato
legislativo já existente (no caso, o artigo 35 do Estatuto
do Desarmamento). Em julho deste ano, o Congresso Nacional aprovou
o decreto nº 780, que autoriza o referendo acerca da proibição
do comércio de armas. Como em qualquer outra eleição
no Brasil, o voto de outubro é obrigatório para
eleitores entre 18 e 70 anos. “A obrigatoriedade do voto
faz parte do modelo de democracia imposta no país, mesmo
que imposição e democracia não combinem muito”,
comenta Moraes. Nas eleições presidenciais de 2002,
o índice de abstenções – ausência
justificada – chegou a 20% do eleitorado.
Mesmo
com o apelo popular, estimulado pela campanha pelo desarmamento
promovida pelo governo federal e amplamente divulgada pela mídia,
o próprio decreto que autoriza o referendo também
encontrou resistência entre parlamentares antes de ser aprovado.
O deputado Alberto Fraga (PMDB-DF), ex-policial militar, era um
dos que questionavam o alto custo do referendo, que segundo ele,
seria o mesmo das eleições de 2004, em torno de
R$ 519 milhões. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), ministro Carlos Velloso, porém, calculou em R$ 250
milhões o custo total, e disse que o TSE vai aproveitar
a ocasião para recadastrar os mais de 120 milhões
de eleitores aptos a votar.
Outras
experiências de participação popular
Ao contrário do referendo, o plebiscito é uma consulta
popular – também convocada por decreto – que
antecede o ato legislativo. O plebiscito mais recente, no Brasil,
foi realizado em 1993 para decidir a forma e o sistema de governo.
Mas antes mesmo da Constituição de 1988, a população
já havia sido consultada sobre a forma de governo no país:
em 1961, após a renúncia do presidente Jânio
Quadros, uma mesma emenda constitucional aprovada pelo Congresso
Nacional (a de nº 4), garantiu a posse de João Goulart
na presidência da República e instituiu o parlamentarismo
no país; em 1963, foi feita uma consulta à população
sobre a manutenção ou não do sistema de governo,
e o eleitorado decidiu pelo retorno ao presidencialismo.
Na
Europa,
os exemplos de consultas populares sobre atos legislativos são
ainda mais recentes: alguns países, antes de ratificarem
a Constituição Européia, realizaram referendos.
Em junho deste ano, a vitória do “não”
à ratificação na França gerou o pedido
de demissão do primeiro ministro, Jean-Pierre Raffarin,
que não foi aceito pelo presidente Jacques Chirac. Na Holanda,
onde o voto ao “não” foi ainda mais expressivo,
o governo acabou retirando do parlamento a proposta de ratificação
da Constituição. Em 1994, os uruguaios também
foram às urnas em um referendo popular, e 67% disseram
“não” à pergunta sobre a necessidade
de reforma da Constituição do país, que se
tivesse sido aprovada, teria fortalecido o lobby em torno da possibilidade
de reeleição de presidente e deputados, defendida
pelos favoráveis à reforma.