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Garcia-Roza:
da psicanálise ao romance policial
O Prof. Luis Alfredo Garcia-Roza lecionou Teoria Psicanalítica na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, tendo sido um dos principais fundadores do
curso de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica desta universidade. Formado
em filosofia e psicologia, Garcia-Roza adquiriu grande notoriedade através
de sua obra analítica, com oito títulos lançados. Após uma carreira plena
na área acadêmica, Garcia-Roza optou por iniciar-se como escritor de ficção
policial. Sua obra inicial, O Silêncio da Chuva, lançado em 1996,
recebeu o Prêmio Nestlé e o Jabuti. Suas duas obras seguintes contam histórias
do mesmo personagem, o detetive Espinosa, ambientadas no Rio de Janeiro
da atualidade.
Com
Ciência - O senhor iniciou as suas atividades
literárias, como
autor de novelas policiais,
mais tardiamente,
depois de uma carreira de sucesso como piscanalista. Como se deu esta
mudança na sua atividade intelectual?
Garcia-Roza - A mudança se deu por opção, por escolha. Eu fui professor
da UFRJ durante quase 35 anos e fiz tudo que eu queria como professor.
Eu fui professor de graduação, de pós, eu criei um programa de pós graduação
em teoria psicanalítica, com mestrado e doutorado. Isso faz já quinze
anos. Então o que aconteceria daqui pra frente seria tocar estes programas,
talvez escrever mais um livro, além dos que eu já escrevi, de teoria psicanalítica,
de filosofia e esperar a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade.
Eu não queria este projeto de outono da vida, eu queria uma coisa mais
criativa. Então, me desliguei da universidade e, como tinha um desejo
já antigo de escrever ficção, particularmente ficção policial, me dei
conta de que teria que mergulhar nisso de cabeça, ou virava escritor de
fim de semana, tentando conciliar a universidade com a escrita. Então,
resolvi largar tudo, fazer um corte radical e enveredar pela ficção policial.
Com Ciência
- Este livro que o sr. mencionou, sobre teoria psicanalítica, que falta
escrever, está no seu calendário ou não?
Garcia-Roza - Não, na verdade não. Nos meus últimos livros, tem
um título, Introdução à Metapsicologia Freudiana, em que faço uma
análise do assunto. Tem um primeiro volume, onde faço uma análise dos
textos de Freud anteriores à Interpretação dos Sonhos, particularmente
Afasias e O Projeto, de 1895. O volume 2 fala especificamente
sobre A Interpretação dos Sonhos e o volume 3, que fala dos artigos
da metapsicologia e ficou na expectativa de um volume 4 sobre a segunda
tópica freudiana. Mas não está nos meus planos.
Com Ciência
- Qual das três novelas policiais é a sua preferida?
Garcia-Roza - A primeira tem a característica de ter me inaugurado como
ficcionista. É como primeiro filho. Eu tenho uma simpatia particular por
este primeiro livro. Mas eu sinceramente gosto muito de cada livro que
eu estou escrevendo.
Com Ciência
- Muitos autores, críticos e historiadores da cultura costumam apontar
semelhanças importantes entre as estruturas da narrativa policial e o
desvendamento psicanalítico através da livre associação no discurso. O
sr. pensa haver haver uma relação estrutural forte entre uma coisa e outra?
Garcia-Roza
- Acho que é possível fazer uma relação entre a novela policial e a prática
psicanalítica, mas num sentido amplo. Primeiro, ambos são o exercício
da suspeita. Você parte da suspeita de uma recusa do óbvio, do dado, que
no caso da psicanálise é o que o paciente conta como um relato consciente
e a partir da recusa disso como contendo a verdade, vai através das falhas,
das fendas e das hesitações, ou seja, nos interstícios deste discurso
você vai procurar o que seria o significante inconsciente, ou aquilo que
seria a manifestação do inconsciente. Você parte de certos fragmentos
para procurar algo que não é aquele discurso, é outra coisa. Da mesma
maneira a investigação policia é feita a partir de fragmentos para
descobrir o que seria um outro registro, outro plano, que é o plano do
crime propriamente dito. Então, nesse sentido, eu acho que há uma certa
analogia entre a prática psicanalítica e a prática policial. Semelhança
é uma palavra forte, porque na novela policial o detetive investiga apesar
do assassino, ao passo em que na prática psicanalítica você precisa do
depoimento do paciente, da relação transferencial que se dá numa sessão
analítica. Uma outra analogia que se pode fazer, mas num sentido mais
amplo, é que ambas as investigações têm como ponto de partida um crime,
um assassinato. No romance policial, é óbvio, o crime é cometido pelo
assassino. Na psicanálise os dois acontecimentos primordiais são assassinatos,
são parricídios. O Édipo é o assassinato do pai, da ordem primordial.
