Livro revela potencial do cinema para compreensão da velhice
O cinema tem trazido para as suas telas múltiplas imagens
do tempo de envelhecer. Ora priorizando a dependência e
o desamparo que atingem os mais velhos, ora abordando temas-tabus
para a terceira idade, como o amor e o sexo, ou marcando a velhice
como um momento de novos projetos e realizações,
ou, ainda, acenando com as promessas da ciência e tecnologia
para solucionar os problemas do envelhecimento. As imagens cinematográficas
têm um enorme potencial para refletir sobre atitudes, valores
e práticas sociais, devido a sua capacidade de criar maneiras
de olhar o mundo, de interrogá-lo e de explorar temas complexos
do nosso tempo. É o que mostra o livro Cinema, velhice
e cultura: cinedebate, lançado em fevereiro deste ano,
escrito por diversos professores e pesquisadores que transformaram
o cinema em uma poderosa ferramenta em suas atividades de ensino
e pesquisa.
Para
a organizadora da obra, a antropóloga Neusa Maria Mendes
de Gusmão, da Faculdade de Educação da Unicamp,
as experiências pedagógicas que um filme pode proporcionar
estão relacionadas às múltiplas formas de
olhar o mundo e experiências de cada um. "Ver filmes
implica uma interação com o que eles mostram, com
suas imagens, seus diálogos e com a interpretação
possível que construímos como espectadores",
diz. Fazendo uma aproximação do longa metragem Chuvas
de Verão com o videodocumentário Umas Velhices,
Gusmão ressalta a importância que têm esses
filmes para se pensar "o que é envelhecer e, mesmo,
o que se deseja como parte do envelhecer".
Umas
Velhices traz para as telas uma visão multifacetada
sobre o idoso e a velhice em diferentes épocas e tipos
de sociedades, diferente da tragicomédia Parente é
serpente, em que a velhice é marcada por um processo
contínuo de perdas e dependência. No filme, um casal
de velhos encontra na família a possibilidade de escapar
do asilo. Durante uma comemoração de natal, anunciam
que querem morar com um dos filhos, deixando-os decidir quem será
o premiado. A partir daí, começa um autêntico
jogo de empurra, já que ninguém quer arcar com a
responsabilidade de ficar com os velhinhos.
Para
Guita Grin Debert, professora de antropologia da Unicamp, essas
imagens têm uma dupla função: por um lado,
reafirmam estereótipos negativos da velhice; mas, por outro,
são (e foram) fundamentais para a sensibilização
da sociedade e a transformação dos idosos em atores
políticos, com direitos sociais reconhecidos, como a aposentadoria,
por exemplo.
Em
contraposição a essas imagens, Debert analisa filmes
que tratam a velhice como um recomeço, em que os saberes
acumulados dos mais velhos têm um papel fundamental. É
em Cocoon que esse entusiasmo com a velhice ganha uma expressão
bem caricatural. Um grupo de idosos descobre a fonte da juventude:
uma piscina cheia de casulos de alienígenas que dá,
a quem nela mergulha, os poderes da mocidade. A ficção,
produzida em 1985, sugere para a pesquisadora uma correlação
com as atuais promessas da ciência e tecnologia "de
que é possível escapar de constrangimentos, dos
estereótipos, das normas e dos padrões de comportamento
baseados nas idades", diz Debert, mas adverte: "esse
entusiamo é proporcional à precariedade dos mecanismos
que dispomos para lidar com os problemas da idade avançada.
Quando o rejuvenescimento se transforma em um novo mercado de
consumo, não há lugar para a velhice".
No
episódio A esperança é a última
que morre, de Umas velhices, o ator Antonio Abujanra
também comenta que atualmente a juventude vem de outras
fontes: remédios, cápsulas, vacina, hábitos
saudáveis e Viagra. Para Debert, o cinema tem mostrado
um movimento de diluição das fronteiras entre as
idades: a dimensão etária deixa de ser um marcador
de comportamentos (exemplo de mães e filhas que vivem juntas
fases como namoro, casamento e gravidez) e o surgimento de novas
etapas intermediárias (a meia idade e a idade da loba).
A
abordagem que o cinema tem feito desse movimento e da transformação
da juventude em um bem, que poderia ser conquistado através
do consumo e da adoção de formas de vida mais adequados,
na opinião de Debert, não envolve necessariamente
uma atitude mais tolerante com o corpo envelhecido ou uma democratização
das relações humanas. Ao contrário, leva
a responsabilização, cada vez maior, dos indivíduos
pelo envelhecimento. "São os indivíduos que
negligenciaram seus corpos e que não foram capazes de se
envolver em atividades e relacionamentos motivadores. A suposição
de que boa aparência é igual a bem estar está
em consonância com a idéia de que o romance pode
ser vivido em qualquer idade", ressalta.
Leia
Mais:
-As
imagens da velhice no cinema
-O
Idoso na Mídia, de Guita Grin Debert
-Edição
ComCiência sobre Velhice:
Ficha
técnica dos filmes:
Chuvas
de verão (Brasil, 1978) dirigido por Carlos Diegues,
com :Jofre Soares, Miriam Pires, Daniel Filho, Marieta Severo,
Paulo Cesar Pereio, Jorge Coutinho, Rodolfo Arena, Roberto Bonfim,
Sady Cabral, Lourdes Mayer, Carlos Gregório, Gracinda FreireCristina
Aché.
Parente
é serpente (Itália, 1993), dirigido por Mario
Monicelli, com Tommaso Bianco, Renato Cecchetto, Marina Canfalone,
Cinzia Leone, Eugenio Masciari e Paolo Panelli no elenco.
Cocoon
(EUA, 1985), dirigido por Ron Howard, com Don Ameche, Wilford
Brimley, Hume Cronyn, Brian Dennehy, Jack Gilford, Steve Guttemberg,
Maureen Stapleton, Jessica Tandy, Gwen Verdon, Herta Ware, Tahnee
Welch, Barret Oliver, Linda Harrison.
Umas
velhices (Brasil, 2003)