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A Sociedade da Informação no Brasil
Silvio Meira

Futuro da Internet: entre o elitismo e o computador popular
Ivan Moura Campos

 

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Projeto da Sociedade da Informação
deveria ser prioridade, diz Silvio Meira

Professor titular de engenharia de software e sistemas de informação do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Silvio Meira vem trabalhando com Internet desde a década de 80, quando o conceito existia com um conjunto de outros nomes. No Brasil, a partir de 85, esteve envolvido de forma pioneira, com a implantação da Internet no nordeste. Além disso, através do projeto RNP (Rede Nacional de Pesquisa), participou do processo de decolagem da Internet acadêmica no Brasil e foi o primeiro representante dos usuários no primeiro comitê gestor da Internet Brasil, em 1995.

Em entrevista à ComCiência, Silvio Meira abordou a entrada da Internet no Brasil, analisou a necessidade do aumento de acesso à Internet em países em desenvolvimento e a situação brasileira no mercado da economia da informação.

ComCiência: Qual a sua avaliação do processo de entrada e desenvolvimento da Internet no Brasil?
Silvio Meira:
Esse processo foi um dos maiores sucessos que nós da academia pudemos realizar do ponto de vista da interação entre universidade, economia, a indústria e o mercado em geral. Um número muito grande de redes de computador, de software s e sistema de informação das universidades participaram diretamente desse processo de prototipagem da rede dentro do ambiente acadêmico. A saída da rede da academia para a Internet comercial foi conduzida pioneiramente, no caso brasileiro, por esses grupos. Foi difícil porque que não havia nenhuma expertise no mercado e, mesmo nas empresas de rede, não havia profissionais nem com formação, nem em quantidade suficiente, para fazer decolar uma rede brasileira.

No da rede ponto com, quem estava à frente do processo, liderando-o tecnicamente, eram pessoas que estavam na universidade ou na Rede Nacional de Pesquisa (RNP).

Apesar da Internet brasileira, do ponto de vista técnico, ter sido um grande sucesso, não se pode dizer o mesmo quanto à possibilidade dela ter se tornado um mecanismo de diminuição de diferenças, em termos de oportunidades para diferentes grupos de poder e renda na sociedade. Nesse aspecto, a rede é um grande fracasso, e isso advém, em grande parte, do caos gerencial no qual está permanentemente imerso, ou estiveram pelo menos até agora, os governos brasileiros e suas várias facetas desarticuladas.

Talvez tenha sido ingenuidade nossa, que estávamos projetando a Internet no começo, pensar a possibilidade dela ser um instrumento de real desenvolvimento nacional, de diminuição das diferenças regionais, entre pessoas e grupos dos vários estratos de renda, conhecimento, educação e de poder no Brasil. Não aconteceu, não está acontecendo e tem muito pouca possibilidade de vir a acontecer. A Internet é mais um instrumento de concentração de poder, de conhecimento e de riqueza para uma pequena parcela da população.

ComCiência: Nessa perspectiva, o que se pode pensar acerca do futuro do acesso à Internet em países do Terceiro Mundo, em especial o Brasil?
Silvio Meira:
A única chance que qualquer país tem é aumentar a qualificação de seu povo, combinada com oportunidades para o desenvolvimento. Nenhum país consegue ser grande sem ter sua construção baseada num extenso sistema de educação e de criação de oportunidades. No Brasil, vale a pena notar que, apesar dos grandes programas resolvidos nos últimos anos, nossos sistemas educacional e de criação de oportunidades são extremamente desiguais.

A Internet é um conjunto de mecanismos, um ambiente que está sendo efetivamente usado por uma parte da população do país, aquela parcela que tem acesso à Internet como um instrumento de ampliação de suas capacidades de aprender, de se desenvolver e de criar oportunidades. Mas para uma gigantesca parte do país a Internet é apenas uma palavra. Dos 5.500 municípios no Brasil, talvez mil tenham acesso à rede. Que projeto de desenvolvimento nacional se pode pensar se estão sendo excluídos quatro quintos das localidades do país?

