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A fome e os transgênicos
Jean Marc von der Weid

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A fome e os transgênicos

"Queremos mais recursos públicos para a pesquisa em biotecnologia, mas também queremos mais responsabilidade no uso da mesma.

Entre os argumentos daqueles que procuram fundamentar a existência e expansão no mercado dos alimentos transgênicos, está uma potencial contribuição para eliminar ou minimizar o problema da fome e da desnutrição mundiais, em especial nos países em desenvolvimento. Em entrevista à ComCiência, o agrônomo Jean Marc von der Weid, coordenador de políticas públicas da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), analisou e rebateu esses argumentos, afirmando que os problemas de fome e desnutrição apontam para a pobreza das populações e não para a escassez de alimentos.

A AS-PTA é uma ONG, fundada em 1989, que procura promover o desenvolvimento rural sustentado com base na agricultura familiar e na agroecologia. Ela atua orientando processos participativos de desenvolvimento local em duas micro-regiões, no Nordeste (envolvendo 15 municípios) e no Sul do País (22 municípios). A partir dos resultados técnicos, econômicos e sociais alcançados nestes programas a AS-PTA extrai subsídios para orientar propostas de políticas públicas que permitam generalizar essas experiências para outros programas de desenvolvimento local de agricultores familiares. O efeito de demonstração obtido nestes programas é o elemento-chave para influenciar os mais variados atores (poderes públicos, organizações de agricultores, pesquisadores, professores, extensionistas, ONGs etc.) sobre as vantagens da agroecologia e das metodologias participativas na promoção de uma agricultura sustentável.

Para cumprir a missão que assumiu, a AS-PTA colabora com inúmeras instituições públicas e privadas. Entre elas encontram-se entidades de agricultores familiares das áreas em que atua, mas também entidades nacionais, dezenas de ONGs, pesquisadores da Embrapa e de entidades estaduais de pesquisa. Colabora também com professores das Universidades Federal Rural do Rio de Janeiro, Federal da Paraíba e Federal de Pernambuco e da Universidade Estadual de Londrina (PR). No plano internacional a AS-PTA colabora com a FAO na organização da Conferência Mundial da Alimentação e participa do comitê executivo do Fórum Global para a Pesquisa Agrícola.

ComCiência - Os alimentos transgênicos podem eliminar ou minimizar a fome e a desnutrição?
Jean Marc von der Weid - A questão da fome não pode ser resolvida pelo cultivo de plantas transgênicas. A fome não existe por falta absoluta de alimentos no mundo, mas pela falta de recursos para importar alimentos nos países mais pobres com déficit de produção e, nas famílias mais pobres, para comprar alimentos ou produzi-los. Para resolver o problema da fome, a estratégia não é aumentar a produção em termos absolutos, mas sim nos países deficitários. Por outro lado, não basta aumentar a produção de alimentos nesses países, mas fazê-lo com custos baixos o suficiente para permitir o acesso da população de baixa renda. É claro que sem uma distribuição de renda e políticas de pleno emprego sempre haverá fome.

Grande parte dos famintos é das zonas rurais, que não conseguem produzir o suficiente para comer e/ou para vender nos mercados. Outra estratégia de superação da fome passa por dar condições de produção para esse setor, tanto para resolver sua situação de insuficiência alimentar, como para ampliar a oferta de alimentos baratos no país.
Nesse setor a tecnologia dos transgênicos não tem o menor sentido. É uma tecnologia cara e arriscada para agricultores que vivem em situações de risco ambiental significativo. A soja Roundap Ready, por exemplo, tem como objetivo facilitar o uso de herbicidas pelos agricultores, mas o nosso público alvo não usa herbicidas por não poder comprá-los. O milho ou o algodão Bt podem representar uma economia no uso de pesticidas, mas o nosso público não costuma usar pesticidas pelas mesmas razões.

