Recentemente, a vida de um professor de uma pequena escola de uma cidade na zona rural da França foi transformada. Após participar de um filme-documentário chamado Ser e Ter, no papel de protagonista, o professor entrou na justiça contra a direção do filme, alegando que a imagem dele estava sendo assistida por todos e, por isso, deveria ter participação nos lucros - bem maiores do que se esperava, por sinal. Para a sua surpresa, a causa foi dada como perdida. "Estou famoso, mas meus bolsos estão vazios", declarou. Para o pesquisador, historiador e cineasta francês Marc Ferro, esse é um típico exemplo de uma questão que vem sendo discutida com fervor na academia: a quem pertence a imagem veiculada? De quem filma ou fotografa, de quem veicula ou de quem é alvo das câmeras? 
							
								
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										 Mac Ferro 
											Crédito: Rafael Evangelista 
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              Uma 
                situação semelhante à enfrentada pelo professor-protagonista 
                do documentário foi vivenciada pela atriz Catherine Deneuve, 
                que se negou, em um de seus filmes, a fazer uma cena pornô 
                para não ter a sua imagem associada ao erotismo. No entanto, 
                a cena foi filmada por uma dublê, o que motivou Catherine 
                a processar a produção do filme alegando uso impróprio 
                de sua imagem. A atriz também perdeu a causa. "Um 
                corpo passa a não pertencer mais à pessoa depois 
                que ela faz um filme, assim como um livro não pertence 
                mais ao seu autor se for adaptado para o cinema", diz Ferro. 
                
							Para Ferro, quando o cinema virou uma indústria cultural, a idéia que começou a vigorar entre os produtores foi a de que as imagens devem agradar o maior número de pessoas, de diferentes culturas, para que sejam bem consumidas. "Assim, o cinema passou a pertencer aos produtores, e não mais aos autores da trama, e nem mesmo aos atores, diretores e roteiristas", afirma. 
							A questão da propriedade das imagens, para o historiador francês, começou a ser discutida quando, na pintura, nomes impressionistas como Monet e Manet passaram a retratar imagens - em especial de mulheres - do jeito que desejavam, e não mais respeitando à realidade. "A partir desses pintores, a imagem passa a pertencer a eles, e não mais à pessoa que foi retratada, pois ela não se reconhece mais na pintura", ressalta Ferro. Ele explica ainda que depois do impressionismo, outros pintores, como Pablo Picasso, reforçaram ainda mais a descontração da representação da imagem na pintura. "Não é por causa da fotografia que a pintura deixa de ser retratista, mas devido a uma mudança dos próprios pintores", enfatiza. 
							"Um fotógrafo pode tirar um foto de uma bela cidade iluminada à noite e vendê-la num cartão postal, sendo que quem paga a iluminação e essa beleza é o governo, a sociedade?", pergunta Ferro. A mesma discussão sobre o uso de imagens pode ser considerada quando o assunto é informação, como em textos escritos. "A quem pertence à informação? Àquele que diz, àquele que escreve ou àquele que compra?", indaga.
							Cinema e história
								Apesar da polêmica relacionada ao uso da imagem, o pesquisador acredita que o cinema auxilia a sociedade a entender a sua história e mostra condições e verdades escondidas. "Não dá para estudar cinema sem estudar história, antropologia literatura, filosofia. O cinema não está sozinho", ressalta, fazendo uma crítica a alguns dos atuais estudiosos da área que estudam "apenas cinema".  
							
              Ferro 
                enfatiza que é preciso ficar atento às produções 
                que abordam um fato histórico de modo romanceado e que 
                podem distorcer a realidade. Um exemplo recente citado pelo historiador 
                é o filme alemão A queda (Der Untergang), 
                que estreou causando polêmica na Europa e deve chegar ao 
                Brasil no final de setembro. A produção mostra o 
                lado "humano" de Hitler, narrado a partir do ponto de 
                vista de uma das secretárias pessoais, e retrata os últimos 
                12 dias do ditador. "No filme, o telespectador chega a esquecer 
                quem foi Hitler e passa a vê-lo como um conquistador de 
                belas mulheres. É capaz até de pensar que ele deveria 
                ser uma boa pessoa para ter mulheres tão bonitas", 
                ironiza Ferro. 
							O historiador discutiu o uso de imagens em uma palestra proferida no último dia 17, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), denominada Cinema e História. Antes, discutiu o tema em uma palestra durante o 3º Recine - mostra de cinema organizada pelo Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro - e no Sesc, em São Paulo. 
								
								Leia mais sobre o assunto: 
							- Entrevista com Marc Ferro
								
							- A relação Cinema-História em foco
								
							- Nas fronteiras entre o cinema e a história