Aí seria uma articulação mais ampla, mais profunda talvez, mas só isso.
Eu não iria mais além nesta comparação.
Com Ciência
- Fazendo um paralelo, então, com o seu primeiro livro, O Silêncio
da Chuva: o inspetor Espinosa no fim do livro descobre que o assassino
que mantinha Rose em cativeiro era o próprio amigo dele, que havia sido
tão próximo. Isso significa um certo grau de pessimismo em relação à eficiência
da psicanálise?
Garcia-Roza - Não, na verdade não há pessimismo. O que a psicanálise te
ensina é que aquilo que mais te ameaça é uma relação extremamente íntima.
O delírio, o mortífero em cada um de nós está em nós mesmos. É aquilo
que Freud chamou de "unheimlich", é essa coisa familiar, próxima. Ele
cunhou este termo, "unheimlich". Porque heimlich é familiar, então unheimlich
seria o familiar distante, o familiar desconhecido. É aquilo que está
muito próximo de você e, no entanto, desconhecido de você. Mas que de
alguma maneira se insinua. Essa coisa é terrorífica, é o grande pavor
que temos da nossa própria interioridade. Nesta medida, em O Silêncio
da Chuva acontece isso, e não é só O Silêncio da Chuva, nos
outros dois acontece isso, acontecem coisas parecidas. Eu jogo um pouco
com a idéia, que não é propriamente psicanalítica, não é propriedade da
psicanálise, que é a idéia de que as maiores ameaças, as que te provocam
e te assustam mais são exatamente as que são próximas e ao mesmo tempo
invisíveis.
Com Ciência
- O nome do personagem principal dos seus romances, inspetor Espinosa,
tem alguma motivação em relação ao filósofo de mesmo nome, ou é mera casualidade?
Garcia-Roza - Tem uma homenagem ao Espinoza. Eu acho o Espinoza
um pensador extraordinariamente íntegro. Então, o inspetor Espinosa vai
como uma homenagem, mas pára por aí. Porque o inspetor Espinosa é um sujeito
íntegro, é uma pessoa normal como qualquer outra. Apesar de ser um burocrata,
um policial pertencente ao aparato de Estado, um homem de gabinete. Um
homem normal, um funcionário público. Mas ele é íntegro. Ele, de alguma
maneira, diz que é possível ser íntegro. Até na polícia. O policial não
tem que ser corrupto, assim como ninguém tem que ser corrupto. Se há uma
exigência fundamental ao ser humano, é que ele seja íntegro, que seja
ético.
Com Ciência
- O Rio de Janeiro, cenário de seus romances, tem tintas sombrias que
lembram às vezes o expressionismo e outras o próprio surrealismo. Há nisso
alguma relação com a sua formação em psicanálise ou são outras as motivações?
Garcia-Roza - O Rio de Janeiro é uma das poucas cidades que você não
pode ignorar. Tem cidades que você quase que ignora, o cenário e a geografia
dela. Você fica só com a história e descarta a geografia. O Rio de Janeiro
se impõe na sua geografia pela beleza e pela sedução. O Rio é uma cidade
muito sensual, cidade de sol. Quando se pensa em Rio de Janeiro você pensa
em sol, mar. Estas coisas você capta pelos olhos, pela pele...A relação
do carioca com a cidade é uma relação muito sensual. Eu sempre digo que
o Rio de Janeiro é uma cidade mulher. É uma cidade feminina. E ela captura
homens e mulheres pela sua sedução. Então, tem isso, a presença imperiosa
da geografia da cidade. Por outro lado, é uma cidade que eu conheço intimamente.
