Desigualdade social justificou experimentos antiéticos
com humanos
O
que pode ou não ser admitido nas pesquisas médicas
que realizam experimentos com seres humanos? Essa é uma
questão que sempre retorna à pauta de discussões
dos estudos em bioética. Mais do que denunciar casos que
já aconteceram é preciso entender as condições
que justificaram que sociedades pobres fossem privadas de seus
direitos e submetidas a testes em nome do bem comum e da saúde
das populações. Partindo dessa premissa, Sandra
Caponi, pesquisadora do Departamento de Saúde Pública
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), analisou dois
casos de experimentos com humanos: um na África, entre
1998 e 2000, com mulheres grávidas portadoras de HIV; e
outro na Índia, entre 1894 e 1899, para determinar o papel
do mosquito do gênero Anopheles na transmissão
da malária. A desigualdade social é apontada por
Caponi como um dos fatores que tem justificado a transformação
de vidas em corpos sem direito, que podem ser submetidos e aniquilados.
Os
experimentos com humanos realizados na Índia no final do
século XIX por Ronald Ross, prêmio Nobel de Medicina
em 1902, escandalizaram o mundo acadêmico. As denúncias
vieram à tona com a publicação do livro The
best in the mosquito: the correspondence of Ronald Ross and Patrick
Manson (em português, O melhor do mosquito: as correspondências
de Ronald Ross e Patrick Manson), em 1998. A pesquisadora
brasileira explica que as cartas que Ross trocava com Manson contavam
sobre a malária, a hipótese do mosquito, a ameaça
representada pelos pesquisadores italianos e franceses, sobre
as mentiras que Ross havia dito aos supostos voluntários
e as experiências com insetos infectados que levaram muitos
indivíduos à doença e à morte. As
cartas revelam que, para a conquista do prêmio, tudo era
permitido, incluindo enganos e mentiras, como Caponi encontrou
na carta 203, onde Ross relata ter afirmado para um doente que
a picada de um mosquito infectado com malária o ajudaria
em sua recuperação.
Em
1998, dezesseis equipes de pesquisadores iniciaram experimentos
com 17 mil mulheres grávidas portadoras de HIV no continente
africano. O estudo pretendia testar a eficácia de um tratamento
com AZT na redução da transmissão do vírus
de mãe para filho. Esse tratamento diferia do já
existente por ser mais curto e mais barato (cerca de US$50). Desde
1995, pacientes grávidas recebiam um longo tratamento que
reduzia em 66% a transmissão do vírus e custava
US$ 800. As mulheres foram divididas em dois grandes grupos: um
recebeu o tratamento curto, e o outro, considerado controle, recebeu
placebo, ao invés do tratamento mais longo, em função
dos altos custos. Como resultado, a maioria das crianças
que nasceu no grupo controle eram HIV-positivas, e o tratamento
curto acabou tendo eficácia menor (cerca de 50%) do que
o tratamento longo.
Nos
dois casos, os pesquisadores violaram os princípios da
Declaração
de Helsinque que estabeleceram os fundamentos legais e éticos
das pesquisas com seres humanos como resposta aos horrores cometidos
nos campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial.
No caso dos experimentos com as mulheres africanas houve um amplo
questionamento da comunidade científica sobre a postura
antiética dos pesquisadores. Em resposta às críticas,
os autores da experiência utilizaram o argumento do relativismo
ético ou duplo standard para se defender das acusações.
"[Para eles], é possível não aceitar
as normas que constam na Declaração Helsinque por
se tratar de comunidades pobres, sem condições de
ministrar assistência à população,
cujos governos se manifestam favoráveis à realização
das mesmas [experiências]", explica Caponi.
Nas
cartas de Ross também aparecem declarações
que demonstram que o pesquisador presumia a existência de
dois mundos: o mundo dos direitos e o mundo das exceções;
o mundo dos corpos que merecem ser cuidados e o mundo dos corpos
que podem ser utilizados em nome da saúde das populações
ou do futuro da espécie.
Sandra
Caponi acredita que os grupos de pesquisadores que defendem o
duplo standard colocam em cena uma modalidade de exercício
de poder própria dos estados modernos: a biopolítica;
um conceito criado pelo filósofo francês Michael
Foucault. Na biopolítica as leis reconhecidas pelos povos
são substituídas pelos fatos científicos,
pela urgência e imediatismo. Nessa modalidade de poder,
ao mesmo tempo em que os cientistas buscam o bem comum também
precisam controlar e submeter corpos sem direito, que vivem às
margens. Ao colocar as vidas de populações pobres
fora da jurisdição humana, a violência cometida
contra elas não constitui mais um sacrilégio. O
corpo deixa de ser alguém para ser transformado em um elemento
que serve de suporte aos processos biológicos, que pode
contribuir para conhecer os fenômenos populacionais.
Leia
mais:
- A
Biopolítica da população e a experimentação
com seres humanos, artigo de Sandra Caponi publicado na revista
Ciência & Saúde Coletiva.