Exatamente por causa das gigantescas diferenças de oportunidades regionais que vemos hoje elevados graus de violência urbana nos lugares onde há oportunidade. Quem não tem oportunidade no lugar onde está e não é educado para aproveitar as oportunidades nos lugares onde elas existam, tem que recorrer a violência para, de uma certa forma, se defender. Se não for assim, vive como em Campinas, onde existe um número gigantesco de oportunidades e uma imensidão de pessoas que não conseguem se aproveitar delas e envolvem-se com a violência. Nós precisamos é de um projeto, de uma visão de desenvolvimento nacional que seja mais eqüitativa, que crie mais educação e mais oportunidades bem distribuídas neste país.

ComCiência: E qual sua visão do Programa Sociedade da Informação?
Silvio Meira:
O Programa da Sociedade da Informação é uma grande idéia, um conjunto de grandes idéias extremamente bem articuladas, muito bem coordenadas, das quais participou uma quantidade imensa de pessoas que teve todas as possibilidades de criar um projeto de Brasil grande. O projeto, no entanto é algo que existe em algum conjunto de gavetas do governo. Nunca se deu a devida prioridade ao assunto no Brasil, não a prioridade que teve em países da Europa e nos EUA. É claro que um certo número de propostas da sociedade da informação está caminhando, como por exemplo, o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). Há ainda o projeto Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) ligado a educação, o projeto das redes de cidadão, e outros.

O Fust é uma plataforma absolutamente impressionante, qualquer país do mundo queria ter algo assim. É uma grande massa de recursos que temos para fazer o acesso universal aos serviços de telecomunicações, que, no limite, é o que se precisa para que se tenha uma sociedade da informação, por mais básica que seja. Se as pessoas não conseguem ter acesso à rede não adianta se falar em sociedade em rede. Mas quando se observa a falta de coordenação com que foram levados os esforços do Fust, percebe-se que na prática não há um programa sociedade da informação, mas um projeto. Para se ter um Programa Sociedade da Informação no país, ele deveria ser tratado como tal, com direcionamento de quem que vai coordenar e controlar.

O grupo que trabalha no projeto sociedade da informação é um grupo de heróis que, contra todas as evidências de que o país não consegue ter um programa realmente nacional, trabalha para que haja.

ComCiência: Tendo esta diferença social que o senhor apontou, essa grande disparidade social de grupos de poder, que têm acesso à educação ou não no país e juntando isso à falta de um programa nacional, pode-se dizer que a implantação da sociedade da informação no Brasil vai acabar resultando num acesso que não é ao da informação enquanto conhecimento, mas um acesso a comércio eletrônico e aos serviços?
Silvio Meira: É mais ou menos isso, a rede que se paga mesmo é a de serviços. Quando o Bradesco une-se ao Banco do Brasil e ao Itaú e propõe colocar seus clientes na rede, é simplesmente porque as agências são muito cara e correm risco de assalto. Estou falando de algo que existe hoje, incentivos claros para que as pessoas usem serviços na rede, principalmente os financeiros, e isso também é e-commerce, só que de dinheiro.

O Brasil está entre os dez maiores usuários de serviços financeiros na rede. Entre os dez maiores bancos com bases de cliente na Internet existem três bancos brasileiros. Isso é desproporcional ao tamanho da economia brasileira, é desproporcional ao número de pessoas que têm conta bancária no Brasil e ao poder aquisitivo do país. Em tese, nós não deveríamos ter isso, mas porque temos? Porque a classe média, as classes A e B e um pedaço da C, é que está na rede. As classes D e E e uma parte da C usam a Internet através das empresas. Mas o acesso a pagamento de contas on line é muito maior do que o número de brasileiros que tem acesso direto, que podem acessar em casa para trabalhar ou estudar.

De certa forma, a rede de serviços está começando a decolar muito rápido, por exemplo, no correio, em pontos de atendimento nos estados e em outros lugares. Agora resta saber se a Internet da sociedade da informação, aquela ligada à idéia de conhecimento e, conseqüentemente, à educação sofisticada, vai decolar também. Acho que vai, mas demora tempo suficiente para não conseguirmos cobrir a nossa agenda de desigualdades sociais como deveríamos.