Não toda ela, mas pelo menos zona norte, centro até zona sul e Barra da
Tijuca eu conheço muito bem. Eu nasci e cresci no Rio de Janeiro. A escolha
da cidade vai por aí. E também há outro motivo, que é que os meus romances
policiais não têm só uma história. Também têm uma geografia. É como se
a geografia da cidade fosse um pouco da história da cidade. E não há como
a cidade não estar presente, e presente fortemente.
Com Ciência
- O herói detetive de seus romances tem as características peculiares
e universais dos heróis do gênero, isto é, tédio, solidão, inteligência,
frieza apaixonada, desencanto consigo mesmo e encantamento com a vida,
e ainda assim, apesar deste universalismo, ele parece ser brasileiro.
De onde vem, a seu ver, como criador da criatura, esta identidade?
Garcia-Roza - Eu procurei não fazer do Espinosa nenhum clone de nenhuma
figura de algum romance policial clássico. Ele não é parecido com o Sam
Spade, do Dashiel Hammett, nem é parecido com o Philip Marlowe, do Raymond
Chandler, nem do Nero Wolf, do Rex Stout enfim, eu procurei não clonar
estes personagens. Eu tentei fazer do inspetor Espinosa um personagem
bastante brasileiro, e bastante carioca. Ele tem uma certa preguiça, ele
não tem este sufoco do paulistano, por exemplo. Ele tem características
muito próprias. Estas cracterísticas que você listou podem ser semelhantes
às característcias dos detetives clássicos. Mas veja bem: ele não é um
super herói que dá socos, ele não dá tiros. Ele não se impõe pela força
física, ele nem é um grande atirador nem exímio perito em vinhos ou rosas
como os detetives ingleses. Não é um gênio como o Nero Wolf, nem é aquela
máquina institucional do Sam Spade. Ele é um investigador, que procura
fazer da melhor maneira possível seu trabalho, e de preferência, evitando
socos e tiros. Ele é quase um anti-herói. Ao contrário da maior parte
dos detetives americanos, que são chegados à uma certa truculência.
Com Ciência
- Quais são os autores que mais o influenciaram?
Garcia-Roza - Os policiais que eu citei antes. Mas não foi uma
influência no sentido de ter nos textos deles um modelo de romance policial,
mas no sentido de eles terem me provocado. De terem dito: é possível fazer
romance policial de boa qualidade. Mas as grandes marcas que eu tenho
são da literatura em geral, e não da literatura policial. Melvin, Faulkner,
Conrad
Com Ciência
- Há um autor francês, Jean-Pierre Gatégno, com três romances publicados
na mesma coleção em que o sr. publica, pela Cia. das Letras, que tratam
de maneira bastante bem-humorada o tema do crime, do mistério e da psicanálise.
O sr. vê, mesmo que imaginariamente, alguma relação entre a sua atividade
de psicanalista, sua atividade litarária e o universo retratado nestes
romances?
Garcia-Roza - Eu li todos os romances desta série. Mas não me vejo
muito encaixando na construção, na ficção dele.
Com Ciência
- Dois outros autores contemporâneos de novelas policiais são também responsáveis
por essa linha tradicional e moderna da narrativa inteligente e sensível.
Ambos são europeus. Um deles, Manuel Vasquez Montalban, é de Barcelona,
e o outro, Andrea Camileri, de Vigàta, na Sicília, sendo que este último
empresta do primeiro o nome para seu personagem principal, que se chama
inspetor Salvo Montalbano. O sr. vê alguma relação entre esse tipo de
narrativa e os seus romances policiais?
Garcia-Roza - Neste caso sim, eu acho que entre a minha narrativa
e a do Camileri há uma semelhança. Inclusive acho que o inspetor dele
tem alguma semelhança com o Espinosa. No caso do Manuel Montalban, não.
