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Raízes históricas do medo urbano

A partir de acontecimentos contemporâneos, como os "arrastões" que assustaram os banhistas das praias da Zona Sul carioca, em 1993, ou a "invasão" do shopping Rio Sul por moradores de ocupações da Baixada Fluminense, em 2000, Vera Malaguti, pesquisadora da Universidade Cândido Mendes e secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia, fez um estudo histórico sobre as raízes do medo na sociedade urbana brasileira. O resultado de sua pesquisa está no livro O medo na cidade do Rio de Janeiro - dois tempos de uma história, recém-lançado pela editora Revan.

A hipótese central do trabalho de Malaguti é de que a hegemonia conservadora na formação social brasileira trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O período histórico abordado em seu estudo abrange os anos próximos a 1835, quando aconteceu um levante na Bahia que, apesar de sua repercussão nacional, não aparece nos livros de história e nem é mencionado no ensino dessa disciplina nas escolas brasileiras.

Segundo a pesquisadora, na noite de 24 de janeiro daquele ano, algumas centenas de africanos muçulmanos ocuparam as ruas de Salvador para participar de uma rebelião que ficou conhecida com a Revolta dos Malês. Malaguti explica que naquela época o islamismo na Bahia era mobilizador e se constituía numa referência fundamental para a comunidade negra. O levante, que de acordo com ela era um movimento organizado e dirigido - sem violência contra residências, nem incêndios ou saques - foi derrotado na madrugada do dia 25. Enquanto as forças oficiais sofreram nove baixas, os africanos malês tiveram 70 mortos e centenas de punidos com penas como deportação, morte, prisão e açoitamento.

O estudo de Malaguti mostra que, embora tenha sido um levante rapidamente derrotado, a Revolta dos Malês representou um marco no imaginário do medo naquela época, que já assustava os senhores de escravos com as notícias sobre a Revolução Haitiana liderada por um escravo muçulmano condenado à fogueira em 1798. A pesquisadora diz que a sociedade imperial brasileira sequer se questionou sobre a instituição da escravidão, e as denúncias de uma articulação internacional envolvendo malês, haitianos e abolicionistas ingleses tratavam de delimitar claramente para fora da sociedade imperial as causas das revoltas. "Delimitar o inimigo como alguém de fora, como o outro, e tratar de estabelecer estratégias de controle duríssimas foram as medidas tomadas. Questionar a escravidão, jamais", afirma a autora da pesquisa.

Textos envolvendo a "cultura do medo" em periódicos da época do império, como Aurora Fluminense e O Pão d'Assucar, foram analisados e comparados com matérias dos jornais cariocas O Globo e Jornal do Brasil sobre acontecimentos como os "arrastões" de 1993 e a "invasão" do shopping em 2000. "A ocupação dos espaços públicos pelas classes subalternas produz fantasias de pânico do caos social, que se ancoram nas matrizes constitutivas da nossa formação ideológica", diz Malaguti.

A pesquisadora afirma que essa questão permeou a corte imperial, após a Revolta dos Malês em 1835, assombrou o país após a abolição da escravatura e a proclamação da República, e esteve presente na revolução de 30, no suicídio de Getúlio, no golpe de 64 e nas conjunturas eleitorais de 1994 e 1998, anos em que, segundo ela, os cariocas votaram com medo e as forças conservadoras da "lei e da ordem" venceram as eleições no Rio de Janeiro. "As histórias negras aparecem como relatos de terceiros em crônicas parciais e policiais, onde dificilmente [os negros] aparecem como vítimas", diz Malaguti. Mas aludindo ao sistema penal brasileiro gestado no período do império, questiona em seguida: "Quem tem medo de quem?".


Atualizado em 17/02/04
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