Com Ciência - Existem dados sobre a quantidade de alimentos no mundo e o possível incremento da produtividade com os transgênicos?
Weid -
Conforme relatam Miguel Altieri, Professor da Universidade de Berkeley, Califórnia, e Peter Rosset, do Instituto Food First, dos EUA, o mundo produz hoje mais alimento por habitante do que nunca. Existe suficiente para prover 2 kg diários para cada pessoa: 1,1 kg de grãos, aproximadamente 450 g de carne, leite e ovos e mais 450 g de frutas e vegetais. Se os alimentos disponíveis no mundo fossem igualmente distribuídos, todas as pessoas poderiam dispor de uma dieta suficiente em quantidade e qualidade todos os dias.

Por outro lado, qualquer afirmação de que as plantas transgênicas são mais produtivas é falsa; pura propaganda das empresas. Ao contrário, pesquisas feitas nos EUA por vários acadêmicos respeitados (entre outros, de Charles Benbrook, do Centro de Ciência e Política Ambiental do Noroeste, de Idaho) indicam que as variedades transgênicas são menos produtivas que as convencionais equivalentes.

ComCiência - Então qual seria a solução possível para o aumento de oferta de alimentos?
Weid -
Para ampliar a oferta de alimentos a solução que já vem dando certo é o emprego da agroecologia. Como esta tecnologia não implica no uso de caros insumos externos, ela tem menores riscos para o produtor. Sua eficiência está comprovada com resultados atingindo, numa média mundial de casos analisados por pesquisadores da Universidade de Essex, na Inglaterra, 100% de aumento da produtividade. É interessante notar que nos casos mais avançados analisados na pesquisa, ou seja, os que corresponderam à aplicação integral dos conceitos e do conjunto das técnicas da agroecologia, os aumentos de produtividade chegaram a 500%. Mesmo que os transgênicos não oferecessem riscos ambientais e para a saúde do consumidor, eles decididamente não resolveriam os problemas da fome no mundo.

ComCiência - Em artigo publicado pelo site da empresa Monsanto o Dr. Channapatna S. Prakash, professor de genética molecular vegetal e diretor do centro de pesquisa vegetal biotecnológica da Universidade de Tuskegee, no Alabama (EUA), apresenta alguns argumentos, bastante recorrentes, que exaltam as soluções proporcionadas pelos alimentos transgênicos. Entre eles, o professor afirma que o desenvolvimento da biotecnologia de alimentos pode ajudar a nutrir os habitantes de países em desenvolvimento, aumentar a qualidade da produtividade agrícola, evitar a destruição das florestas e até aprimorar a biodiversidade. Qual a sua análise deste último argumento?
Weid - O Dr. Prakash pode ser um grande especialista em genética mas está afirmando coisas que não pode provar. Quanto a evitar a destruição de florestas o argumento é derivado da afirmação do aumento de produtividade com o uso de transgênicos. Teoricamente, se há mais produtividade não será preciso ampliar a área cultivada para aumentar a oferta de alimentos e portanto não será preciso desmatar. Como não se confirma a hipótese do aumento de produtividade, o resto do argumento cai por terra. Mas mesmo que houvesse tal aumento de produtividade, não deixa de ser uma falácia atribuir-lhe a virtude de poupar as florestas. Aumentos de produtividade podem resultar do uso de outras tecnologias que não as transgênicas. Por outro lado, apenas o aumento de produtividade não assegura a preservação das florestas, como pode ser constatado em todo o mundo nos últimos 50 anos.
O aprimoramento da biodiversidade anunciado pelo Dr. Prakash é uma aberração, principalmente se pensarmos que, se os transgênicos forem adotados haverá uma imensa redução do número de variedades cultivadas de cada espécie, o que já vem ocorrendo nos EUA. Isto é devido ao alto custo da engenharia genética e da necessidade de rentabilizar o investimento pelo uso maciço de cada variedade transformada. Por outro lado, a própria técnica da engenharia genética produz plantas absolutamente idênticas enquanto o melhoramento convencional (exceção às culturas in vitro) mantém uma maior diversidade genética nas variedades que difunde.

