Impedimentos
às pesquisas com fitoterápicos
vão além da burocracia
Durante o simpósio
"Plantas medicinais do Brasil: o pesquisador brasileiro consegue
estudá-las?", realizado nos dias 16 e 17 de junho
em São Paulo, pesquisadores assumiram em público
que estão realizando pesquisas com plantas medicinais e
produzindo fitoterápicos na ilegalidade. Segundo eles,
as regras atuais para acesso aos recursos genéticos e aos
conhecimentos tradicionais, estabelecidas pela Medida
Provisória (MP 2.186-16/2001), são rígidas
demais. Embora concordem com essas análises, empresários,
representantes indígenas, de ONGs e do governo ressaltaram
a existência de outros empecilhos que vão além
da simples oposição entre a academia e a burocracia
do Estado.
Durante o evento, João Batista Calixto,
da Universidade Federal de Santa Catarina, apresentou o mais novo
antiinflamatório produzido pela Achê, feito a partir
de erva-baleeira, uma planta nativa da Mata Atlântica, sem
nenhuma consulta e comunicação aos órgãos
responsáveis. “Se a Achê fosse procurar o Ibama
ou o Cgen [Conselho de Gestão do Patrimônio Genético]
nada teria sido feito”, declarou. Calixto provocou a mesa,
composta pela botânica Inês Cordeiro e pelo antropólogo
Mércio Pereira Gomes: “Vocês fariam o que estamos
fazendo, estudar as plantas ilegalmente, ou esperariam que em
2020, ou 2030, fosse feita uma política adequada?”.
Gomes, que atualmente é presidente da Fundação
Nacional do Índio (Funai), desaconselhou as pesquisas fora
das regras e afirmou que, em sua opinião, “o maior
problema não está na burocracia do Ibama, da Funai
ou do Cgen, mas nas concepções diferentes de índios
e cientistas, que não dialogam e emperram os processos
de negociação”. Compartilhando com essa opinião,
Alberto Hapuyhi, representante dos Krahô, ressaltou que
as dificuldades de diálogo entre os conhecimentos científicos
e indígenas ocorrem, especialmente, quando estes não
são reconhecidos. “O branco hoje quer fazer tudo
sozinho. Quando o índio aparece com o conhecimento eles
dizem: 'o índio não sabe nada não!'”,
declarou.
“É preciso pensar que a regulação
pelo Estado surgiu devido à necessidade de conter o avanço
da biopirataria”, lembrou Fernando Mathias Baptista, advogado
do Instituto Socioambiental (ISA). De acordo com ele “a
pesquisa em si não pode ser considerada biopirataria, mas
os seus desdobramentos econômicos sim”. Um caminho
que poderá minimizar os conflitos atuais, segundo Baptista,
envolve uma separação clara entre ciência
e mercado. “Nem toda pesquisa tem desdobramentos econômicos.
A exigência de um contrato entre as partes no início
é exagerada. O controle maior precisa acontecer no final
da cadeia, nos laboratórios de patentes, onde a biopirataria
de concretiza”, sugeriu.
A
criação do Fundo de Repartição dos
Benefícios, que não está em vigor na atual
MP, foi apontada por todos como uma das saídas possíveis
para a pesquisa e a produção de fitoterápicos
brasileiros. O Fundo poderia resolver os casos em que a autoria
dos conhecimentos tradicionais se torna um impasse na repartição
de benefícios. Os recursos seriam destinados aos povos
– indígenas, quilombolas e comunidades locais –
que compartilham desses conhecimentos e gerariam benefícios
por meio do financiamento de projetos, atividades de conservação
da biodiversidade e desenvolvimento sustentável nas regiões
onde se realiza o acesso ao patrimônio genético.
Contrapartidas
Gomes defendeu ainda a necessidade de colaboração
de cientistas com as comunidades, por exemplo, por meio de “convênios
de mão-dupla”, onde as universidades brasileiras,
em parceria com a Funai, abririam suas portas para a população
indígena, por sistema de cotas ou oferecimento de cursos.
As comunidades tradicionais já têm estabelecido protocolos
nos quais determinam contrapartidas não econômicas
que desejam dos pesquisadores. O advogado do ISA relatou que comunidades
indígenas do Alto do Rio Negro têm proposto um intercâmbio
de conhecimentos, o retorno do resultado das pesquisas para os
povos e a abertura da universidade para realização
de pesquisas do interesse das comunidades.
Para
o representante indígena é importante “que
as propostas de cientistas e povos indígenas tenham o mesmo
tratamento”. Isso não teria acontecido na negociação
com a Universidade Federal de São Paulo, que recusou a
proposta de desenvolver um projeto de medicina tradicional indígena
em contrapartida à possibilidade de acesso ao conhecimento
destes povos sobre as plantas medicinais (leia artigo
sobre o assunto). Mais recentemente, o Cgen autorizou
o recomeço da pesquisa "Etnobiologia, conservação
de recursos genéticos e bem-estar alimentar da comunidade
Krahô" da Embrapa, mas Hapuyhi foi incisivo: “vamos
recorrer; isso não vai ficar assim”.
A indústria de olho na mata
Apesar do contexto desfavorável, Luis Carlos Marques da
Apsen Farmacêutica acredita que as indústrias têm
um enorme interesse em desenvolver fitoterápicos, graças
ao crescimento expressivo do mercado - superando inclusive os
sintéticos-, à existência de um “ouro”
brasileiro - a biodiversidade-, mudança na mentalidade
médica, evolução na legislação
sanitária brasileira, estímulos crescentes à
aproximação entre universidade e empresa e uma maior
“conscientização da necessidade de patentes”.
Mas,
para Marques, essa parceria acaba prejudicada em função
da pequena produtividade científica, da “excessiva
liberdade de pesquisa”, da falta de recursos e de infraestrutura.
“Não alcançamos um patamar de conhecimentos
sobre certo produto porque cada um pesquisa o que quer, o que
gosta. A empresa tem que dizer o que quer e a universidade tem
que aceitar, mas isso não acontece”, afirmou.
No
final do evento, pesquisadores de nove sociedades científicas
produziram um manifesto que será enviado às autoridades.
O documento, entre outras coisas, cria uma federação
que deverá fortalecer a ação das entidades,
junto ao governo, no que se refere à pesquisa com plantas
medicinais (leia notícia
da JC email).
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conhecimento indígena