ComCiência: Qual a sua avaliação do Programa Nacional de Informática na Educação (Proinfo) e do projeto de computadores populares?
Silvio Meira: Acho que o programa tem um número suficientemente grande de conquistas e, se tivesse conseguido usar o Fust para ampliá-las e distribuí-las pelo país a fora, certamente nós teríamos uma programa de impacto nacional e de qualidade mundial. Acho que quando se quer implementar algo num país do tamanho do Brasil, há que se vislumbrar preocupações além do atendimento dos fins do projeto, os meios interessam também. Acontece que, no projeto do Fust, na política nacional de informática na educação e no projeto de computador popular, o Brasil que decide continua sem entender exatamente o que vai estar perdendo se não tomar decisões de política industrial associada a possibilidades de fazer informática na educação. Esse problema é tão grande e envolve tanto dinheiro e tantas pessoas que, se for feito na intensidade que deve, pode criar ou recriar uma indústria. Ele tem uma capacidade que transcende o próprio programa de informática na educação. O MEC não entende isso, nem a Anatel, nem parcelas significativas do governo federal, do mercado de informática e comunicações. Isso é a nossa incapacidade histórica e sistêmica de pensar o país como um todo, nossa incapacidade de ser holístico. Olhar para a informática e perceber o que mais tem ali além de informática na educação. Perdemos possibilidades gigantescas que poderíamos usar para o desenvolvimento nacional.

ComCiência: E como o Brasil está situado no mercado da economia da informação? O senhor acha que existe investimento adequado em pesquisa e capacitação de recursos humanos?
Silvio Meira: Há que se esperar para ver as conseqüências da nova lei de informática (lei 10176) e da nova política de investimento dos fundos setoriais a longo prazo. Se as conseqüências dessa política forem a concentração de esforços nos mesmos poucos lugares de sempre, não vai dar grande resultado. Se as conseqüências desses esforços for a criação de capacidades distribuídas nacionalmente e da participação do Brasil como um dos fornecedores de soluções, de estratégias e políticas para o mercado internacional, aí temos uma chance de dar certo.

Nós temos 1% do mercado mundial. Isso é muito pouco para criar plataformas que sobrevivam dentro de um contexto que é cada vez mais internacional e global. Software é um mercado que sempre foi globalizado mesmo, não tem outro jeito. Não há casos muito freqüentes de sistemas operacionais feitos na China que sejam usados na China. Lá se usa Windows e GNU/Linux. Estamos falando de plataformas globais para quase tudo. Nós temos que conseguir usar os elementos desta nova política para criarmos uma presença internacional e consistente do país. Se não conseguirmos vamos estar fazendo a mesma coisa que sempre fizemos: fingindo que somos um grande país sem ser.

ComCiência: Então o senhor vê possibilidades do Brasil tornar-se competitivo na área de software ?
Silvio Meira:
O Brasil sempre teve chances disso. Esse sempre foi um dos grandes sonhos nacionais não realizados. O Brasil tem um mercado interno de quatro bilhões de dólares. Há um número muito grande de companhias, calculadas em torno de 3500 pela secretaria de política de informática, que só fazem software (as software ´s houses). Mais umas dez ou onze mil que, além de produzir software , também fazem outros serviços associados à sua utilização e dão consultoria. O que temos não é pequeno. Para se ter uma idéia, o mercado da Índia é de um bilhão de dólares, apenas - um quarto do mercado brasileiro. Nós temos expertise no desenvolvimento de soluções completas (full services provider) no Brasil que, teoricamente, nos daria capacidade de nos tornarmos competitivos se tivéssemos a competência de inserir software s e soluções brasileiras no mercado internacional, para exportar pelo menos tanto quanto a Índia.

Dos quatro bilhões de dólares que compõe o mercado brasileiro, um bilhão é importado por canais de distribuição ou diretamente pelo usuário final. Existem previsões de que até o fim desta década essa importação se eleve para cinco bilhões de dólares. Então, estamos olhando para um mercado potencialmente exportador, porque é extremamente competente do ponto de vista do desenvolvimento de soluções completas, mas que pode acabar importando uma conta de software do tamanho da conta de petróleo que importa hoje. Se isso ocorrer nós, ironicamente, chegaremos a uma sociedade da informação como a da energia que vivemos hoje, onde o tamanho dos problemas enfrentados é gigantesco e preocupante do ponto de vista da balança comercial.