Com Ciência - É possível associar os alimentos transgênicos a um tipo de conhecimento científico e lógica de mercado específicos?
Weid
- As variedades transgênicas representam o passo mais radical e revolucionário da aplicação de um paradigma da ciência agronômica que vem dominando a agricultura dos países desenvolvidos desde os anos cinqüenta. Trata-se da busca do controle total de todas as variáveis que interferem na produção agrícola através de uma radical artificialização do meio ambiente. Para uma planta crescer ela necessita de luz e calor, água, nutrientes variados, proteção contra pragas e doenças e contra a competição por outras espécies (ervas "daninhas" ou invasoras). Tudo isto deve estar disponível em quantidade certa e na hora certa, o que certamente nunca ocorre na natureza.

O homem vem selecionando plantas e melhorando as variedades desde o início da agricultura, há pelo menos 10.000 anos, visando aumentar a produção para o seu consumo. Até cem anos atrás essa seleção era feita pelos próprios agricultores, em função de variados fatores relativos às características dos ecossistemas onde estavam produzindo e dos seus objetivos enquanto produtores. Esses fatores não se resumiam ao aumento de produtividade mas, freqüentemente, estavam voltados à maior resistência a diferentes tipos de estresses ambientais.

Nos últimos 100 anos a ciência agronômica sofisticou cada vez mais os métodos de melhoramento varietal, mas centrou o processo no aumento da produtividade através da seleção de plantas com maior capacidade de resposta ao emprego de adubos químicos solúveis. Outro critério importante no melhoramento foi a busca de variedades bem adaptadas à mecanização dos cultivos. Este processo resultou, sem dúvida, em espetaculares aumentos, tanto na produção por área cultivada como por unidade de mão de obra empregada. O efeito colateral negativo foi a necessidade de empregar um arsenal de tecnologias para proteger essas plantas, que mostraram-se sendo extremamente frágeis para sobreviverem no meio ambiente. Assim, começou o ciclo vicioso do uso de pesticidas, fungicidas, nematicidas, herbicidas etc. que logo provocaram desequilíbrios ambientais que resultaram na exacerbação do problema que buscavam controlar.

As plantas geneticamente modificadas são um passo a mais neste esforço de controlar o meio ambiente através de sua artificialização. Este caminho não corresponde a uma necessidade e a um determinismo histórico, mas à afirmação dos interesses das grandes empresas produtoras de insumos (sementes, biocidas, maquinária etc). Esse caminho e paradigma não é o único possível, como bem o demonstra a opção agroecológica já aplicada com sucesso em todo o mundo.

Com Ciência - Além do incremento da produtividade, a indústria de sementes transgênicas aponta para os benefícios nutricionais dos alimentos desenvolvidos com esta tecnologia. O senhor acredita nestes benefícios contra a desnutrição?
Weid
- A melhoria da qualidade nutricional dos alimentos através da engenharia genética é uma opção mais interessante que aquela que hoje domina entre os transgênicos. Até agora os maiores investimentos foram feitos para produzir plantas resistentes aos herbicidas das próprias empresas de biotecnologia. Essa solução, entretanto, cuja maior aplicação foi o "arroz dourado" (uma variedade de arroz geneticamente modificado para produzir maiores quantidades de beta caroteno, um precursor da vitamina A) é bastante discutível. A idéia de resolver o problema de carência de vitamina A nos países asiáticos com o arroz dourado é, por si mesma, uma aberração. Na dieta tradicional da região existem folhosas com muito mais beta caroteno que o arroz dourado, mas o problema é que esta dieta vem sendo abandonada por pobreza ou deseducação e substituída por uma dieta mais simplificada e por produtos transformados industrialmente e de menor qualidade nutricional.

Finalmente, o absurdo da proposta se manifesta também no fato de que será necessário ingerir duas a três vezes as quantidades já elevadas de arroz consumidas nestas regiões para que esta variedade dourada supra as necessidades dos consumidores em vitamina A.

