Pesquisadoras
analisam a presença do hip hop
em escolas públicas paulistanas
A lei 10.639 tornou obrigatória, a partir de 2003, a presença
da história da África e da cultura afro-brasileira
nos currículos escolares. Essa exigência, importante
para combater os preconceitos sobre o continente africano e os
afrodescendentes no Brasil, traz a necessidade de melhorar a capacitação
dos professores do ensino fundamental e médio. Nesse contexto,
os desafios são grandes. É o que revelam duas pesquisas
recentes realizadas em escolas públicas da cidade de São
Paulo: manifestações culturais afrodescentedentes,
como o hip hop, presentes no cotidiano escolar, estão sendo
desprezadas pelos educadores que enfrentam dificuldades para lidar
com o tema das relações entre negros e brancos na
sala de aula.
Ao
pesquisar a relação entre a escola e os alunos adeptos
do hip hop, a professora, licenciada em Letras, Ione da Silva
Jovino constatou a existência de um confronto entre a escolarização
formal - defendida pelos educadores - e as práticas culturais
do hip hop desenvolvidas pelos estudantes tais como as letras
de rap, cada vez mais presentes nas redações escolares.
Para a pesquisadora, muitos educadores menosprezam o potencial
pedagógico do hip hop e abrem mão de utilizar o
próprio universo cultural dos alunos em prol da continuidade
da sua aprendizagem.
O
objetivo principal da dissertação de mestrado (Escola:
as minas e os manos têm a palavra), defendida recentemente
na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) por Jovino,
era analisar o que os jovens hip hoppers tinham a dizer sobre
a escola. A pesquisadora optou, durante a pesquisa de campo, por
entregar o gravador aos alunos para que eles próprios se
entrevistassem. A única exigência foi a de que a
temática "escola" fizesse parte das entrevistas.
Mesmo
com uma série de problemas (mal desempenho escolar, o estigma
que a própria escola carrega, a violência), as falas
dos alunos sobre a escola foram sempre carregadas de positividade,
o que surpreendeu a própria pesquisadora: "É
como se a violência, a falta de limpeza, o desprestígio
e outros problemas pudessem ser momentaneamente abandonados, retirados
dali, para que restasse apenas uma Escola. Escola assim, com letra
maiúscula, no sentido mais amplo possível. Eles
se compadecem dessa Escola, separando-a de seus problemas e insucessos,
vendo nela apenas a positividade que só uma Escola, qualquer
Escola pode ter", explica Ione Jovino.
Dentre
os vários significados atribuídos à escola
pelos alunos (tais como obrigação à qual
tiveram que se acostumar, espaço de lazer), os mais recorrentes
concebem a escola como oportunidade para se obter informação
e conhecimento, como meio de ascensão social e de qualificação
para o mundo do trabalho. Nesse sentido, muitos desses significados
são também relacionados ao hip hop. Para Jovino,
nessa interposição de significados é que
reside a possibilidade de se tratar a escolarização
formal e a "escola do hip hop" como campos equivalentes
e complementares.
Reagindo
aos estereótipos raciais
A dissertação O 'lance da cor': um estudo sobre
estereótipos em duas escolas públicas da periferia
paulistana (2000-2001) defendida em março, na Unicamp,
também focalizou duas escolas públicas da periferia
paulistana, dessa vez para investigar as representações
sobre os negros presentes no contexto escolar e as reações
dos estudantes negros em relação a elas. A pesquisa
realizada pela antropóloga Daniela do Carmo revelou que,
se em determinados momentos do cotidiano escolar o elogio à
cultura afro-brasileira vem sendo utilizado para valorizar os
negros, em outras situações, esses estão
sendo desqualificados por força dos estereótipos
raciais que lhes são atribuídos.
Com
o objetivo de valorizar positivamente os negros, muitos professores
nas salas de aula lançam mão de certas manifestações
culturais tidas como "genuína" ou "essencialmente
negras". Segundo Carmo, essa prática pedagógica
observada no cotidiano das escolas por ela pesquisadas, resultou
num olhar culturalista sobre a população negra no
Brasil. "Os estereótipos culturalistas manifestavam-se
de maneira sutil quando certas expressões e práticas
da cultura eram percebidas como intrínsecas, como 'próprias
dos negros' e eram trazidas com o objetivo de 'qualificá-los'.
No congelamento de sentidos, ícones como o carnaval, o
futebol, a capoeira, a feijoada e etc., eram mostrados como finitos
em si mesmos não permitindo que o contexto histórico-político
no qual emergiram fossem atualizados", explica a pesquisadora.
Os
estereótipos pejorativos sobre os negros se revelaram nos
apelidos utilizados pelos estudantes, principalmente em situações
de disputas - as chamadas "tretas". Os apelidos ora
aproximam os negros dos animais ("macaco", "chimpanzé",
"urubu"), ora os tratam como coisas ("café
preto", "churrasco queimado", "petróleo")
ou ainda associam a cor preta à sujeira ("preto sujo",
"preta fedida", " negão que não toma
banho"). Diante dessas situações de discriminação
racial, um dos efeitos observados pela pesquisadora foi o fato
de os alunos negros, muitas vezes, optarem por negar a própria
cor.
Mas
outro tipo de reação foi verificado pela antropóloga:
através do rap, os estudantes negros estão questionando
esses estereótipos e outras representações
que recaem sobre eles. Muitas vezes, as reações
suscitadas pelo hip hop ganham contornos pouco óbvios.
Um exemplo surge nas palavras de uma das alunas entrevistadas
pela pesquisadora: "Não é o rap que fala que
é pra gente que é preto se ligar e pensar com a
própria cabeça? Então, não é
porque eu sou preta que eu tenho que gostar de rap, né.
Eu posso gostar do que eu quiser e eu da minha parte eu gosto
é de música clássica!" (sic).