Medicina tradicional
ainda tem pouco espaço nas políticas de saúde indígena
Os conhecimentos médicos que os povos indígenas possuem têm
despertado interesses no mundo inteiro. Nunca se pesquisou tanto sobre os usos
que esses povos fazem da biodiversidade em suas práticas médicas.
Recentemente, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa)
anunciou que parte dos U$50 milhões para os próximos 4 anos da verba
do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird)
será voltada ao financiamento de projetos em medicina tradicional indígena.
Embora já existam algumas iniciativas, de criar projetos e destinar recursos,
os conhecimentos tradicionais ainda têm pouco espaço nas políticas
de saúde voltadas às próprias comunidades indígenas.
Renato
Athias, antropólogo da Universidade Federal de Pernambuco participa de
reuniões com profissionais de saúde e representantes das comunidades
indígenas no Alto Rio Negro e constatou que "o diálogo entre
a medicina ocidental e a medicina tradicional ainda é raro. O saber médico
ocidental ainda se apresenta como um saber técnico, superior às
outras formas de saber e que, geralmente, não está instrumentalizado
para perceber as diferenças em relação a outros saberes".
Há
um esforço concentrado de alguns pesquisadores brasileiros em mostrar que
as relações entre os dados biomédicos e as representações
de doenças feitas pelas comunidades indígenas não é
arbitrária, mas funda-se na observação exaustiva dos traços
distintivos das doenças. Xamãs, curandeiras, pajés e benzedeiras
elaboram um conhecimento classificatório e distinguem as enfermidades a
partir de todo seu universo e entendimento. Dessa forma, os povos indígenas
criam suas formas próprias de identificar, classificar e curar as doenças,
ou seja, fazem uma verdadeira análise etiológica das doenças.
Para Athias "o profissional médico precisa estar aberto a entender
essas outras formas classificatórias da doença, outras etiologias,
outros sistemas médicos. Mas isso passa pela valorização
dos saberes que envolvem essas práticas e o reconhecimento, entre outros
aspectos, de que não há uma medicina indígena, mas medicinas
indígenas".
O
antropólogo acredita que as possibilidades de diálogo entre o saber
médico ocidental e o indígena passam pela valorização
e reconhecimento da legitimidade e diferença dos conhecimentos dos povos
indígenas. "O saber médico geralmente está voltado para
o funcionamento do corpo biológico, já o saber tradicional indígena
leva em consideração questões relacionadas ao corpo e fora
do corpo, como o espírito", exemplifica. Os Tukano
(denominação que engloba diferentes etnias como os Desana, Arapaso,
Barasana e Bará) no Alto Rio Negro associam a Leishmaniose, por exemplo,
a um grupo de doenças que são causadas pelo descumprimento de procedimentos
que a pessoa deveria ter feito e não fez. A comunidade acredita que a doença
não foi introduzida, mas sempre esteve presente na região e sempre
existiu tratamento, que às vezes dá certo e outras vezes não.
As práticas de cura da Leishmaniose estão associadas a interdições
sexuais. Já a tuberculose é uma doença que não tem
cura, que está fora das ações de um pajé, de um xamã.
Trata-se de uma doença associada a um malefício de fora, enviado
por alguém. "Conversando com os profissionais médicos percebe-se
que os índios dificilmente se curam dessa enfermidade. Os tratamentos não
são levados a sério por eles porque há, antes da morte biológica,
uma morte social. Eles acham que já estão mortos", relata o
pesquisador.
André
Fernando, Baniwa
e atual vice-presidente da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (FOIRN), comenta que, atualmente o reconhecimento
e a valorização dos saberes indígenas passa não apenas
pelos médicos e gestores na área de saúde, mas pelas próprios
povos indígenas. "Entre nós hoje existem muitos que valorizam
muito mais os produtos industrializados em vidrinhos. Isso se deve ao processo
de colonização dos nossos povos, mas também as práticas
dos profissionais de saúde, cuja formação acadêmica
ignora a origem vegetal, animal e mineral desses remédios, e acaba por
reforçar a discriminação contra os conhecimentos tradicionais",
acredita.
Embora
a Funasa tenha iniciativas
que valorizam o conhecimento tradicional indígena, Fernando lamenta que
não exista nenhuma iniciativa dessa natureza no Baixo, Médio e Alto
Rio Negro. Critica também, a alta rotatividade dos profissionais de saúde
da Funasa, que dificulta o estabelecimento de um diálogo efetivo entre
medicina ocidental e tradicional. "O repasse irregular de recursos gera uma
instabilidade no emprego de médicos e agentes de saúde. Quando avançamos
no processo de diálogo, eles vão embora e chega um novo, ainda 'cru'.
Precisamos lembrar que a relação entre saberes pressupõe
uma relação entre pessoas, cuja formação e experiência
de vida são muito distintas. Isso leva tempo", conclui.
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Há luz no fim do túnel? Conhecimento tradicional e perspectivas
de mudanças na política indigenista brasileira.
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Contas de vidro, enfeites de branco e "potes de malária": epidemiologia
e representações de doenças infecciosas entre os Desana.
Artigo de Dominique Buchillet publicado no site da Universidade de Brasília.
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ATHIAS, Renato. Doença e cura: sistema médico e representação
entre os hupdë-maku da região do rio negro, amazonas. Horizontes antropológicos:
corpo, doença e saúde. LEAL, Ondina Fachel (org.). Porto Alegre
: UFRGS, v. 4, n. 9, 1998.