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Linguagem e memória: os discursos sobre as perdas

A idéia de que há uma relação entre linguagem e memória é antiga, mas a ciência ainda investiga como essa relação se estabelece e o que ela pode indicar a respeito da cognição humana. Em sua dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp no dia 2 de março, Fernanda Miranda da Cruz mostra que a concepção de linguagem e de memória em relatos de pessoas com afasia (perturbações de linguagem) ou doença de Alzheimer fornece mais pistas para o entendimento dessa relação do que os testes de avaliação clínica e os relatos médicos sobre perda de memória.

A pesquisadora analisou, a princípio, testes clínicos que são aplicados para avaliar a memória do paciente, e constatou que eles verificam apenas a capacidade de recuperação de informações, medindo o potencial de evocação pelo número de palavras lembradas, sem contextualizá-las e sem levar em conta outros fatores que envolvem o ato da enunciação, baseados em uma concepção limitada de linguagem e de memória. Esses testes, que segundo Cruz, estão entre os veículos do discurso institucional sobre ‘o que é’ memória, tratam a linguagem basicamente como informação e a memória como armazenamento dessa informação. O esquecimento, nesses testes, é tido como algo patológico.

“Se aceitamos a concepção de memória como armazenamento de informações, somos obrigados a conceber, na sociedade atual, uma impossibilidade cada vez maior de retenção dessas informações, tendo em vista que o caráter delas é efêmero e descartável”, afirma Cruz. “Por outro lado, conceber a memória como constituída de uma base significativa que organiza as sociedades e constitui os universos discursivos nos faz pensar inevitavelmente na relação entre memória e outros processos que não sejam apenas cognitivos, mas também histórico-sociais, como a linguagem”, completa. De acordo com ela, a perda da memória está ligada à perda das condições de produção do que é memória, que inclui as interações sociais do sujeito realizadas, em grande parte, através da linguagem.


Fernanda Miranda da Cruz, à esquerda, e sua orientadora Edwiges Morato
Foto: Rodrigo Cunha

“Se você faz um teste e não extrai informações sobre a pessoa, se você não leva em consideração o contexto nos quais os processos cognitivos se dão, se você negligencia fatores importantes como subjetividade, como a inserção social dessa pessoa, você está longe de identificar o problema exato que a pessoa tem”, diz Edwiges Morato, do Laboratório de Neurolinguística da Unicamp, que orientou a pesquisa. “Você tem ali uma idéia. E se o teste for muito prescritivo, você tem uma pálida idéia”, avalia.

Cruz também analisou relatos médicos sobre a perda de memória e verificou que eles não são padronizados e homogêneos como os testes clínicos, pois eles partem da fala do paciente, observando-a, no entanto, com a suposta objetividade da ciência, sem considerar aspectos sociais e culturais próprios do paciente. Esses relatos médicos, informa a pesquisadora, envolvem o discurso do paciente sobre seus problemas e sobre as implicações da doença em sua vida prática, o discurso científico sobre a patologia e o próprio discurso médico permeado de especulações e dúvidas a respeito dos casos clínicos. “As consultas clínicas, de uma forma geral, e a aplicação dos testes, de uma forma específica, se estruturam de maneira a não dar vazão a manifestações de subjetividade da fala do paciente”, comenta.

Para completar sua pesquisa, Cruz entrevistou pacientes que apresentavam diagnóstico de Alzheimer de grau leve – doença que provoca a degeneração de neurônios e leva, entre outras coisas, à perda de memória –, e sujeitos com afasia, perturbação de linguagem causada por lesão no Sistema Nervoso Central por derrames cerebrais ou por traumatismos cranianos. Os relatos desses entrevistados, que segundo a pesquisadora revelam suas experiências sócio-culturais e as condições afetivas e históricas que orientam suas ações no mundo, são para ela o lugar privilegiado para a compreensão das relações entre linguagem e memória.

Nessas entrevistas, fica claro que lembrar e esquecer nomes de pessoas, atividades do dia-a-dia e episódios passados são coisas distintas. Um dos entrevistados, por exemplo, definiu a memória como sinônimo de saudade, relacionando-a ao passado e suas significações afetivas. E uma senhora afásica entrevistada considerou que a dificuldade para contar uma história (a dificuldade de encontrar as palavras para construir uma narrativa) não coincide com a dificuldade de memória (evocação de lembranças passadas). Ao tentar relatar um episódio marcante em sua vida que lhe vem à lembrança, essa senhora encontrou dificuldades decorrentes da afasia, e num primeiro momento, desistiu do relato. A pesquisadora incentivou a entrevistada a compartilhar a história, sugerindo as palavras que lhe faltavam. Confirmando ou rejeitando essas sugestões, a entrevistada viu nisso uma estratégia para continuar o relato de suas lembranças.

A partir desses relatos, Cruz vê a memória como um acontecimento discursivo que se materializa no ato da enunciação, ou seja, na narração do que é lembrado, e postula que tanto a linguagem quanto a memória são atos enunciativos que emergem nas práticas sociais. De acordo com ela, a linguagem é o instrumento que socializa, fortalece, organiza e constitui a memória. “Etimologicamente, narrar e memorar reportam-se à ação de relatar, de trazer à memória, de dar a conhecer, de tornar lembrado um fato ou acontecimento”, explica.


Atualizado em 05/03/04
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