A preguiça baiana e a imagem generalizada do nordestino malemolente e devagar são perfis construídos historicamente e reforçados pela mídia. Essa é uma das conclusões da tese de doutorado da antropóloga Elisete Zamlorenzi, defendida na USP em 1998, que será transformada em livro e deve chegar às livrarias até o final do ano.
A pesquisadora explica que, depois de morar em Salvador, entre 1980 e 1984, ficou intrigada com a campanha difamatória comandada pela mídia local sobre o movimento do bairro Calabar, que teve origem a partir de uma ocupação na década de 1940 em uma região nobre da capital baiana. "O que me chamou a atenção foi que eles davam um duro danado: conseguiram água, esgoto e luz para Calabar. Mas a imprensa fazia a imagem de vagabundos, preguiçosos e criminosos", lembra a autora da pesquisa, que focou seu trabalho na representação do trabalho e do tempo.
O papel da imprensa nessa construção é muito importante, diz Zamlorenzi, porque reproduz o discurso e os interesses da elite. Desde o século XVI, a elite baiana depreciava os negros escravos, que eram descritos, primeiramente, como desorganizados e sujos, depois como analfabetos e sem conhecimento, e, finalmente, como preguiçosos. A famosa Ladeira da Preguiça, em Salvador, ganhou este nome por ter sido a via de acesso de mercadorias vindas do porto para a cidade e que eram levadas em carretões puxados a boi e empurrados por escravos.
Essa era a forma de interiorização da dominação, no período da escravidão, afirma a antropóloga. Depois, a depreciação assumiu a forma da exclusão. Assim aconteceu com os negros, índios e imigrantes nordestinos nas regiões Sul e Sudeste, quando, a partir da década de 1950, intensificou-se a imigração. A imagem de preguiçoso estendeu-se aos imigrantes dos estados nordestinos, categorizados como "baianos", a grande maioria oriunda de fazendas vitimadas pela seca, normalmente mestiços, afro-descendentes e desqualificados profissionalmente. O nordestino foi responsabilizado, enfatiza a pesquisadora, por todo caos do crescimento urbano da cidade, enquanto não havia qualquer projeto de inclusão social. "Depreciar era interessante, porque justificava baixos salários e falta de investimento", esclarece. O sociólogo Octavio Ianni (1925-2004), um dos examinadores da banca de doutorado de Zamlorenzi, destacou que a tese mostrava a forma sutil de racismo a negros e nordestinos.
No candomblé, outra raiz dessa imagem pôde ser identificada, uma vez que a relação tempo e trabalho ali existente se contrasta com a da visão capitalista. "A influência da cultura afro na Bahia é muito forte e o candomblé é a matriz religiosa dessa cultura, onde o trabalho não se contrapõe ao tempo livre nem é uma obrigação, como no capitalismo", explica. No candomblé, o trabalho é só um dos aspectos da vida, além do lazer, da família e dos amigos, sem fazer com que isso represente um trabalho desleixado. "Só agora, o capitalismo está descobrindo a necessidade de ver o trabalhador como um ser humano", lembra a antropóloga. Não é à toa que na sociedade capitalista é tão comum perguntar a uma criança "o que ela vai ser quando crescer", e chama de preguiça o trabalho que não é realizado para o acúmulo. Assim, o índio, por exemplo, que produz para a subsistência, também recebeu o mesmo estigma de preguiçoso.
Jornais
Em seu doutorado, Zamlorenzi analisou a cobertura dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal da Bahia e Jornal do Brasil, entre os anos de 1949 e 1985, e constatou, por exemplo, que o Sudeste foi construindo a imagem da preguiça associada à imigração. O trabalho concentrou-se nos períodos de festa (junho/julho/agosto e dezembro a março), quando mais se trabalha no Nordeste, mas quando mais se reforça a imagem da preguiça e do não-trabalho.
Entre as conclusões, verificou-se que os jornais eram o espelho do discurso social mais amplo, ou seja, não eram eles os geradores, mas ajudavam a criar um discurso autônomo na sociedade. Outra constatação da pesquisa foi que a mídia passou a ser o espaço de reprodução do discurso turístico, a partir da década de 1960, quando o próprio governo do estado da Bahia passou a explorar a imagem da preguiça. Nessa época, a indústria do turismo investiu no slogan da Bahia paradisíaca, para onde deve ir aquele que quer descansar, onde a festa nunca acaba e ninguém usa relógio. Também nesse período, Dorival Caymmi e Ary Barroso cantavam a Salvador de 1920, linda e malemolente, enquanto os novos baianos - Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia - incorporaram a mesma imagem da preguiça, como forma de se diferenciar no cenário musical da época nas regiões Sudeste e Sul. Até hoje, a antropóloga ressalta que os baianos trabalham muito pela indústria do entretenimento, embora a preguiça tenha sido adotada como traço de identidade cultural.
Zamlorenzi, que é professora da PUC-Campinas e coordena a área de Política Cultural do Programa de Apoio às Políticas Públicas da Pró-Reitoria de Extensão da mesma universidade, diz não acreditar que o discurso da preguiça tenha impregnado os próprios baianos e nordestinos que moram na sua região, "porque eles sabem o quanto trabalham". No entanto, ela acredita que quando esses migram para o Sudeste acabam assumindo essa inferiorização em função do meio externo. "Quando se folcloriza, o discurso se desloca da realidade e ganha vida própria, criando uma força até maior do que tem", explica.