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"Bioparanóia" prejudica o debate sobre acesso aos conhecimentos tradicionais


As populações tradicionais estão cada vez mais sendo vistas pelos biólogos como empecilhos para o andamento da pesquisa científica. A afirmação foi feita por Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga da Universidade de Chicago, durante um evento comemorativo dos 50 anos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que aconteceu no dia 01 de junho na Unicamp. A antropóloga tratou desses e outros impasses relacionados à questão do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional a ele associado e afirmou: uma espécie de "bioparanóia" vem tomando conta da Amazônia a partir da animosidade crescente entre comunidades tradicionais locais - principalmente as indígenas - e biólogos que realizam pesquisas na região.

Para a antropóloga, os biólogos brasileiros tendem a recusar o conhecimento indígena, como se o conhecimento "legítimo" só pudesse surgir nos laboratórios das universidades. Essa visão faz com que muitos deles se neguem a negociar e a repartir os benefícios advindos de suas pesquisas realizadas a partir do conhecimento que as comunidades locais têm da floresta. As populações locais, por sua vez, estão se sentindo expropriadas e, por isso, colocam sob suspeita todo e qualquer pesquisador.

Carneiro da Cunha explica que essa confusão pode se refletir na aprovação do anteprojeto sobre acesso e proteção aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais, elaborado com a participação de representantes de comunidades tradicionais, comunidades científicas e de ONGs no âmbito do Conselho do Patrimônio Genético (CGEN). O anteprojeto foi enviado para a Casa Civil no final de 2003 e, desde então, sua aprovação vem sendo aguardada. Segundo Carneiro da Cunha, o Ministério da Ciência e Tecnologia, juntamente com o Ministério da Agricultura estão liderando as pressões para que o anteprojeto não seja aprovado, já que haveria nele uma ênfase na proteção para o conhecimento tradicional.

Segundo a antropóloga, o marco inaugural de toda essa polêmica foi o projeto de pesquisa sobre plantas medicinais da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e o acordo feito com uma associação representante de seis aldeias dos índios Krahô (leia artigo). As demais aldeias se sentiram lesadas e questionaram a legitimidade da associação para falar em nome de todo o povo Krahô. "A antropologia se propõe a conhecer o conhecimento dos outros, o que lhe confere um papel importante: realizar a mediação entre conhecimentos", afirma. Para ela, os antropólogos devem intervir no embate entre conhecimento tradicional e conhecimento científico buscando alterar os termos do debate e, contestando, por exemplo, certos pressupostos sobre a idéia de autoridade, de representatividade ou mesmo de propriedade para diferentes grupos indígenas.

Antropologia no Brasil e novos desafios
O evento comemorativo dos 50 anos da ABA, do qual Manuela Carneiro da Cunha fez parte, trouxe também outras mesas-redondas de destaque, discutindo a história da ABA e do seu engajamento nas questões políticas e sociais do país, e os rumos da associação diante dos desafios contemporâneos postos para a antropologia. A necessidade ética de os antropólogos compatibilizarem a atuação política característica da ABA com a capacidade de distanciamento crítico em relação aos grupos pesquisados também foi discutida. "Embora devamos ser solidários e estar em diálogo com as minorias, não podemos incorporar de forma acrítica o discurso desses movimentos", afirmou Gilberto Velho, presidente da ABA entre 1982 e 1984, e atualmente antropólogo do Museu Nacional.

Dois eventos recentes relacionados à trajetória de intervenções políticas da ABA na questão indígena foram lembrados: a discussão e a definição sobre os direitos indígenas a serem garantidos pela Constituição de 1988 e o polêmico Decreto n.o. 1775 de 1996, que estabeleceu novos procedimentos administrativos para a demarcação de terras indígenas, abrindo perigosas possibilidades de revisão das homologações que já haviam sido concedidas.

Os desafios contemporâneos postos para a associação e seus antropólogos dizem respeito justamente às mudanças envolvendo esse engajamento político tradicional. Para Miriam Grossi, antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e atual presidente da Associação Brasileira de Antropologia, a associação, que sempre exerceu o papel de representante das sociedades indígenas, está deixando de falar em nome delas."A ABA não é mais porta-voz mas uma parceira, uma interlocutora do movimento indígena que está bastante organizado como podemos notar durante os eventos do Abril Indígena", lembra.

Segundo Grossi, o grande desafio da atualidade para os antropólogos é a intervenção na elaboração de políticas públicas. A antropóloga citou a solicitação de laudos e pareceres e a atuação cada vez mais recorrente de antropólogos em órgãos governamentais como o Incra, a Funai, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério Público. A Procuradoria Geral da República, através de um convênio com a ABA, emprega, atualmente cerca de 20 antropólogos concursados.


Fundada em 1955, durante a Segunda Reunião Brasileira de Antropologia realizada na cidade de Salvador, na Bahia, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) contava, então, com 20 associados. Hoje, ela contabiliza cerca de 1400 sócios, constituindo-se na terceira maior associação de antropologia do mundo, estando atrás apenas da associação norte-americana (a American Anthropological Association, que conta com 11 mil sócios) e da associação japonesa (2 mil associados).

Atualizado em 16/06/05
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