O que importa é que o déficit da balança comercial brasileira em software que pode subir para a faixa de 5 bilhões de dólares, que representa 3 ou 4 vezes o valor líquido das exportações de soja. Poderíamos trabalhar para exportação de software e estamos trabalhando para ter uma conta de importação de software , isso é patético.

O Estado, que é um grande comprador de software , não deveria importar sem antes saber se já não existe no mercado nacional o produto que se quer. O mercado nacional é extremamente importante para criarmos competência internacional. No entanto, temos exemplos e mais exemplos em que os governos federal e estadual dão preferência clara a soluções que vêm de fora ao invés de tentar promover plataformas nacionais. Existe quase um incentivo a usar coisas que não são feitas aqui. Ao contrário do que ocorre nos EUA, onde quando se quer comprar qualquer coisa que venha de fora primeiro é necessário passar pelo crivo, quase ético e moral, que a sociedade americana impõe sobre determinados tipos de importações em áreas estratégicas e depois passar pelo crivo do "Buy American Act", um livro de compras do governo federal americano que tem 2400 páginas de como se deve comprar e em que está claro que só se importa em último caso.

Pecamos também por não haver entendimento por parte dos setores da sociedade do que é a indústria de software . Ela é uma indústria abstrata e, se os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros no país não entendem o que é software , o governo não faz a menor idéia disso - excetuando-se algumas pessoas que individualmente têm a compreensão do que é, qual seu processo de produção e o que deve ser incentivado para participarmos do cenário internacional de software em larga escala.

ComCiência: O senhor acha que o mercado brasileiro deveria se focalizar em GNU/Linux. Esse sistema operacional pode nos tornar mais competitivos?
Silvio Meira: O mercado brasileiro é grande suficiente para não ter um foco só. Deveríamos olhar para esse conjunto de coisas com intuito de fazer uma política nacional. Eu não consigo olhar para este negócio como uma coisa só, e muito menos da forma maniqueísta como a maioria das pessoas olha: eu só tenho que ter GNU/Linux e ponto final. Eu consigo imaginar muitas formas de política em que Windows, GNU/Linux e sei lá mais quem podem conviver. Porque será que as pessoas não falam do sistema operacional da Apple, ou do Epoc que é da Siemens para rodar em celulares em Palm OS? Porque a gente quer ficar concentrado nessa dicotomia do desktop?.

Eu tenho Linux em 99% dos meus servidores no Cesar, mas quase todos, das trezentas e tantas pessoas que trabalham comigo, usam Windows no desktop simplesmente porque é padrão. Não estamos vivendo uma guerra religiosa. Esse é o tipo de discussão que não cabe. De resto, eu queria ver algum dia uma análise bastante clara de alguém que conseguisse me mostrar economicamente que o mercado de software aberto é viável em outros setores que não sistemas operacionais, linguagens e ambientes de desenvolvimento. Setores que por sinal já estão ocupados.

ComCiência: Com relação à segurança e a privacidade na rede, aos cookies e os direitos dos usuários, é possível dizer que estamos entrando num universo ficcional de sociedade do controle?
Silvio Meira: Não sei se é possível chamar de sociedade do controle mas é óbvio que estamos entrando numa sociedade em que há possibilidades bastante claras de supervisionar uma quantidade muito mais larga de coisas. De uma certa forma, hoje se digitaliza tudo, as coisas passam a ter endereços de onde elas saem, endereços IP para tudo, começa-se ter uma quantidade de coisas muito mais vasta que pode-se tentar controlar. Por outro lado, esse controle pode ter utilidades importantes, por exemplo, se eu conseguir ter um endereço IP do meu carro e se for seqüestrado, é muito mais fácil localizar onde estou.

Toda tecnologia tem um lado potencialmente ruim, o que temos que fazer é ver quais são as dimensões de controle social que podemos colocar nesses mercados que começam a surgir.

Atualizado em 10/04/02

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