O Pepe Carvalho, que é o personagem principal dele, não é tão parecido
com o meu. Talvez haja aí uma semelhança longínqua. Tanto eu quanto o
Camileri começamos a escrever ficção muito tarde. O Camileri é mais velho
do que eu. O primeiro livro de ficção dele quando saiu ele já tinha quase
setenta anos de idade. Isso é interessantíssimo. Só que tem uma diferença:
ele levou a história dele para uma cidadezinha fictícia, ao passo que
a minha acontece numa cidade grande.
Com Ciência-
Como tem sido a recepção do público aos seus romances policiais? O sr.
se surpreendeu com a premiação da Nestlé e o prêmio Jabuti, no seu romance
de estréia, O Silêncio da Chuva?
Garcia-Roza - Me surpreendi bastante, até porque foi o primeiro livro.
Eu sequer sabia se tinha feito um trabalho de qualidade. Pouco depois
de o livro ter saído, em 96, ele recebe a indicação para concorrer ao
Nestlé e eu achei muito gentil. Achei simpático, mas que ficaria por aí
mesmo. Quando eu tive a notícia de que tinha sido premiado foi uma alegria
danada, e ao mesmo tempo uma força para continuar, porque era uma prova
do reconhecimento pelos meus pares. Logo depois veio o Jabuti, que eu
sempre achei um prêmio muito tradicional e respeitado. Então o livro ter
ganho o Nestlé e depois o Jabuti foi como quem diz: "Olha vai em frente,
porque a sua aposta foi boa."
Com Ciência
- Quais as diferenças que mais chamaram a atenção do sr. entre os públicos
de romance policial e dos seus livros anteriores sobre psicanálise e filosofia?
Garcia-Roza - O único público comum entre os dois são os meus amigos,
porque alguns são da mesma área. Eu não faço mais noite de autógrafos.
É um pouco constrangedor, você está constrangendo seus amigos a irem lá.
Mas, são dois públicos diferentes. Como não participo mais de mesas redondas,
palestras nem mais nada do mundo acadêmico, o contato que eu tenho é com
o público de literatura mesmo.
Com Ciência
- O sr. concorda que haja no método analítico de Freud influência do detetive
Sherlock Holmes, de Conan Doyle?
Garcia-Roza - É evidente, que em todo trabalho investigativo, se você
quiser procurar antepassados, você chega em Sófocles. No Édipo Rei, nos
gregos. Um influência mais próxima talvez seja o Allan Poe. Mas o que
eu quero dizer é que, uma vez duas práticas instauradas, se você encontra
alguma semelhança entre elas, isso não quer dizer que haja necessariamente
uma origem comum. E nem o Freud se propõe a ser um detetive da alma...Pelo
motivo que eu falei no começo: o detetive investiga sem a cooperação do
investigado, ao passo em que a análise se dá necessariamente na presença
e com a cooperação do analisado. Então isso marca uma diferença muito
grande entre o que seria uma investigação psicanalítica e uma investigação
policial.
Com Ciência
- Por fim, quanto do sr. há no detetive Espinosa?
Garcia-Roza - Não só no Espinosa, mas no Max, no Aurélio, na Bia...No
Achados e Perdidos nas duas prostitutas que são personagens, no
delegado bêbado e assim por diante. Eu acho o seguinte: a matéria prima
com a qual o ficcionista trabalha não é só o policial, mas o seu próprio
imaginário de ficcionista. Então tem tanto de mim no Espinosa quanto na
personagem Clô, que é a prostituta do Achados e Perdidos. Ou no
Gabriel, que é personagem do Vento Sudoeste. Eu não retiro meus
personagens de ninguém real e concreto que eu conheço. Meus personagens
são inventados do meu imaginário. Então eu estou tanto no inspetor quanto
no delegado bêbado, na prostituta e no vagabundo do subúrbio. Mas de qualquer
forma, uma tentativa de estabelecer um paralelo, eu tenho que dizer que
o Espinosa não sou eu. Ele tem uma certa lassidão que eu não tenho. Ele
leva a vida mais leve, apesar da atividade dele ser mais pesada. Eu até
por formação profissional, sou muito mais racionalista, e ele não é um
racionalista. Em suma, há diferenças. E fisicamente eu nunca defini o
Espinosa. Ele não tem características físicas, eu deixei meio indefinido
mesmo.
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