Com Ciência - Os alimentos orgânicos podem tornar o Brasil mais competitivo no setor agrícola? Essa é uma solução economicamente viável?
Weid- A agroecologia vem mostrando capacidade de produzir com rendimentos por hectare iguais ou superiores aos sistemas convencionais, transgênicos ou não. Seus custos de produção são mais baixos e sua estabilidade frente à variações ambientais muito maior que nestes últimos. Por outro lado, a agroecologia não provoca danos ambientais nem destrói recursos naturais não tendo, portanto, custos indiretos a contabilizar.

O grande "problema" da agroecologia é que ela não pode ser utilizada em grande escala em fazendas, empregando mecanização pesada, exatamente por operar através de sistemas diversificados de uso do espaço. Agroecologia rima com diversidade, enquanto agroquímica e transgênicos rimam com homogeneidade. Agroecologia ajusta-se perfeitamente à agricultura familiar, que usa mão de obra contratada de forma complementar e pontual. Como são sistemas complexos, eles exigem uma capacidade de gestão do espaço e do tempo de trabalho dificilmente aplicável em grande escala com mão de obra alugada.
Mas este "problema" é, na verdade, uma solução. Em um país como o Brasil, em que boa parte de sua população ativa não tem expectativa de encontrar emprego e renda suficientes e estáveis para uma vida digna, a idéia de um sistema agrícola baseado em propriedades familiares é uma solução (talvez a única) para resolver o problema da marginalização crescente da população. A agricultura familiar resultante de uma radical redistribuição da propriedade fundiária será perfeitamente capaz de produzir alimentos e outros produtos agrícolas para as necessidades do consumo interno e das exportações brasileiras.

ComCiência - A produção industrial de alimentos baseada em tecnologias transgênicas cria dificuldades para a agroecologia?
Weid - O uso de plantas transgênicas no Brasil pode prejudicar e muito, não só a agroecologia como a agricultura convencional. Como já se vê nos EUA, o uso de transgênicos em pouco mais de 6 anos provocou o surgimento de ervas daninhas mais resistentes aos controles, insetos mais resistentes ao uso do Bacillus thuringiensis (aliás um recurso muito empregado, através de aspersão, por agricultores ecológicos), cruzamentos espontâneos de plantas transgênicas com não transgênicas resultando em poluição genética (particularmente de milho) etc.
O prejuízo para todos os agricultores não transgênicos causado por esse tipo de poluição pode ser enorme, desde as multas cobradas pelas empresas - que ainda por cima acusam os poluídos por plantio ilegal de suas sementes -, até a perda de mercado, já que na Europa e na Ásia cada vez mais o público se recusa a consumir produtos transgênicos.

ComCiência - Qual tem sido a posição da AS-PTA com relação liberação dos transgênicos no Brasil? Qual o papel da entidade considerando-se esta questão?
Weid -A AS-PTA participa da coordenação da campanha "Por um Brasil Livre de Transgênicos" e é responsável, em especial, pelos estudos e pela informação ao público agrícola sobre os aspectos agronômicos e econômicos do tema transgênicos. Lutamos por uma moratória por tempo indeterminado na liberação destes produtos para plantio em escala comercial e testes fora de laboratórios. Somos a favor de maiores investimentos em pesquisa nacional para dominar essa tecnologia e desenvolvê-la de modo a eliminar seus atuais riscos. Em particular somos a favor de pesquisas que permitam avaliar os riscos ambientais e para a saúde do consumidor no emprego de transgênicos. Ou seja, os pesquisadores e cientistas podem ficar tranqüilos que não pretendemos tirar-lhes o ganha pão. Ao contrário, queremos mais recursos públicos para a pesquisa em biotecnologia, mas também queremos mais responsabilidade no uso da mesma.

A campanha "Por um Brasil livre de transgênicos" produz um boletim eletrônico semanal de atualização sobre o tema. Quem quiser recebê-lo deve escrever um e-mail para o endereço campanhatransg@uol.com.br, solicitando o cadastramento.

 

Atualizado em 10/05/02

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